Foram 27 anos vivendo com um nome do qual não se “sentia dona”. A cearense Marina Diniz, 31, passou meses em um processo judicial para mudar sua nomenclatura oficial por julgar o antigo chamativo, herança de uma fusão “criativa demais” dos nomes do pai e da mãe.
Estudante de Direito, “Ana Ruth” Santos, como prefere ser chamada, também acumula 34 anos sem se identificar com a forma como foi batizada e que ainda está estampada em seus documentos. O desconforto é tão grande que ela chegou a se afastar da mãe por esta se negar a utilizar o nome escolhido.
Mas por que, aparentemente tão simples, um nome pode se tornar tão importante? O psicólogo Felipe Meira ressalta o nome como parte do processo de autoidentificação e de reconhecimento por outras pessoas. No entanto, também reconhece que a sociedade impõe formas de pensar e agir, “e quem é diferente acaba passando por situações de constrangimento”.
“A forma de lidar com isso é muito pessoal e é difícil delimitar um momento. Como é algo constante, é muito mais um acúmulo do que apenas um dia, uma situação. Se esse incômodo está fazendo mal a alguma pessoa, nós precisamos perceber, e a pessoa afetada também deve manifestar sua chateação”, recomenda.
Para facilitar mudanças de nomes, a Lei 14.382/2022 começou a ser empregada em todo o Brasil, no mês passado, permitindo a alteração diretamente em cartórios, sem que o interessado precise explicar os motivos e nem recorrer à Justiça. Qualquer pessoa maior de 18 anos pode fazer a solicitação, mas apenas uma vez.
O presidente da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado do Ceará (Arpen-CE), Vitor Moraes, considera a nova legislação um avanço importante, “facilitando a questão de direitos e resolvendo problemas que angustiavam algumas pessoas”. “Isso melhora a qualidade de vida de quem tem essa necessidade, esse desejo”, completa.
“Eu me sinto Marina”
Os nomes de registro de Marina e Ana Ruth não serão mencionados pela reportagem. Elas não precisam ser expostas a mais situações vexatórias do que as que já atravessaram ao longo da vida.
Hoje morando em Brasília, Marina conta que “sempre teve vergonha” do antigo nome. A situação-gatilho para iniciar o processo de alteração só veio aos 27 anos, quando a mãe dela reencontrou a mãe biológica.
Explico: a mãe de Marina foi adotada e recebeu um nome “bem diferente” do pai. Ao se casar, a mulher começou a nomear os filhos mesclando partes do próprio nome com o do marido. “Foram aparecendo coisas cada vez mais criativas e foi nos prejudicando, fazendo mal pra gente”, relata Marina.
Minha mãe reencontrou a mãe biológica, e a mãe dela pediu que ela mudasse para o nome que ela tinha pensado. Até então, eu tinha receio de mudar e magoar minha mãe, mas quando ela disse que teria que mudar, eu disse: ‘se você vai, eu também vou’.
Apesar do riso inicial, Marina percebeu um certo desconforto da genitora. Mesmo assim, conta que os pais “aceitaram de boa”. Até um concurso familiar foi organizado: a irmã sugeriu Marina; o marido, Alice. Após a votação, Marina venceu.
“Hoje falam que tenho cara de Marina mesmo, e eu me sinto Marina”.
Depois de se informar sobre os trâmites, a escritora procurou a Defensoria Pública do Distrito Federal para iniciar o processo, em dezembro de 2020. Foram meses trocando mensagens, documentos e comprovantes até junho de 2021, quando ela foi autorizada a ir no cartório solicitar as mudanças oficiais.
“Até estranharam porque não é algo comum”, diz Marina. Depois, ela precisou mudar RG, CPF e título de eleitor. Hoje, ela ainda enfrenta dificuldades na alteração em bancos e no Programa Universidade Para Todos (Prouni), no qual tem bolsa. Por isso, embora tenha sido orientada a se desfazer dos antigos documentos, ainda os guarda.
Para Marina, a facilitação da nova lei abre um leque de esperança para quem não se reconhece em uma nomenclatura.
“Eu sou mais reservada e tímida, e não gosto de chegar e chamar atenção. Então, tudo que envolvesse chamar meu nome publicamente era muito constrangedor, me tirava a paz. Lembro de um trabalho que fui apresentar para uma banca super importante e fiquei muito constrangida porque o pessoal não conseguia pronunciar meu nome. Gosto dessa facilidade de agora porque acho que nome carrega muito quem você é”, percebe.
“Isso me maltratava muito”
Ana Ruth Santos já tentou inserir o nome social em seus documentos, mas enfrentou uma recusa. “Entrei numa depressão, num desespero, num choro, porque isso me maltratava muito”, revela. Atualmente, ela está com um processo aberto com apoio da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) para fazer a alteração num cartório.
O constrangimento com a própria identificação ocorre desde criança, com diversas angústias ao ter seus apelos negados - inclusive da própria mãe. “Ana Ruth” era uma escolha do pai, confessou ele antes de morrer, mas a esposa decidiu mudar quando do registro no cartório.
“Pra mim, é uma ofensa. Já saí de emprego porque falei pra gerente que queria ser chamada pelo meu nome social, mas ela falou que não tinha nenhuma lei que a obrigasse a me chamar assim. Minhas colegas tinham que me chamar por esse nome na frente dela e me pediam perdão depois”, relata.
O esposo, inclusive, só descobriu o nome “verdadeiro” de Ana quando passou a conviver com a família dela. Porém, respeita a escolha da companheira e até a chama carinhosamente de “Aninha”. Mas o processo não é fácil: a estudante já precisou de assistência psicológica para lidar com o trauma.
Hoje, a vida parece entrar nos eixos. Ela diz ser respeitada no trabalho e é tratada como Ana pelos amigos. “Eu me sinto mais feliz assim”, resume.
O psicólogo Felipe Meira reitera o papel de pessoas próximas como apoiadoras da mudança; especialmente a responsabilidade dos pais, que devem “pensar no que os filhos poderão passar” ao nomeá-los. “Quando um filho toma a decisão de mudar, é preciso respeitar. Não foi algo à toa, foi pensado. Muitas vezes há resistência no começo, mas com o tempo, a tendência é que se aceite”, diz.