Quem vive nos centros urbanos cearenses, em cenários construídos por concreto e asfalto, pode estranhar um dado: mais da metade do Ceará é floresta. O Estado tem 57% do território considerado como florestal – ou 8,5 milhões de hectares de extensão, conforme o Inventário Florestal Nacional no Ceará, publicado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), em 2016.
O debate sobre o nosso verde é diário, mas ganha destaque no Dia de Proteção às Florestas, celebrado neste 17 de julho. A data foi escolhida porque já fazia referência ao personagem do folclore brasileiro Curupira, que defende o meio ambiente contra invasores danosos aos bichos e plantas.
O Diário do Nordeste traz aqui, então, as histórias de alguns cearenses que seguem os passos dele. "Curupiras" da vida real, que pautam a vida, o trabalho e a voz na defesa das matas e terras do Ceará.
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, da sigla em inglês) define florestas como áreas maiores do que 0,5 hectare (ou 5 mil m²), com árvores maiores que 5 metros de altura e cobertura de copa superior a 10%.
No Ceará, elas resistem e são determinantes. Hugo Fernandes, biólogo, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e coordenador do projeto Inova Fauna na Sema, descreve o valor das florestas locais como “imensurável”.
“As florestas nos dão alimento, água potável, plantas medicinais, uso turístico e segurança, porque há menos deslizamentos. É muito difícil mensurar o valor econômico de uma floresta. O valor cultural, das danças, crenças e literatura, é mais imensurável ainda”, frisa.
Povos das florestas
As florestas úmidas na Serra da Pacatuba e as áreas florestais do Maciço de Baturité, por exemplo, são determinantes para a existência dos rios Cocó e Pacoti. São espaços para abrigo de fauna e flora, que desempenham também funções importantes para a redução de erosão e diminuição dos riscos de inundação.
Além disso, muitos destes locais estão ligados às comunidades e povos tradicionais, que encontram sustento e riqueza nas memórias sobre o território.
Esse é o caso da Mata do Miriú, entre o Parque do Cocó e a Sabiaguaba, onde a população ainda busca garantias legais de preservação.
São mais de 50 hectares sobre um campo de dunas com a presença de manguezal. O espaço abriga espécies como guaxinim, raposa, cobras e gato do mato.
Por lá, circula um dos "curupiras" cearenses. Roniele Suíra, de 35 anos, já acompanhou a mobilização de lideranças femininas que marcaram a defesa do território da comunidade tradicional Boca da Barra, onde está a Mata do Miriú, e integra os esforços atuais de preservação.
"Uma das maiores ameaças com relação a essa área hoje é a especulação imobiliária. Um empreendimento que pretendia se instalar lá devastaria uma área de extrema importância, tanto para o contexto histórico como para fauna e flora", relata o pescador.
Para evitar a degradação do espaço, a comunidade esteve presente numa audiência pública para a criação da Unidade de Conservação "Refúgio da Vida Silvestre das Dunas da Mata do Miriú", em maio deste ano. O Projeto de Lei Ordinária nº 275, de 2021, busca regulamentar isso e está em tramitação na Câmara dos Vereadores.
"A gente defende que seja de fato definida como uma área de conservação, protegida por lei e passe a ser visitada pelas pessoas terem dimensão de que dentro de Fortaleza ainda existem florestas e populações tradicionais mesmo no litoral", frisa o líder comunitário.
Florestas "privadas"
Identificar, estudar e reunir as informações necessárias para garantir que uma área de Floresta seja uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) é a missão do biólogo Samuel Portela, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, há 13 anos.
As RPPNs são espaços privados onde os proprietários recebem benefícios, como isenção de impostos e prioridade nos pedidos por crédito, em troca da preservação ambiental. Entre os destaques na atuação está a Reserva Natural Serra das Almas.
“É a maior RPPN do Ceará e uma das maiores do Nordeste, com mais de 6 mil hectares de floresta integralmente protegida e que abriga inúmeras espécies e, pelo menos, 4 nascentes (de rios)", contextualiza o biólogo.
Predominantemente dentro do território de Crateús, a gestão da reserva também trabalha com 30 comunidades do Ceará para implementação de tecnologias sociais, da captação da água da chuva ao incentivo à educação ambiental.
Atuante na Associação Caatinga, Samuel já coordenou 21 processos de criação de unidades de conservação da categoria RPPN e 3 unidades de conservação pública.
"A gente realiza oficinas voltadas para os proprietários de terras sobre as RPPNs das vantagens. Aqui no Ceará, infelizmente, ainda não há um apoio financeiro direto aos proprietários", pondera.
Contudo, ele contextualiza a criação do Programa Estadual de Pagamentos por Serviços Ambientais, que pode despertar o interesse de mais proprietários para integrar o grupo das RPPNs.
"A gente coordena o processo de criação de RPPNs nas melhores áreas de florestas conservadas dentro de propriedades. É possível ter áreas com até 30% das florestas degradadas, mas passíveis de recuperação. Então, existem áreas com 100% de ambiente florestal e aquelas com percentual para regeneração, seja por si só ou por enriquecimento", destaca.
São áreas protegidas a partir de uma iniciativa privada, mas que os benefícios gerados por esse proprietário são para toda a sociedade.
Florestas do Ceará
No Ceará, a Savana-Estépica (Caatinga) é a tipologia predominante nas áreas classificadas como floresta por cobrir 7,4 milhões de hectares do Estado. O estudo da Sema identificou 776 espécies vegetais e 346 espécies de árvores, sendo o Marmeleiro a espécie arbórea mais encontrada.
No Ceará, foram consideradas como florestas as seguintes tipologias de vegetação:
- Floresta Ombrófila;
- Floresta Estacional;
- Formações pioneiras;
- Savana florestada;
- Savana estépica florestada;
- Savana estépica arborizada;
- Vegetações secundárias;
- Floresta plantada.
Os municípios de Meruoca (87%), Coreaú (86%) e Santa Quitéria (84%) foram identificados com os de maior proporção de florestas no Ceará. Fortaleza possuía 51% do território considerado florestal na ocasião.
"Uma floresta ajuda a regular o clima local e, por consequência, o clima regional e até o global. Num estado que sofre com a desertificação, a manutenção dessas florestas significa não ter desertificação no restante", analisa Hugo Fernandes.
"Temos uma tendência ao desmatamento"
Para Marcelo Freire Moro, professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC), a expansão de áreas agrícolas e de infraestrutura "está sendo feita em áreas que eram florestadas", o que acelera o processo de desmatamento no Estado.
"Estamos desmatando e queimando todo ano. No ano passado, o Ceará teve mais de 20 mil hectares de área desmatada, segundo mapeamento por satélite. E degradamos muitas áreas, de modo que, mesmo aparecendo como vegetada na imagem, ela está atualmente impactada pela ação humana", pontua.
Tem áreas que aparecem (no satélite) como vegetação, mas já não é mais a Caatinga ou floresta úmida na sua forma conservada. Temos uma tendência ao desmatamento. Apesar de o Ceará ainda ter uma cobertura vegetal razoável, parte dela é degradada porque passou por incêndio, corte de madeira e tem menos biodiversidade.
Por isso, o biólogo Hugo Fernandes aponta que é preciso ampliar o número de unidades de conservação, estabelecer ações com fiscais e dar apoio aos moradores de regiões florestais.
“Precisamos de unidades de conservação que consideram centenas e milhares de hectares. Isso não é um atraso para a economia, pelo contrário: isso significa a manutenção de serviços que ajudam a economia”, finaliza.