Kátia, a mulher-peixe, presenteia com o mar quem tem medo de nadar

Fortalezense do Titanzinho dá instruções a pessoas que buscam se aventurar no oceano há quase uma década

Existe um ditado que diz: quem nasce no Titanzinho, geralmente, vira peixe. E quem conta é uma nascida e criada na comunidade litorânea de Fortaleza, há décadas um paraíso para formação de surfistas - ao mesmo tempo em que é provocada pela especulação imobiliária.

A pele queimada de sol e os cabelos rígidos pela maresia formam o retrato de Kátia Lima, 46 anos, guarda-vidas e instrutora de nado em mar livre. Os olhos apertados pela sensibilidade à luz validam o sorriso aberto e a simpatia da fortalezense, que se alegra a cada conquista dos alunos.

Neste Natal, o Diário do Nordeste, que conta centenas de histórias todos os dias, resolveu fazer embrulhos bonitos e entregá-los a você. Esta é a segunda remessa do especial “Histórias de Presente”.

As primeiras memórias de Kátia dentro da água são turbulentas como as ondas que quebram no “quintal” de casa. “Eu só me lembro de já estar na água e nadando com os amigos que entravam pra brincar. Ia e vinha muitas vezes, e a gente ajudava os menores a sair”, rememora.

Quando eu me dei por gente mesmo, já grande, lá pelos 15 anos, entendi que já sabia nadar. É muito natural, uma conexão muito boa que eu tenho desde a infância.

Por ser a principal fonte de lazer da comunidade, segundo ela, quem cresce no Titan vira peixe. Desenvolve cedo a aptidão para mergulhar, dar braçada, imergir e boiar. O pulmão ganha força, o pé vira barbatana. 

Para os meninos e meninas-peixe, nadar é tão simples. Para os afastados do mar, nem tanto: levam para a areia da praia o medo da imensidão.

“Quando elas não têm esse convívio, acham que vão se afogar logo de início. Aí eu converso, digo que é preciso conhecer o ambiente, entender até onde podem ir, até onde podem se superar”, orienta a instrutora.

O legado de um amigo

Foi por sugestão de um amigo, o bombeiro civil Ernani Santos, que Kátia começou a repassar seus conhecimentos para outros profissionais em formação, num curso técnico, por volta de 2013. Os dois atuaram como socorristas “de asfalto” juntos, por quase quatro anos, e ele conhecia o potencial da guarda-vida.

“Ele me ensinou muito e me incentivou a trabalhar nessa área. Dizia que eu tinha uma habilidade muito grande na água”, conta ela, nova professora da “disciplina” no cursinho que Ernani coordenava.

Mas o destino prega peças cruéis, às vezes. Kátia ficou de ensinar Ernani a nadar porque ele “morria de medo”. O amigo faleceu antes das aulas, vítima da Covid-19, em 2021. “Ele ficou me devendo”, diz a água salgada que escorre dos olhos dela, enquanto observa o mar, durante a entrevista.

Amizade forte assim não se apaga, nem pelo vaivém das ondas.

- “Tio”, nós vamos pra Beira-Mar
- “Tia”, tira essa ideia da cabeça
- Não, cara, tu tem que aprender a nadar! Como é que um homão desse, com milhões de funções na vida, não tem essa habilidade? 
- Tia, eu morro de medo. É muita água pro meu pulmão.

Confiança se aprende

Depois que a escola fechou, Kátia continuou a dar aulas de natação em mar aberto, desta vez de forma individualizada. Seu escritório é a praia do Náutico, na Avenida Beira-Mar. Graças a ela, Luciano, Josi, Valeska, Roberto e outros tantos alunos vão perdendo o receio da água.

“Você tira a fobia e dá a liberdade, porque isso vai ser pra vida inteira. Nadar é gratuito: o mar está aí pra isso. Só precisa de respeito e equipamentos de proteção, que os principais são o flutuador e os óculos”, explica.

Respeito, aliás, é a principal lição ensinada pela mulher-peixe, que já nadou 6 km entre o Náutico e o navio encalhado Mara Hope, um dos cartões-postais da orla da Capital cearense.

Para ela, na água, você está sozinha num “outro mundo”, alheio e desconhecido. Por isso, nunca tirou da cabeça um ditado que os mais velhos e a própria mãe repetiam: “o mar não tem cabelo”. Isto é, num momento de desespero, não há onde se segurar.

Mas, antes de enfrentá-lo, o percurso é longo. Nas primeiras aulas, há muita conversa para se descobrir o grau de medo do aluno e os limites da segurança. Depois, se começam o uso de flutuadores, a respiração lateralizada, as primeiras braçadas.

“A parte de não conseguir aqui não existe. Digo: ‘100% é seu e meu. Vamos dividir? 50% seu, 50% meu. A sua vontade de aprender e a minha de ensinar’”, garante Kátia. “Se o aluno quiser dar continuidade, procura um profissional de educação física. O meu empenho é evitar o afogamento”.

Evitar afogamentos

Como boa profissional, Kátia leva na ponta da língua as estatísticas e recomendações da Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático (Sobrasa). A entidade revela que os afogamentos são mais comuns do que se pensa, e dados do Ministério da Saúde comprovam.

De janeiro a agosto deste ano, 194 pessoas morreram no Ceará por “afogamento e submersão acidentais”, de acordo com o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Destas, 147 faleceram em “águas naturais”. Em todo o Brasil, foram 2.795 vítimas.

No ano anterior, 2021, foram 2.137 afogamentos em águas naturais no Brasil, sendo 159 no Ceará. Somando aos demais tipos (incluindo piscinas e banheiras), foram 4.647, dos quais 244 no Ceará.

“O afogamento é aspiração de líquidos não corporais”, define Kátia, em tom didático. “São 6 graus. Quem nunca se afogou tomando banho no chuveiro, tomando água? Nadando, o grau 1 sempre acontece: a gente acaba aspirando água, mas é pouquíssimo”.

“São 16 afogamentos todos os dias”, indigna-se a guarda-vidas. “É um custo muito alto para a saúde, traz graves sequelas a partir do grau 2. E a maioria das vítimas é criança. É muito triste saber que elas se afogam em piscina, bacia, balde, vaso sanitário”. 

É nesse momento da entrevista que a instrutora revela seu sonho: dar aula para crianças, num mar tranquilo e sem ondas. Ela defende um projeto educativo, para conscientização em escolas públicas sobre os riscos da água sem conhecer o ambiente aquático, desde as primeiras séries.

Por que o poder público não dá essa atenção, já que o Ceará é muito extenso em água? Não só em praia, mas em rios, represas e lagos. Seria muito importante.

O que o mar ensina

Os alunos da mulher-peixe não ganham apenas autonomia, mas um pacote extra de vantagens. Criam sociabilidades na praia, fazem amigos, se integram a grupos de natação. Segundo ela, essa fuga da solidão aumentou após a pandemia, tão provocadora de adoecimentos mentais - sobretudo durante o isolamento.

É a troca entre gente, e de gente com a água, que alimenta o propósito de Kátia. Ela quer dar de presente a mesma sensação ao molhar os pés, o peito, a cabeça, a alma.

“A liberdade é imensa, é como se eu fizesse parte daquele ambiente. Claro que a gente precisa ter limites, mas esse respeito também vem com a conexão. É como se eu tivesse voando sem estar no ar”.