Entre ocupações e despejos, conflitos fundiários afetam pelo menos 20 cidades do Ceará

Mais de 60 cearenses estão em programas de proteção devido a ameaças ligadas aos atritos; Estado criou grupo de trabalho para mediar questões e prevenir violência

Morar numa casa há décadas e passar a viver sob constante ameaça de remoção. Assim é o cotidiano de comunidades do Ceará que enfrentam conflitos fundiários, atritos que atravessam as terras de pelo menos 20 municípios, segundo o Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace).

Os problemas afetam principalmente a zona costeira, e vão desde ocupações e tentativas de despejo até grilagem (registro de terra pública sem autorização), como pontua João Alfredo Telles Melo, superintendente do Idace.

“Muitas vezes existem situações extremamente conflituosas e violentas em ordens de despejo e reintegração de posse, por exemplo, com pessoas feridas e até mortas”, lamenta João Alfredo.

Para mediar os atritos e propor soluções, o Governo do Estado instituiu, em abril deste ano, o Grupo de Trabalho Interinstitucional de Conflitos Fundiários, que reúne órgãos públicos, do Judiciário e da sociedade civil.

“O GT vai se reunir e definir as metodologias. A primeira coisa é evitar despejos, violência. Em Fortim, temos casos que envolvem inclusive pistoleiros. Em Fortaleza e nas cidades, o trabalho vai se voltar para a parte de moradia urbana”, pontua o superintendente do Idace, um dos órgãos integrantes do grupo.

A Cartografia Social Costeira do Ceará, produzida pelo Laboratório de Geoprocessamento da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2022, lista alguns conflitos existentes na costa do Estado:

Conflitos entre especuladores imobiliários e moradores em:

  • Icapuí;
  • Aracati; 
  • Fortim;
  • Beberibe;
  • Paracuru;
  • Paraipaba; 
  • Camocim; 
  • Cumbe; 
  • Tatajuba; 
  • Pontal do Maceió.

Conflitos entre parques eólicos onshore e offshore (existentes ou projetos) e moradores de:

  • Icapuí;
  • Aracati; 
  • Fortim;
  • Beberibe;
  • Amontada; 
  • Itarema; 
  • Tatajuba; 
  • Bitupitá;
  • Preá;
  • Almofala;
  • Caetanos de Cima;
  • Pontal do Maceió;
  • Lagoinha;
  • Paracuru;
  • Comunidade Quilombola Ubarana;
  • Camocim;
  • Chaval;
  • Barroquinha;
  • Trairi;
  • Acaraú;
  • Cumbe;
  • Jericoacoara;
  • Assentamento Maceió;
  • Comunidade de Xavier.

Impactos dos conflitos

Uma das comunidades sob necessidade de mediação é a “Terra Prometida”, ocupação formada em terreno privado na Av. do Aeroporto, em Fortaleza, durante a pandemia de Covid. Hoje, já são cerca de 310 famílias vivendo lá.

Socorro Santos, ou “Mana”, gestora da ocupação, afirma que “a pobreza e a guerra urbana” colocam os barracos como únicas opções dos moradores – e que o processo judicial que trata da situação das famílias está em curso.

Mais de 80% das casas já são de alvenaria, a comunidade tá consolidada. A gente sugeriu à Justiça que Município ou Estado indenize o supermercado (dono do terreno) e mantenha as famílias aqui.
Socorro Santos
Moradora da Ocupação Terra Prometida

A insegurança, porém, é uma constante. “As famílias adoecem, vivem aflitas. Sofremos pressão pra sair. Mas o que falei pro juiz é que se a gente sair daqui, (o destino) é Praça do Ferreira. A rua. É lá onde estão várias famílias que não têm onde morar”, sentencia Mana.

Fora da capital, a insegurança sobre os próprios chão e teto se acentua – principalmente para comunidades de pescadores, quilombolas e assentamentos rurais, como destaca Andréa Camurça, assistente social e coordenadora do eixo Direitos Territoriais e Socioambientais do Instituto Terramar.

“Acompanhamos essas comunidades que estão em situação de conflito fundiário há muito tempo, mas com o passar dos anos isso se agudiza, essa investida de olhar pra zona costeira e ver como ‘a menina dos olhos’ pra expansão de investimentos”, pontua.

Chegam desde os megas empreendimentos até atividades turísticas e, com esse avanço, cresce a especulação imobiliária, principalmente desde 1980. E, então, acabam invadindo várias comunidades.
Andréa Camurça
Assist. social e coord. no Instituto Terramar

Andréa menciona ainda a expansão da “implementação da energia eólica” como um dos fatores que intensificam os conflitos, atualmente. “Não somos contra a energia, mas somos contra a forma como ela chega”, frisa.

“Há uma ausência do direito à terra às comunidades tradicionais costeiras, até porque boa parte está em terrenos da União. É um contexto muito agravado diante das diversas formas de especular essa terra, de explorar e degradar o meio ambiente”, avalia a assistente social.

64
cearenses estão inseridos em Programas de Proteção ao Defensor de Direitos Humanos devido a ameaças ligadas a conflitos fundiários e socioambientais, segundo o Instituto Terramar. São 24 casos de disputas no Estado.

Sobre a criação do GT interinstitucional, a gestora afirma que “é necessária para que se tenha um mapeamento e, a partir dele, se busque soluções”, elegendo a regularização fundiária das comunidades como questão básica e principal.

“As comunidades não estão sendo escutadas, e não dá para pensar esse GT sem representação das comunidades”, conclui Andréa.

O protocolo de mediação de conflitos já é algo consagrado na legislação internacional, procura resolver o conflito antes de uma solução de força, na base do diálogo, e ter uma garantia do direito de posse que tem que ser levado em conta.
João Alfredo Telles Melo
Superintendente do Idace

“Precisamos de políticas de habitação”

Outro órgão que vai integrar o GT é a Defensoria Pública do Estado, que acompanha diversos casos de conflitos fundiários, principalmente em Fortaleza. José Lino Fonteles, defensor do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham), explica o que se espera do grupo.

“É de extrema importância, porque quando há conflitos por posse de terras, muitas vezes com presença de violência ou grave ameaça, não temos um canal adequado pra solucionar. Com a comissão, espero que haja um critério a seguir”, frisa.

A maioria dos conflitos que temos aqui são decorrentes de ocupações urbanas coletivas, pela população de baixa renda, em que o dono quer desocupar. Em algumas situações, a população ocupa como protesto por condições de habitação.
José Lino Fonteles
Defensor público do Núcleo de Habitação e Moradia

O déficit habitacional de Fortaleza em 2019 era superior a 130 mil famílias vivendo sem moradia ou em condições precárias. “Após a pandemia, com certeza piorou”, avalia José Lino, listando quais são, na visão dele, as medidas prioritárias pelas quais o Estado deve prezar.

“Políticas de habitação de forma geral, de aluguel social para a população de baixa renda. Porque essa população não consegue construir os imóveis com recursos próprios. Além de outras políticas que garantam que essas famílias possam acessar a habitação”, diz.

3,6 mil famílias em conflito em Fortaleza

Sobre os conflitos fundiários em Fortaleza, a reportagem questionou a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor) de que tipos são, quantos estão ativos, quantas famílias estão envolvidas nele e de que forma a Pasta os acompanha, além de quais medidas de política habitacional foram implementadas nos últimos anos.

Em nota, a Habitafor informou que “uma das principais iniciativas foi o lançamento do Programa Municipal de Regularização Fundiária Urbana de Fortaleza (ReurbFor), que vai entregar 40 mil títulos de propriedade nos próximos dois anos”.

3.600
famílias estão envolvidas em 48 processos judiciais sobre conflitos fundiários em Fortaleza, aponta a Habitafor.

Na capital, “os conflitos vão desde ocupações cuja reintegração de posse foi efetivada, passando ocupações em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), em Macrozona Ambiental, em Conjuntos Habitacionais, em bens públicos, até aquelas identificadas como assentamentos precários”.

O atual déficit da cidade é de 84 mil habitações, de acordo com a Prefeitura, que afirma ainda combatê-lo por meio de construção de conjuntos habitacionais e de “urbanização de assentamentos precários, que reforçam a permanência das famílias em seus territórios”.