Começou nesta semana a quadra chuvosa (fevereiro-maio) no Ceará, período marcado pelos maiores volumes de chuva ao longo do ano. A expectativa é de precipitação acima da média, com apenas 20% de chance de pluviometria abaixo da normal climatológica para o próximo trimestre. Em 2021, no entanto, o ano como um todo encerrou com acumulado de chuva 13,7% abaixo da média histórica no Ceará.
O índice, quando observado de forma isolada, não representa grande disparidade da normal climatológica. Contudo, alguns municípios receberam volumes ainda menores, o que abre margem para uma análise.
Em um Estado fincado na região semiárida nordestina, onde o abastecimento humano tem íntima dependência dos reservatórios, como é viver em locais cuja pluviometria é diminuta? E como a agricultura - ainda que a familiar, àquela usada para subsistência - consegue sobreviver? O Diário do Nordeste traçou um raio x do cotidiano dessas cidades.
Oito dos 184 municípios encerram 2021 com chuva média abaixo dos 400 milímetros:
- Parambu, Quiterianópolis, Independência, Madalena, Itatira, Irauçuba, General Sampaio e Icapuí
Entre estes municípios, um fato em comum: a adaptação à pouca água. Isso, no entanto, não quer dizer que não há dificuldades persistentes, mas que as pessoas passaram a ser mais resilientes e menos dependentes das águas que caem do céu.
"Passamos a conviver melhor com a ausência de grandes volumes de chuva. Com essas mudanças climáticas que veem ocorrendo, cada vez mais será mais comum que tenhamos volumes menores do que grandes eventos pluviométricos, como ocorreu em 2009, por isso é preciso adaptação e desenvolvimento de políticas públicas estratégicas", alertou Francisco Teixeira, titular da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH) do Estado.
Em 2009, choveu 52,2% acima da média histórica anual, que é de 800,6 milímetros
Adaptação necessária
Em Quterianópolis, município dos Inhamuns, a chuva nos últimos anos tem sido artigo de luxo. Desde 2009, somente um ano (2018) registrou pluviometria acima da média histórica anual, que é de 652 milímetros. Em 2021, por exemplo, o ano acabou com precipitações 40% abaixo da média.
Diante tantos anos com poucos volumes, o secretário executivo de Agricultura do Município, Antônio Luiz Gomes Batista, afirma que "a população já está adaptada ao uso racional da água".
"O Município está inserido no semiárido e, por isso, temos um trabalho permanente de conscientização de economia de água como bem comum através das nossas escolas que trabalham educação contextualizada como política pública em parceria com a Caritas Diocesana de Crateús", detalhou.
Uma das estratégias foi mudar a forma de produção no campo. Atualmente, explica Antônio Luiz, "os camponeses trabalham com produção familiar em quintais produtivos com uso de águas de poços profundos, além de termos também experiências com uso de águas cinzas (reuso de água)".
A mudança cultural surtiu efeito e elevou a importância das cadeias produtivas inseridas nos núcleos familiares de Quiterianópolis, avalia o secretário executivo. Ele destaca a bovinocultura (com foco no leite, queijo, nata, e manteiga da terra), a apicultura, produção de sequeiro e a criação de pequenos ovinos e caprinos como principais atividades.
Esse poder de adaptabilidade já trouxe resultados à população que se viu menos dependente da agricultura convencional. "Hoje temos uma grande produção leiteira, que se destaca na região dos Inhambus, assim como nos destacamos na produção do mel", reforça. Somente no ano passado, o Município produziu 35 toneladas.
Abastecimento garantido
Os poucos volumes de chuvas nos últimos anos não impactaram o abastecimento humano em Quterianópolis. Antônio Luiz explica que o Município "tem boa reserva de água em seus lençóis freáticos, sobretudo nas margens do Rio Poti, Rio de Dentro e Rio Jucás".
O Açude Colinas, responsável pelo abastecimento da zona urbana tem atualmente 34% de sua capacidade, índice suficiente para o abastecimento dos próximos dois anos, mesmo que não ocorra nova recarga neste ínterim.
Mas, nem sempre foi assim, reconhece o secretário executivo. Entre os anos de 2012 e 2014, período recente mais crítico no Município, foi preciso desenvolver ações para garantir o abastecimento humano.
"O que amenizou o sofrimento da população foi a perfuração de poços profundos com recursos próprios", recorda. Outra parta da cidade, acrescenta Luiz, foi atendida com carros-pipas custeados pelo Município. Essas duas estratégias são mantidas até hoje como suporte ao Colinas.
Realidade oposta
Diferente de Quiterianópolis, a cidade litorânea de Icapuí enfrenta grandes desafios com a estiagem. No ano passado, o acumulado foi de apenas 345 mm, ou seja, 63% abaixo da média histórica. Segundo o secretário de Agricultura do Município, Iran Félix, "há uma grande dificuldade por parte dos agricultores em suprir a demanda de água para manter as suas atividades voltadas principalmente à agricultura familiar".
Algumas áreas da cidade, inclusive, convivem com desabastecimento, conforme reconhece Iran Félix. Como medida paliativa, essas comunidades - que não tiveram o nome especificado - "são atendidas com carros-pipas", disse o secretário.
Com tão baixos índices pluviométricos, Félix julga ser "muito difícil" manter a atividade da agricultura de forma lucrativa. "Os índices pluviométricos geralmente são insuficientes para um plantio e desenvolvimento da plantação a contento do produtor. A inconstância do período chuvoso causa pragas nas plantações e a mortalidade das plantas que muitas vezes não conseguem chegar a produzir", detalhou.
Por conta das dificuldades nas culturas mais comuns, o agricultor icapuiense tem implantado novas culturas mais resistentes, como a mandioca. "O Município garante toda a assistência para que não tenhamos impacto social e econômico", finaliza Iran.
'Sofrendo muito nos últimos 4 anos'
A cidade de Madalena, no Sertão Central, recebeu apenas metade do volume médio de chuva no ano passado. Ao longo dos doze meses de 2021, choveu o acumulado de apenas 305,1 milímetros. O baixo índice tem trazido impacto direto à população, conforme reconhece a secretária de Agricultura, Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Município, Maria Lúcia Vitoriano de Lima.
Segundo ela, a cidade "vem sofrendo muito, especialmente nos últimos 4 anos, com os efeitos da estiagem". Por ser um Município com economia predominantemente voltada para a agricultura, o fato de cair pouca água do céu significa pouca fartura no solo. "Não estamos ainda totalmente adaptados a conviver com poucas chuvas", revela.
Levantamento do Diário do Nordeste mostra que a última década quase toda foi marcada por escassez hídrica em Madalena. Com exceção de 2020, quando choveu pouco acima (1,4%) da média histórica, todos os outros anos tiveram volumes acumulados abaixo da normal climatológica. O último ano em que as chuvas foram benevolentes, foi em 2011, quando o Município registrou 683,3 mm ao longo do ano - 12% acima da média.
Diante dos baixos volumes, Lúcia Vitorina explica que foi iniciado uma política de mudança de estratégia no campo. A principal vertente, segundo explica a secretária, é alterar as culturas, substituindo-as por outras que necessitem de menos água.
"Firmamos parceria com a Ematerce para garantir acompanhamento técnico àqueles que queriam mudar o plantio. Incentivamos o desenvolvimento da horticultura e incentivamos também a plantação de palma forrageira e sorgo, uma boa alternativa e que beneficiará, também, a bovinocultura leiteira aqui do Município. Acredito que a médio prazo vamos estar adaptados a essa realidade de estiagem", detalha.
Outra estratégia adaptativa é investir na apicultura, uma atividade que não exige tanta água e que tem boa relação custo-benefício. "Com poucas floradas o apicultor já consegue colher o mel", pontua. Para escoar toda essa produção das culturas alternativas, o Município realiza semanalmente a Feira da Agricultura Familiar. "São 32 produtores que vendem tudo aquilo que eles produzem e plantam, é importante para fortalecer a economia local", completa Lúcia.
Já no abastecimento humano, a secretária garante que, mesmo diante do longo período de estiagem que culminou na redução do volume do principal açude da cidade, o Umari, atualmente com apenas 3,12% de sua capacidade, "os moradores não sofrem com falta de água".
Segundo detalha, são quatro carros-pipas mantidos com recursos municipais, além de 12 carros operados pelo Exército. "Além disso, somente em 2021, perfuramos 21 poços o que ajudou bastante principalmente o abastecimento da zona rural", concluiu a titular da pasta Lúcia Vitorina.
Desafio no abastecimento das populações difusas
Em General Sampaio, cidade do litoral do Pecém, as poucas chuvas dos últimos anos desencadearam uma série de impactos, dentre eles, as mudanças na agricultura e o desabastecimento em comunidades difusas. No ano passado, choveu 25% abaixo da média, que é de 763,8 mm.
O secretário de Agricultura do Município, Geraldo Menezes. revela que em "locais onde não há sistema de água e poços profundos" o desabastecimento é uma realidade. Para reverter este cenário, acrescenta Geraldo, "o Município tem procurado construir cisternas de placa e poços profundos, além de garantir suporte com carros-pipa". Ele, no entanto, não especificou quantas foram construídas e qual a meta de construção para este ano.
Com cerca de 950 agricultores familiares e com um PIB agropecuário que representa 12% do total, o Município teve que se reinventar. Técnicas de convivência com o semiárido - como o plantio em nível, buscando a máxima captação da água das chuvas e criação de quintais produtivos com cisternas de enxurradas - foram aplicadas.
"Também estamos estimulando o plantio de palma adensada e o sorgo, que são culturas de certa forma resistentes aos veranicos e as secas", acrescenta Geraldo.
A reportagem procurou as Secretarias de Agricultura dos municípios de Parambu, Itatira, Independência e Irauçuba, mas não houve resposta.