Crianças estão sujeitas a diferentes condições de desenvolvimento e, por isso, apresentam variadas condutas e comportamentos. Contudo, nem sempre essas manifestações têm cunho patológico, e a tendência de aumento na prescrição de psicofármacos para problemas não médicos preocupa especialistas ligados à defesa desse público.
A falta de rigor na prescrição de medicamentos para o tratamento do transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), entre crianças e adolescentes, chegou a ser tema de uma audiência pública promovida pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado Federal, em novembro de 2023.
Na ocasião, debatedores citaram um aumento nacional no consumo de Ritalina, droga que tem como princípio ativo o metilfenidato e é receitada para casos de TDAH. Em maio deste ano, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) chegou a lançar uma nota técnica alertando sobre a falta do remédio no mercado brasileiro.
Conforme a Pasta, a farmacêutica Novartis informou que, devido à “alta demanda pelo medicamento em 2022, a companhia teve seu estoque de segurança zerado, e subsequentemente, enfrentou um atraso na liberação de novos lotes”.
Em meio a críticas sobre o consumo exagerado, a Câmara dos Deputados aprovou, em maio deste ano, proposta que autoriza o Ministério da Saúde a incluir o metilfenidato na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) do Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, dá prioridade a essa droga nos atendimentos de rotina.
Mas, afinal, por que crianças estão recebendo progressivamente mais diagnósticos e, consequentemente, mais prescrições de remédios? Quais funções os medicamentos têm tido na sociedade hoje em dia? Qual é o contexto social e político que simultaneamente é construído e constrói esse cenário?
Essas perguntas guiaram as psicólogas Beatriz Teixeira e Júlia Leitão em uma mesa redonda durante o V Simpósio Internacional de Psicanálise, promovido pelo curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, na última semana. Para elas, essa “normalização” se alia a uma conjuntura que não aceita diferenças, questionamentos ou individualidades.
Segundo as pesquisadoras, as crianças não estão apartadas de questões culturais e se constituem a partir da dinâmica social - hoje muito marcada por um neoliberalismo que exige mais produtividade a qualquer custo e diminui o bem-estar coletivo.
Sem tempo a perder, observam elas, muitos pais e mães já chegam aos consultórios buscando diagnósticos para entender “o que o filho ou a filha tem/é”, desconsiderando até comportamentos considerados normais para a idade.
Há uma dimensão de podar e cercear as possibilidades dessa criança se apresentar como um sujeito que deseja, que é capaz de ser criativo e autônomo. É uma criança que às vezes fica limitada dentro daquilo que faz e gosta por uma questão de diagnóstico ou de uso de medicamento.
Ela defende que, antes de qualquer rótulo ou uso de medicação, é importante olhar para a criança como uma pessoa em potência e capaz de dizer o que sente, a partir de experiências próprias.
A dificuldade está justamente nesse cruzamento de discursos: vista como incapaz de falar sobre si, a criança é submetida a discursos médicos, psiquiátricos e psicológicos. Mas, para Júlia, não se pode dispensar a avaliação de quem mais a conhece e convive com ela: os próprios pais.
“É interessante colocá-los nesse lugar de responsabilidade e de pessoas que têm algo a dizer também sobre aquela pessoa com quem eles convivem diariamente em casa. O momento de recorrer a um profissional e a ajuda de alguém ocorre quando essas possibilidades e essa relação se mostram muito sofridas e difíceis”, analisa.
Terceirização dos cuidados
Ainda nessa lógica, Beatriz Magalhães percebe atualmente uma terceirização dos cuidados com essa criança. Diante da autoridade dos saberes de um médico, de um psiquiatra, “existem pais que não se sentem autorizados a serem pais”. A situação se agrava quando profissionais não especializados em saúde mental partem para os diagnósticos.
“É muito comum, por exemplo, um clínico geral dar um laudo, às vezes em uma consulta que é única, que não tem um acompanhamento maior com aquela criança para conhecer mais em qual contexto ela está vivendo. Aí vem esse risco de a criança ficar fechada na caixinha do diagnóstico”, pondera a psicóloga.
Parceria em casa
Apesar dos desafios, as pesquisadoras acreditam ser possível reverter o fenômeno da medicalização a partir do maior conhecimento do papel dos pais dentro da família.
Júlia explica que, em vários casos, as crianças podem se apresentar “insubmissas”: gritam, esperneiam, fazem birra ou chantagem. Nem por isso precisam do laudo de algum transtorno. Por isso, cabe aos pais ter paciência, disponibilidade e atenção.
“Às vezes, essas investidas vêm com muita desorganização e precisam de uma contenção. E não uma contenção física, de segurar a criança; mas emocional, de saber nomear aquilo e de permitir que ela siga até o momento em que eu percebo que a situação não se mantém mais”, aconselha.
Contudo, ela critica: “é muito difícil para um pai ou uma mãe perceber qual é o momento de intervir se ele ou ela está no celular o tempo todo ou distraído fazendo outras coisas”.
Apresentar limites
Beatriz lembra ainda que acompanhar um momento de irritação ou agitação não significa permitir que a criança faça qualquer coisa. “Existe esse outro lado da moeda dos pais que não querem frustrar os filhos de jeito nenhum, e existem crianças que não conseguem lidar com a realidade e com os limites que existem na vida”.
“Há uma diferença entre a criança que tudo pode, na hora que ela quer, e a que não pode se expressar de nenhuma forma. Tem que haver um meio termo”, percebe.
Júlia Leitão complementa: é importante que os adultos tenham clareza sobre seu papel nos cuidados e na educação da criança, agindo tanto na apresentação do mundo como na contenção dos limites.
“Nenhuma criança cresce sem limites, muito pelo contrário: sem eles, vai ser um sujeito extremamente mal adaptado à sociedade. Isso pode acabar se tornando uma patologia e, aí sim, entra a intervenção médica e psiquiátrica”, finaliza.