Antes de qualquer coisa, é importante ter em mente que falar sobre sexualidade com crianças não é falar sobre sexo, garantem os estudiosos do assunto. Compreender isso ajuda a desconstruir a ideia errada de que educação sexual “incentiva sexo” na infância ou “muda orientação sexual” de alguém, reforçam os especialistas.
Segundo eles, falar sobre esse assunto com crianças é muito mais falar sobre autodescoberta, respeito aos limites do próprio corpo e dos corpos alheios, socialização, autoestima, autoproteção, autonomia, privacidade, higiene e uma série de outros temas intrínsecos ao desenvolvimento integral humano.
“A sexualidade faz parte da vida desde que a gente nasce. Acontece que a maioria das pessoas tem uma percepção da sexualidade apenas pela visão do adulto. A visão de erotização da sexualidade realmente pertence à vida adulta e deve permanecer lá, não cabe na infância”, diferencia a ginecologista e obstetra Aline Veras, do Coletivo Rebento - Médicos e Médicas em defesa da Ética, da Ciência e do SUS.
A profissional explica que a sexualidade humana começa a ser desenvolvida entre 0 e 1 ano de idade, quando a criança começa a “descobrir sensações com estímulo oral” como se alimentar (por meio da amamentação) e levar objetos e partes do próprio corpo — pés, por exemplo — à boca.
Mais à frente, dos 2 aos 4 anos, de acordo com ela, se sobressai a fase anal, que é quando a criança aprende a controlar o próprio esfíncter e, consequentemente, a segurar e soltar as próprias fezes.
“Dos 4 aos 6, 7 anos, tem a fase fálica e genital, que é a exploração do restante do corpo. Os meninos vão descobrir que têm pênis e as meninas vão descobrir que têm vulva. Vão pegar, mexer. E existe uma questão de estímulo sensorial aí. Eles mexem porque, sensorialmente, é interessante. Não existe erotismo, existe descoberta do próprio corpo”, elucida a obstetra.
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À medida que idade e convívio social aumentam, as demandas da sexualidade se transformam. Para além do respeito ao próprio corpo e ao próprio espaço, passa a ser igualmente importante trabalhar o respeito aos corpos e aos espaços do outros. “Não posso invadir o espaço do outro e não posso permitir que o outro invada o meu. Ao mesmo tempo em que preciso aprender a socializar”, comenta Aline.
Sexo, direitos reprodutivos e prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) são assuntos também vinculados à sexualidade, mas que mais têm a ver com a adolescência, etapa que começa com a puberdade e acarreta uma série de mudanças no corpo. Nesse período, o mais importante, de acordo com a ginecologista, é “trabalhar questões relativas à autoestima e ao respeito à própria subjetividade” dentro das relações sociais.
Famílias devem ser disponíveis
Para Álvaro Rebouças, psicólogo especialista em Terapia Familiar Sistêmica, uma criança que questiona um adulto sobre qualquer assunto na esfera da sexualidade mostra que confia a ele dúvidas muito sérias. “E que seriam sérias para o adulto também, no mesmo período da vida”.
Por isso, o profissional defende que as famílias devem se mostrar disponíveis para receber essas demandas e responder de forma simples, objetiva e adaptada ao universo infantil. “Se os pais não têm disponibilidade e a comunicação é de cobrança, dificulta”, porque a criança vai aprender que não tem espaço naquele ambiente para se sentir informada.
Além disso, Álvaro lembra que o elo de confiança formado entre crianças e adultos no ambiente familiar deve ser levado a sério. “A pessoa de confiança precisa manter o sigilo da conversa. Não vai contar pros outros filhos ou pra amiga. Se precisar de informação profissional, deve procurar profissional”, aconselha o psicólogo.
No caso dos adolescentes, a mesma coisa. “Tem que ser uma comunicação sem acusações, censuras ou críticas a respeito do que o sujeito está falando ou demandando, que é extremamente importante pra ele e que, se você não der essas informações, ele vai procurar saber com outra pessoa ou por outros meios”, ressalta o profissional.
Mesmo quando os pais não são tão presentes e disponíveis na infância, é possível, segundo o psicólogo, correr atrás do prejuízo e construir esse elo de confiança com os filhos já adolescentes ou adultos. Desde que, nesse processo, não tenham acontecido experiências traumáticas.
“Os que não conseguem (construir laços de confiança) são os que produzem traumas. Abusadores sexuais de crianças e pais agressores não conseguem recuperar mesmo, porque o trauma vai impedir o sujeito de ter confiança. Agora, pais que estavam focados no trabalho ou dando atenção a outras necessidades, os filhos compreendem. Só lamentam”.
As consequências do “não falar”
Para a psicóloga e pedagoga Eveline Câmara, fundadora do Instituto de Especialidades Integradas, as consequências da falta de diálogo e da repressão da sexualidade na infância são “desastrosas”. Principalmente porque embarreira o desenvolvimento humano natural, levando, inclusive, a uma incompreensão sobre como se constroem os próprios desejos.
“Ainda existe na sociedade a questão do adulto colocando a percepção dele (de mundo) na criança. Isso dificulta diálogo”, acredita a profissional.
Como conversar com crianças sobre sexualidade?
Seja disponível
Quando a criança perguntar a você algo sobre sexualidade, é importante que você esteja disponível para ouvi-la. Se não puder na hora, diga que responde em outro momento, mas cumpra a promessa. Ofereça tempo e atenção. Se você nunca parar para conversar, a criança pode entender que não há espaço para esse diálogo e pode não recorrer mais a você e buscar a informação em outro lugar ou com outras pessoas.
Chame as coisas do que elas são
Ninguém fala que olho não é olho, que nariz não é nariz ou que boca não é boca. Porque não vê necessidade de “maquiar” essas partes do corpo. Por que, então, esconder os nomes das partes íntimas? Por mais que você opte por apelidar “pênis” e “vulva” para conversar com crianças, tenha em mente que, em algum momento, elas devem saber os nomes corretos das partes dos próprios corpos.
Peça permissão antes de tocar o corpo da criança
Como você está ensinando à criança o respeito aos limites do próprio corpo e do corpo do outro, dê o exemplo e peça permissão antes de tocar o corpo dela para dar banho, por exemplo. É uma forma de orientar que não se pode tocar em locais não autorizados.
Responda exatamente o que a criança quer saber
Sem rodeios, adaptando a resposta à idade e à maturidade emocional da criança, responda exatamente o que ela quer saber. Às vezes, ela só tem uma dúvida muito específica e pontual. Perguntar “como os bebês nascem?” é diferente, por exemplo, de perguntar “como os bebês são feitos?”.
Mantenha o sigilo da conversa
Contar para os amigos e até para os outros filhos sobre a dúvida da criança pode quebrar a confiança que ela tem em você, caso descubra. Se precisar de ajuda para responder à pergunta, procure profissionais e outras fontes de informação confiáveis.
Reaja com naturalidade
A forma como você reage tem peso. Se você se apavora diante da pergunta da criança ou a repreende de alguma forma, ela vai pensar que não deveria ter exposto a dúvida. Se você ignora, ela pode achar que não há espaço para dialogar. Aja com naturalidade e responda o que você souber responder. O que não souber, diga que vai estudar para responder depois. E responda.
Oriente sobre privacidade
Na fase da descoberta do corpo, é natural que a criança se toque e chegue às partes íntimas. Encare isso com a mesma naturalidade que acontece, mas oriente a não se tocar em público, apenas em ambientes privados como quarto e banheiro. Faça comparações que a criança possa compreender, como: “Você vê sua mãe ou seu pai tocar na parte genital em público?”. Mas, atenção: para ter coerência no discurso, caso você veja a criança se tocar em público, leve o diálogo com ela sobre isso para o ambiente privado, que é onde a questão deve ser tratada.
Não diferencie a criação por gênero
Não deve haver diferença entre falar sobre sexualidade com meninos e falar sobre sexualidade com meninas. Ambos se desenvolvem e se descobrem de maneira natural. Se você encara com naturalidade a auto estimulação genital do menino, por exemplo, e se apavora quando a menina faz o mesmo, você pode provocar nela transtornos e disfunções relacionadas à sexualidade na vida adulta, além de uma série de problemas de autoestima. Ambos também devem ser ensinados a respeitar o próprio corpo e o corpo do outro.
Não precisa ser “um momento”
Você não precisa criar todo um cenário, toda uma ambiência, todo um momento para falar com a criança sobre questões ligadas à sexualidade. Às vezes, o assunto pode surgir enquanto vocês leem um quadrinho ou assistem a um desenho animado ou filme, por exemplo. Inclusive, é importante estar atento aos conteúdos que as crianças estão consumindo, principalmente na Internet.
Use todos os recursos que puder
Quadrinhos, cartilhas, jogos, brinquedos, livros. Há uma série de recursos confiáveis disponíveis (alguns, até gratuitamente) para que você use no diálogo com a criança sobre sexualidade.
Fontes: Aline Veras, ginecologista e obstetra, integrante do Coletivo Rebento - Médicos e Médicas em defesa da Ética, da Ciência e do SUS | Álvaro Rebouças, psicólogo especialista em Terapia Familiar Sistêmica | Eveline Câmara, psicóloga e pedagoga | "Como falar sobre sexualidade com seu filho", e-book gratuito de autoria da psicóloga Leiliane Rocha