Há 190 anos, nascia no Ceará a figura histórica de uma mulher que se opôs às regras de seu tempo e ganhou alcunhas como “matriarca” e “governadora do sertão”. Fideralina Augusto Lima, ou “dona Fideralina de Lavras da Mangabeira”, demonstrou grande habilidade política e deixou legados que repercutem até hoje.
Fideralina nasceu naquele município, na região do Cariri, distante mais de 400 km de Fortaleza, em 24 de agosto de 1832. Ela foi batizada pelo padre Alexandre Verdeixa, conhecido como “Canoa Doida”, quando este foi vigário de Lavras.
À época, as mulheres não possuíam espaço de destaque na vida socioeconômica ou política, sendo educadas apenas para o recato do lar, como boas esposas e mães. Porém, Fideralina cresceu ouvindo decisões políticas tomadas por seus pais, Isabel Rita de São José e o major João Carlos Augusto, deputado da Assembleia Provincial cearense.
Assim, desde cedo, a mulher cultivou um espírito de liderança e trato para negociações. Sem poder concorrer a cargos oficiais, ela só teria prestígio social através do matrimônio. Assim, casou com o major Ildefonso Correia Lima, com quem teve 12 filhos.
Fideralina foi ganhando espaço na vida pública em dois momentos. Primeiro, depois que o pai faleceu, em 1856. Primogênita da família, ela passa a encabeçar os jogos no poder de Lavras, segundo a pesquisadora Cristina Couto, presidente da Academia Lavrense de Letras (ALL).
“O marido dela multiplicou os bens dela, era investidor. Construiu o cemitério, o mercado público, era presidente da Câmara. Com a morte dele, ela começa a colocar filhos, sobrinhos e parentes no mando de Lavras”, rememora.
A “coronela” fixou residência no sítio Tatu, sempre cercada por serviçais e “cabras” armados encarregados de sua segurança. Afinal, ela detinha muitas posses territoriais e acumulava algumas inimizades. A matriarca criou os filhos pautada sobretudo pela política. Como resultado, três deles foram eleitos deputados estaduais.
“Ela tanto era poderosa como tinha muito prestígio em todo o Cariri, tinha o mesmo poder de decisão que todos os coronéis da região. Mas ela não defendia uma causa, era uma coisa muito familiar”, explica Cristina.
A manutenção do poder a longo prazo também se dava pelos casamentos arranjados por Fideralina. Casava os filhos com as sobrinhas, e as filhas com filhos e sobrinhos de chefes políticos da região. “As alianças dela eram pelos casamentos das filhas”, diz Couto.
Briga entre filhos
Um dos momentos mais marcantes e reproduzidos de sua história foi a derrubada do próprio filho, Honório Correia Lima, da chefia da Intendência local. O cargo era equivalente à Prefeitura Municipal, nos dias de hoje.
Era novembro de 1907 quando Fideralina tomou partido de outro filho, o coronel Gustavo Augusto Lima, para depor Honório através de luta armada. Honório já tinha sido deputado estadual por três mandatos consecutivos e substituiu - também por atuação da mãe - o intendente Manuel José de Barros.
O “erro” de Honório foi se mostrar contrário a alguns interesses da genitora, gerando discussões no próprio seio familiar. Foi quando Gustavo começou a pressionar Fideralina para encontrar uma solução.
Contrariado e reunindo suas forças armadas, Honório Lima saiu de Fortaleza, onde vivia e de onde governava Lavras, para derrubar o irmão. Contudo, a matriarca enviou os próprios homens à briga e expulsou Honório, dando a ordem expressa de que ninguém atirasse no filho, sob pena de morte.
No fim do conflito, Honório se rendeu e se mudou com a família, primeiro para Caririaçu, depois para Fortaleza. A partir dali, a família Augusto se dividiu de forma ferrenha. Fideralina, porém, se recolheu às atividades no sítio Tatu e deixou total poder ao coronel Gustavo.
Apoio a Padre Cícero
De forma direta, Fideralina também contribuiu para a Sedição de Juazeiro (1913-1914), revolução dos coronéis do sertão do Ceará descontentes com a interferência do governo federal na política do estado. Para diminuir o poder das oligarquias locais, o presidente Hermes da Fonseca tirou do poder a família Accioly.
Os coronéis aliados procuraram apoio do padre Cícero, que incentivou as camadas populares a darem sustentação à revolta. Assim, os sertanejos, inclusive recebendo vasta quantidade de armas, munições e cabras patrocinados por Fideralina, lutaram e venceram as forças do então governador Franco Rabelo.
Resgate da memória
Já idosa, Fideralina passou a se dedicar às atividades do sítio Tatu. Ela morreu em 16 de janeiro de 1919, aos 86 anos, deixando como herança um grande poderio para os Augustos. “Foram 200 anos de mando direto em Lavras, a maior oligarquia do Nordeste”, argumenta Cristina Couto.
Segundo a pesquisadora, a estrada de ferro também chegou à cidade em 1917, por influência da mulher, e durante seis anos atendeu a todo o Cariri. A partir dali, Lavras ganhou impulso e se desenvolveu.
Durante muitos anos, quando a família Augusto perdeu o mando, os novos ocupantes do poder denegriram a imagem de Fideralina, conforme a presidente da ALL. Porém, o legado político e intelectual da coronela reverbera até hoje, com descendentes ainda ocupando cargos na gestão pública.
Entre eles, estão Roberto Cláudio, ex-prefeito de Fortaleza; e os deputados estaduais Heitor Férrer e Cláudio Pinho. Nas artes, ela é ascendente do cineasta Karim Aïnouz e da pintora Sinhá D’Amora.
Só na década de 1990 houve o resgate do interesse por sua figura. Sua trajetória foi inspiração para a autora cearense Rachel de Queiroz escrever o livro “Memorial de Maria Moura”, além de objeto de documentários e diversos estudos acadêmicos.
Hoje, o sítio Tatu ainda existe, com capela e casa-grande. Existe também a casa da cidade, no Centro de Lavras da Mangabeira, recheada de fotografias e uma enorme biblioteca, adquirida por herdeiros para servir como museu. Atualmente, o local passa por restauração, que deve ser concluída em 30 dias.