Há brancos, mas a maioria é negra: 7 a cada 10 pessoas em situação de rua em Fortaleza são pretas ou pardas. Há mulheres, mas 80% de quem vaga por praças e esquinas da cidade são homens – e há até graduados, com carteira assinada, mas sem teto.
São pelo menos 2.653 histórias povoando as vias públicas da Capital, e quase metade delas (44%) sequer nasceu no Ceará ou no Brasil. Todas, porém, foram identificadas no Censo Geral da População em Situação de Rua de 2021, obtido com exclusividade pelo Diário do Nordeste.
A pesquisa foi feita pela Prefeitura de Fortaleza entre os dias 19 e 23 de julho do ano passado, após a 2ª onda de Covid. Do total de pessoas em situação de rua, apenas 600 tiveram a realidade socioeconômica aprofundada, etapa realizada entre setembro e outubro.
Racismo expresso na rua
Entre os perfis, o recorte racial chama atenção: 71,5% dos entrevistados se declararam pretos ou pardos, ante 15,3% de brancos, 4,2% de indígenas e 2,7% de amarelos. Para Andréa Esmeraldo, psicóloga e pesquisadora, os números expressam uma “interseccionalidade de opressões”.
“Além das questões econômicas, o racismo no Brasil se constitui como obstáculo para a manutenção digna das pessoas negras. Enquanto mais de 50% da população é parda ou preta, quem está na rua corresponde a mais de 70%”, destaca.
O racismo e a falta de oportunidades limitam o acesso das pessoas negras a direitos, seja no trabalho, na escola, em relações de afetividade. E tudo isso pesa. É muito mais provável que um negro acabe em situação de rua do que um não negro.
Para Andréa, esse cenário vem sendo desenhado desde a abolição da escravidão. “Quando houve essa decisão de interromper a escravização, não houve um processo de inclusão dessas pessoas no setor econômico. Daí o surgimento de moradias precárias e pessoas indo pra rua”, recobra.
Outras desigualdades, como de classe e de gênero, também levam diversos grupos identitários a viver em vias públicas das grandes cidades – como as pessoas LGBTI+.
“Para outros grupos com marcadores identitários que não são os hegemônicos, como as travestis e transexuais, a possibilidade de estar na rua também é aumentada. Isso também é a intersecção de opressões que faz com que o acesso aos serviços seja limitado”, analisa.
Apesar de os homens serem maioria nas ruas, a vulnerabilidade socioeconômica agride as mulheres com força. Num barraco erguido às margens da Lagoa da Parangaba, na Regional 4, Sâmia, o bebê que carrega no ventre há 7 meses e o companheiro Paulo César se unem às centenas que encontraram abrigo nas ruas, durante a pandemia.
“Estamos na rua há uns 2 anos ou mais, vivendo de ajuda. Passa gente aí e doa uma cestinha, roupa, uns caldos com pão”, ele diz, ao passo que ela tenta justificar a situação em que estão desde que se conheceram numa praça da cidade.
Tava trabalhando, mas perdi meu emprego. Aqui e acolá é que faço uma faxina, mas agora não posso trabalhar, porque tô grávida. E pra arranjar um emprego, ‘buchuda’...
A violência doméstica, aliás, é apontada por Andréa Esmeraldo como outro fator que se soma aos múltiplos motivos que levam as pessoas às incertezas das ruas. "Ao mesmo tempo em que as famílias ficaram mais vulneráveis, do ponto de vista econômico, houve uma maior desproteção do Estado", completa a especialista.
Impacto dos conflitos familiares
São os desentendimentos e agressões dentro de casa, inclusive, os motivos pelos quais 6 a cada 10 pessoas (59% dos entrevistados) acabam por viver em praças e vias públicas de Fortaleza, conforme o censo municipal. Desde o levantamento anterior, em 2014, os conflitos familiares aparecem como razão principal para ida às ruas.
As divergências entre parentes também prolongam a permanência de indivíduos fora do lar – 60% das pessoas abordadas deixaram de viver na rua em algum momento, mas retornaram em seguida. Delas, 43,6% indicaram os conflitos familiares como causa.
Entre crianças e adolescentes, muitos saem para a condição de rua por abuso sexual ou violência física. Já as mulheres convivem com a violência e, por não terem outras redes, acabam indo para as ruas.
A maioria de quem vai embora de casa rompe todo o contato com os familiares, realidade de 39,3% dos entrevistados no Censo. Outros 27,8% mantêm algum tipo de relação pelo menos uma vez por semana. Entre o restante, (17,7%) uma vez por mês, (7,3%), quase nunca e (7,3%) uma vez por ano.
da população em situação de rua sabe ler e escrever, mas 43% sequer concluiu o ensino fundamental.
Invisibilidade e discriminação
Das causas aos efeitos de estar na rua, são muitos os fatores que interferem nas saúdes física e mental dessa população – a invisibilidade é um deles. O psicólogo e pesquisador Fábio Paz destaca que até a relação com o fato de ser invisível muda, tamanha a pluralidade dos sujeitos.
“Ser invisível num local de grande circulação de pessoas é cruel. Mas, para muitos, é o motivo de estarem na rua. Já vi meninos saindo de sua região por disputas territoriais, fugindo de ameaças. E a rua confere invisibilidade a quem não quer ser visto”, ilustra.
Por outro lado, não ser visto é ser relegado à insignificância. É ter tirada de si a humanidade, a dignidade. Os direitos.
As políticas públicas têm avançado, nos últimos anos, mas há muitos desafios, como a questão da documentação para ter acesso a serviços e benefícios. As políticas também precisam resgatar o ‘eu’ desses sujeitos, quem eles são.
Um dos fatores que alimentam o preconceito e, em alguns casos, a repulsa da sociedade em relação às pessoas em situação de rua é o consumo de álcool e drogas – que, na realidade, é a doença prevalente nessa população, como aponta o censo.
“A droga é, muitas vezes, uma resposta pro que a rua exige. Dormir à noite é um fator de risco, e para ficar acordado, a droga acaba sendo um recurso. Quem atua em trabalho braçal também utiliza para ter pique. É uma resposta”, reforça Fábio Paz.
"O caminho para se trabalhar são iniciativas coletivas, ligadas a políticas públicas; fortalecer o trabalho das ONGs; e, claro, romper preconceitos. Implicar-se mais com essa realidade", finaliza o pesquisador.
Renda é usada para alimentação
Não, não é com bebidas e drogas que a população em situação de rua mais gasta o pouco dinheiro que recebe: é com comida. Quase metade (47%) dos entrevistados citou a alimentação como item com que mais gastaram no dia da abordagem.
Houve quem não tivesse gasto nada (33,3%) ou usado o dinheiro para comprar refrigerantes, água ou suco (26,7%). A maioria consegue, no máximo, R$ 275,00 para tentar suprir todas as necessidades, e mais de 47% não recebem nenhum benefício social.
pessoas em situação de rua passaram pelo menos um dia inteiro sem comer. Das 2,6 mil totais, 49,5% se alimentam de doações. Só 22% conseguem comprar o próprio alimento.
Em menor proporção, aparece quem usou os recursos para comprar cigarro (20,3%), bebida alcoólica (17,7%) e drogas ilícitas (11,5%). Produtos de higiene (7,7%) e rémedios (3,8%) também apareceram entre as respostas.
Cada entrevistado podia citar mais de um item, e, por isso, as porcentagens não totalizam 100%.
O que será feito a partir dos dados
Fernanda de Sousa, secretária da Pastoral do Povo da Rua, alerta que o censo "é uma conquista", mas que não basta: é urgente executar políticas e ações a partir dele. "Senão fica número por número. E números são frios, mas falam de uma realidade gritante e de situações que merecem cuidado, atenção e investimento."
De acordo com o prefeito de Fortaleza, Sarto Nogueira, o levantamento deve embasar políticas públicas num plano emergencial para atender a essa população, com ações voltadas a alimentação, ampliação de abrigos e assistência psicossocial. Os detalhes devem devem divulgados nesta quarta-feira (2).
O objetivo do poder público e de entidades de apoio às pessoas em situação de rua, no fim das contas, é um só: que, por respeito e atenção aos direitos humanos fundamentais e básicos, elas não estejam mais lá.
A rua é só o espaço de passagem. Não haveria problema numa pessoa querer viver na rua – o problema é quando ela não tem a opção de não viver.