Imagine chegar no Instituto Doutor José Frota (IJF), o hospital de traumatologia referência em Fortaleza, e faltar anestesia, gesso e algodão. Ou no Hospital de Saúde Mental, com pacientes em surtos psiquiátricos, e ter apenas um banheiro, com más condições, para uso de homens e mulheres. No “Hospital do Coração”, apesar da urgência para o atendimento, não há estrutura suficiente para a demanda atual.
Os recortes da realidade dos hospitais públicos de Fortaleza são acompanhados após 581 denúncias de pacientes, acompanhantes e até mesmo de profissionais da saúde ao Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) entre abril de 2023 e março deste ano.
Em média, são 48 reclamações formais por mês por causa das longas filas para cirurgias, precariedade na estrutura física, falta de remédios e de profissionais, dentre outros assuntos. No último mês, segundo o órgão ministerial, foram 41 denúncias.
Por causa deste cenário, 3 unidades de saúde pública são foco nas ações do MPCE:
- Instituto Doutor José Frota
- Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto
- Hospital de Messejana Dr. Carlos Alberto Studart Gomes (Hospital do Coração)
Ana Cláudia Uchoa, titular da 137ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde Pública de Fortaleza, explica que é feita uma investigação para cada pedido. “Há demora na internação para fazer cirurgia, demora no atendimento das emergências, falta de medicação – os próprios médicos ou equipes de enfermagem fazem as denúncias –, e pedido de cirurgia de pacientes que estão há muito tempo esperando”, contextualiza.
As demandas recebidas nas 137ª Promotoria são sobre a atenção secundária e terciária, que lida com casos mais graves de saúde, como os hospitais, Frotinhas e Gonzaguinhas. Os problemas em postos de saúde, da atenção primária, vão para a 138ª Promotoria.
Desde a pandemia, a maioria das denúncias chegam por e-mail e, após análise, viram um procedimento chamado “notícia de fato”. As secretarias municipal e estadual da Saúde, o Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec) e a Vigilância Sanitária, por exemplo, são acionadas.
O Diário do Nordeste procurou as Secretarias da Saúde de Fortaleza (SMS) e do Ceará (Sesa) para entrevistas para saber como as Pastas acompanham a situação dos hospitais públicos da capital cearense, a mediação feita pelo MPCE e quais ações são feitas para resolver os motivos das denúncias.
A Sesa informou que faz monitoramento de rotina nas unidades da rede, com foco na qualidade e eficácia da assistência prestada aos cearenses. Já a SMS, até o momento, não enviou resposta.
Situação no IJF
O Instituto Doutor José Frota, com 87 anos de funcionamento, é considerado o maior hospital do Ceará, sendo referência no atendimento às vítimas de fraturas complexas, lesões vasculares graves, intoxicações agudas e queimaduras. São cerca de 5 mil profissionais atuando em salas de cirurgia, laboratórios e demais setores.
Mas para atender a alta demanda – são mais de 6 mil pacientes recebidos mensalmente na emergência – é preciso um trabalho intenso. “O IJF está passando por uma crise seríssima, tivemos uma reunião para tratar sobre isso, porque tem falta de insumos, medicamentos, de recursos e de pessoal”, exemplifica Ana Cláudia, que identificou a falta de itens básicos como algodão e gesso na unidade municipal de saúde.
Foi no IJF que o eletricista Inácio Iramilson Júnior, de 40 anos, buscou assistência médica ao furar o globo ocular com pedaços de acrílico num acidente doméstico. "Quando eu cheguei, a parte da oftalmologia estava fechada porque quebraram um cano", lembra sobre a situação em 2022.
Inácio percorreu a Santa Casa de Misericórdia, o Instituto dos Cegos e o Hospital Geral de Fortaleza (HGF), e conseguiu a cirurgia ocular, mas o resultado não foi o esperado. "A lente que botaram ficava saindo do canto e cheguei até me acidentar por causa disso", compartilha sobre o momento em que caiu da motocicleta após ficar com a visão turva.
Só nesse momento, após cerca de 2 anos na espera por um novo procedimento para aplicação da lente adequada, foi que o eletricista resolveu denunciar a situação ao MPCE. "Em seguida eu fui chamado para o HGF, marcaram uma audiência e eu esperei uns 2 meses no máximo. Me operei, fui muito bem atendido e de fato resolvi o meu problema", conclui.
Em janeiro deste ano, o MPCE recomendou que a Prefeitura de Fortaleza apresentasse um plano de ação para solucionar a carência de equipes de enfermagem na unidade. Conforme a 137ª Promotoria de Justiça, havia um déficit de 128 enfermeiros e 235 técnicos de enfermagem.
Conforme o MPCE, não houve ações efetivas para a resolução do problema. Uma audiência pública foi marcada para o dia 28 de maio para discutir os impactos do subdimensionamento dos profissionais assistencial, médica e de enfermagem do hospital.
Hospital de Saúde Mental
O Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, unidade da Secretaria da Saúde do Estado, funciona há 61 anos, sendo a principal emergência psiquiátrica 24h da rede pública. Em balanço divulgado pelo Hospital no ano passado, são 180 leitos de internação, 160 para tratamentos gerais e 20 unidades para pessoas com dependência química estavam disponíveis.
Em 2022, por exemplo, foram mais de 20 mil atendimentos na emergência, 2.180 internações e 16.653 assistências ambulatoriais. A unidade recebe pacientes de crianças a idosos com 15 especialidades psiquiátricas. São cerca de 700 funcionários atuantes.
Mas, no momento, a situação está longe do adequado. “Lá a estrutura física está péssima, recebemos várias reclamações, inclusive de acompanhantes. A Vigilância constatou que é verdade e vamos fazer uma audiência”, adianta a promotora.
“Lá tem um banheiro só e pequeno para homens e mulheres, algo bem insalubre. As condições da emergência estão péssimas, está cheio de animais circulando dentro do Hospital, a estrutura física está decadente e há muito tempo precisa de uma reforma”, completa.
Sobre a situação da unidade, a Secretaria da Saúde indicou que o hospital passa atualmente por intensificação dos fluxos; implantação dos protocolos de identificação, avaliação, monitoramento e comunicação dos riscos nos serviços da saúde.
Também é feita a adequação dos colchões e dos armários da farmácia, assim como outras ações de reforma e manutenção que estão em execução.
Hospital do Coração
O Hospital Dr. Carlos Alberto Studart Gomes, conhecido como "Hospital do Coração", tem 91 anos de funcionamento. Em 2023, conforme divulgado pela unidade, a capacidade operacional era de 463 leitos de internação, sendo 70 deles de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e cerca de 3 mil profissionais.
Por lá, são feitos procedimentos cardíacos e pneumológicos, e transplantes de coração em crianças e adultos. Conforme o acompanhamento feito pelo Ministério Público, o serviço é ameaçado pelo intenso fluxo de pacientes e pela degradação da estrutura física.
“O Hospital do Coração está abarrotado, aumentou muito a demanda por atendimento, está com a emergência péssima. Nós fomos lá, pedimos uma fiscalização do Cremec e nós vimos que o atendimento não está com estrutura adequada”, destaca Ana Cláudia.
Conforme a Sesa, a ala pediátrica da unidade passou por reforma recente e foram iniciadas as obras de ampliação do serviço de hemodinâmica, que terá mais 2 salas, passando a ser 4 ao todo. Também foi ainda a aquisição de 3 aparelhos de hemodinâmica, com valor total de R$ 13 milhões, em 2023.
Além deles, foram adquiridos 4 aparelhos portáteis de Raio X digital, no valor de R$ 1 milhão; 5 ecocardiógrafos de última geração, no valor de 2,5 milhões; e 7 carros de anestesia modernos.
"Em fevereiro deste ano, 60 médicos cardiologistas aprovados no último concurso realizado pela Sesa foram convocados para o HM. Destes, 39 tomaram posse em março. O chamamento dos profissionais representa um grande passo do Governo do Ceará para a melhoria da qualidade dos serviços de saúde prestados à população", completou em nota.
Defesa da Saúde
A promotora Ana Cláudia explica que o MPCE também atua com demandas individuais, mas busca formas de ter impacto coletivo “porque se beneficiam muito mais gente do que um processo só por uma pessoa”.
“A oncologia passou por uma crise seríssima no ano passado, Fortaleza era responsável por tudo – tinha um pouco de atendimento no Cariri e em Sobral – e as filas estavam enormes. Fizemos várias audiências e pressionamos a Secretaria do Estado, que criou o serviço no Vale do Jaguaribe para acolher esses pacientes”, pontua.
Outro resultado das ações do MPCE está relacionado ao atendimento pediátrico. Desde de dezembro do ano passado são feitos encontros para avaliar o cenário e evitar que o sistema volte a colapsar como aconteceu no último ano, quando as emergências enfrentaram muita dificuldade para dar conta da demanda.
“Estamos fazendo audiências mensais com a SMS e Sesa para que não haja mais aquilo que ocorreu no ano passado e a situação está controlada”, finaliza. Em geral, as demandas são resolvidas em comum acordo, mas caso haja descumprimento da recomendação o MPCE pode entrar com ação judicial para a resolução do problema.