Fortaleza, hoje a quarta maior cidade do Brasil, tem milhares de ruas e avenidas distribuídas nos 121 bairros. No entanto, essa grande quantidade pouco lembra a configuração que ela tinha há mais de 200 anos, quando foi criado o cargo de “arruador” para ordenar os poucos lugares existentes.
Para relembrar essa história, o Diário do Nordeste consultou artigos e livros de Clélia Lustosa, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, bem como outras obras acadêmicas que tratam do período.
Mesmo sendo capital desde 1726, Fortaleza ainda era uma vila de pouca importância econômica, isolada das áreas de maior produtividade, funcionando mais como posto comercial e perdendo destaque para vilas como Aracati, Sobral, Crato e Quixeramobim.
Ela só ganha relevância a partir de 1799, quando o Ceará é desmembrado da província de Pernambuco (ganhando permissão para comércio direto com o reino) e a capital se torna ponto favorável à exportação do algodão cearense para a Europa.
No ano de 1800, as estimativas apontavam uma população de cerca de 1.000 habitantes, devido à precariedade da infraestrutura. A primeira planta da cidade revela poucas dezenas de casas, não arruadas, construídas sobre terreno arenoso e sem nenhum calçamento.
No entanto, a cidade cresceria aos poucos: no primeiro Censo Demográfico nacional, em 1872, foram contabilizadas 42.458 pessoas. Logo, com a expansão populacional, era necessário algum tipo de ordenamento na ocupação do espaço.
Assim, o disciplinamento da cidade de Fortaleza foi um dos primeiros atos do primeiro presidente (atual cargo de governador) do Ceará autônomo, Bernardo Manuel de Vasconcelos. Em 1º de julho de 1800, ele nomeou o português Manuel Francisco da Silva como o “arruador” oficial.
O objetivo da contratação era “dar às ruas certa orientação e regularidade e disciplinar o traçado da vila de Fortaleza”, de acordo com Clélia Lustosa. Ou seja, planejar e abrir ruas.
Por volta de 1810, conforme relatos históricos do comerciante inglês Henry Koster, a vila de Fortaleza tinha apenas quatro ruas partindo da Praça do Conselho (atual Praça da Sé, onde fica a Catedral Metropolitana):
- Rua da Cadeia ou do Quartel
- Rua da Boa Vista, atual Rua Floriano Peixoto
- Rua dos Mercadores, na margem oriental do riacho do Pajeú
- Rua da Fortaleza, depois denominada Rua da Misericórdia
A contribuição de Paulet
Com a necessidade de construir edificações públicas e elaborar normas para a expansão da vila, o governador de 1812 a 1820, coronel Manuel Inácio de Sampaio (hoje homenageado na Rua Governador Sampaio, no Centro), trouxe como ajudante o engenheiro militar português Silva Paulet.
Foi dele o primeiro plano de expansão da vila, que funcionou como “forma” para a cidade, seguindo um padrão xadrez de ruas paralelas com inspiração em modelos europeus e deixando de lado a dinâmica de crescimento natural, com edificações que buscavam acompanhar o trajeto do riacho Pajeú, principal fonte de água até então.
O papel do arruador, inclusive, foi reforçado no primeiro Código de Posturas, de 1835. Segundo Clélia Lustosa, a partir desta legislação, o alinhamento tornou-se questão frequente em outros códigos, bem como a exigência de se construir a partir da planta.
O desenho de Simões
Nos anos 1850, já era constatado que a cidade realmente se organizou pelo traçado em tabuleiro de xadrez por meio de duas plantas organizadas pelo arruador português Antônio Simões Ferreira, anteriormente auxiliar de Paulet.
Em 1856, o padre Manuel do Rego de Medeiros elabora uma representação mais atualizada da cidade a partir do desenho de Simões: são mostradas ruas alinhadas, praças delimitadas e vários edifícios, como o cemitério de São Casimiro, a Cadeia, o Hospital de Caridade (Santa Casa de Misericórdia), a Praça do Patrocínio (José de Alencar) e a Praça Nova (do Carmo).
A modernização de Herbster
Três anos depois, em 1859, a “Planta Exacta da Capital do Ceará” é levantada pelo arquiteto recifense Adolfo Herbster, contratado pela Câmara Municipal para planejar e controlar a expansão de Fortaleza.
Durante o trabalho dele, a função do “arruador” foi substituída pela do “arquiteto”, agora o profissional incumbido de elaborar as plantas urbanas, conforme resolução de 1865 da Câmara.
Em 1875, Herbster projetou uma sequência de “ruas largas”, limitando o núcleo urbano da cidade, que receberiam os nomes de “Boulevards” - hoje conhecidas como avenidas. Eram elas:
- Boulevard do Imperador (Avenida do Imperador)
- Boulevard da Conceição (Avenida Dom Manuel)
- Boulevard do Livramento (Avenida Duque de Caxias)
O planejamento estendia a cidade muito além da área já construída, alcançando lugares para leste até a Rua da Aldeota (hoje Nogueira Acioli); para sul, até a rua dos Coelhos (Domingos Olímpio), e para oeste até as Praças Gustavo Barroso e Paula Pessoa, na região da Jacarecanga.
“A proposta de Herbster foi tão significativa para Fortaleza, que, até hoje, o centro principal da cidade está ainda circunscrito aos limites das avenidas por ele traçadas”, explica Clélia.
Para a autora, a implantação de infraestrutura e serviços em áreas de população de maior poder aquisitivo foi fator preponderante no direcionamento da expansão da capital.