“Sei do risco, mas só tenho essa opção”: chuvas agravam situação de famílias em moradias precárias

Oito a cada dez chamados da Defesa Civil de Fortaleza estão ligados a risco de desabamento

Ter um teto sobre a cabeça deveria ser sinônimo de segurança, mas, em muitos casos, é fator de risco. Em 2022, até janeiro, a Defesa Civil de Fortaleza já registrou 154 ocorrências de risco de desabamento e 17 de colapso em si. Somadas, elas são 81% dos chamados.

Alagamentos, inundações ou riscos de esses fenômenos ocorrerem formam o segundo grupo mais numeroso de registros na cidade, com 18 chamados apenas em 2022. Ano passado, foram 128.

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Para a dona de casa Elizabeth Bento, 47, dormir tranquila “no inverno” é raridade. Morando às margens da Lagoa do Gengibre, no bairro Manoel Dias Branco, ela assiste à água invadir os cômodos sem licença, pelas paredes e pelo teto, quando chove.

“A casa tá cheia de rachadura, meu marido botou uns pedaços de ferro, mas chovendo, com o peso... Nesse momento, tô com medo – sou evangélica, mas tô com medo”, confessa, resumindo um cenário em que até a fé adoece.

Elizabeth reconhece que “ofereceram pagar aluguel social”, mas que nem para receber o benefício ela tem estrutura. “Não tenho como aceitar, porque não tenho como pagar água e luz. Sei do risco de viver aqui, mas só tenho essa opção”, lamenta.

Não tenho saneamento, não tenho nem banheiro. É uma dificuldade tremenda. Moro aqui há 10 anos, e a situação só piorou. Não somos porcos pra viver na lama.
Elizabeth Bento
Dona de casa

A precariedade da moradia é compartilhada pelo vizinho de bairro, Antônio Ferreira, 62, cuja casa é “em cima do morro”, como ele descreve ao dar o endereço. O terreno íngreme, aliás, eleva o medo cotidiano de dormir sob um teto e amanhecer sem ele.

“Essas rachaduras a gente emenda e aí racha de novo. Em tempo de chuva, é igual a uma peneira. Me levanto da rede de madrugada, pra não ficar todo molhado. Moro aqui há uns 2 anos, não tenho emprego, não tenho saúde, não sou aposentado… É o jeito”, conforma-se.

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famílias receberam aluguel social em Fortaleza, em 2021, por meio da Defesa Civil, para saírem de moradias de risco. Em janeiro deste ano, foram 42 beneficiários.

Do outro lado da cidade, o bairro muda, mas os problemas se repetem. Na Comunidade Santa Rita, no Barroso, a quadra chuvosa acentua a vulnerabilidade constante estampada do teto ao chão das casas, sempre úmidos e rachados.

A dona de casa Janailma Brito, 32, convive com o problema há quase uma década. Até tentou maquiar, aterrando o piso da casa com entulho, mas “a água vive dentro”. “Já perdi móvel, fogão, geladeira… Não sei pra onde a água vai, meu medo é isso aqui desabar”, desabafa.

Na casa alugada de um quarto só, que divide com o marido e três filhos, há rachaduras em quase todos os cômodos, cenário que torna palpável o “medo de perder o que já não tem”.

A gente paga aluguel aqui, mas não encontra casa barata em outro canto. Não tem condição de se mudar.
Janailma Brito
Dona de casa

Monitoramento

A comunidade do Gengibre – assim como a do Cal, no Castelão; o Parque Jerusalém, no Canindezinho; e a Ilha Dourada, no Quintino Cunha – está na lista das monitoradas com frequência pela Defesa Civil de Fortaleza, segundo garante o agente Saulo Aquino.

De acordo com ele, as áreas de risco da cidade “já foram bastante suprimidas, embora falte atualização do número”; mas as que permanecem seguem sendo assistidas por meio do Núcleo de Ações Preventivas do órgão.

“A gente conhece os moradores, tem uma interlocução com eles sobre todos os riscos. Em algumas áreas, infelizmente, não conseguimos impedir os efeitos danosos das chuvas”, frisa o agente.

Em relação a ocorrências de risco de desabamento e do sinistro em si, Saulo aponta que o Centro é uma das regiões mais críticas, devido à idade das edificações. “Em outros locais, a causa, geralmente, envolve irregularidade na construção”, explica.

Recebemos chamados desde infiltrações e goteiras, que isoladamente não são relevantes para colapso da edificação, até contextos piores, de rachaduras, fendas, situações que conduzem para uma avaliação um pouco mais rebuscada.
Saulo Aquino
Agente da Defesa Civil de Fortaleza

Política habitacional falha

As condições precárias de moradia em que milhares de famílias de Fortaleza vivem são o reflexo de uma pilha mais extensa de vulnerabilidades, como avalia Renato Pequeno, arquiteto, urbanista e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab) da Universidade Federal do Ceará (UFC). 

“A pobreza se manifesta na moradia. Ao mesmo tempo em que poucos têm tido a oportunidade de comprar apartamentos de 200 m², até 900 m²; muitos perderam suas casas, e uma quantidade enorme de pessoas está vivendo na rua”, frisa.

O urbanista observa que beiras de lagoas, córregos, encosta de dunas e faixas de praia acabam como opções de ocupação irregular para quem não tem moradia, por serem locais mais afastados, reduzindo as chances de remoção.

A política pública habitacional de Fortaleza melhorou, mas não vai na raiz do problema, na causa. Enquanto não houver na cidade uma política de redução da pobreza, essa questão não vai ser solucionada.
Renato Pequeno
Arquiteto, urbanista e pesquisador

Segundo Renato, que também integra o Observatório das Metrópoles, a precariedade habitacional atinge cerca de 270 mil famílias em Fortaleza. Já o déficit habitacional, “gente que deixa de comer pra pagar aluguel”, assola aproximadamente 120 mil lares.

“Há que se fazer um estudo para saber quem está vivendo em área alagável, sujeito a deslizamento, desabamento. A gente resolve esse problema com programas de habitação de interesse social, evitando que as pessoas precisem morar na área de risco”, finaliza.

Em nota, a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor) destacou que o Programa de Locação Social “atende prioritariamente famílias em situação de vulnerabilidade emergencial e/ou impactadas pelos projetos de urbanização e requalificação”. Em 2021, foram gastos R$ 4,2 milhões com o programa.