“Eu aperto a barriga pra amenizar a dor, parece que você tá morrendo.” Foi assim que Vanusa Silva, moradora da periferia de Fortaleza, resumiu o que é passar fome, em entrevista ao Diário do Nordeste em abril de 2021. Hoje, um ano depois, já são 2,4 milhões de Vanusas no Ceará.
Isso significa que 1 a cada 4 famílias cearenses (26,3%) amargam o nível mais grave de insegurança alimentar, a fome. É o pior cenário do Nordeste, como mostra o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Brasil (Vigisan), elaborado pela Rede Penssan.
Os impactos sociais são visíveis em cada esquina, retratados numa pobreza cíclica que só avança no Ceará. Mas e o corpo, não sucumbe? Quais os efeitos práticos e físicos da falta de alimentação?
A nutricionista Ilana Nogueira, professora do Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Saúde da Universidade Estadual do Ceará (Uece), destaca que a fome pode trazer inúmeros problemas de saúde – desde a dor de estômago até problemas cognitivos.
“A falta de alimentos, de imediato, causa dor e desconforto. Sem energia para exercer atividades, o organismo começa a buscá-la nos tecidos gorduroso e muscular, o que gera perda de massa muscular progressiva”, explica a profissional.
Sem fonte adequada do principal combustível do corpo, o cérebro começa a ter dificuldade em exercer suas principais funções, gerando enjoos, tonturas, náuseas e uma dificuldade em raciocinar que a longo prazo pode levar a danos cognitivos.
A ausência de nutrientes gera um verdadeiro “efeito dominó” na saúde do corpo, com um problema levando a outro, como lista Ilana:
- Ausência de ferro, com ocorrência de anemia ferropriva;
- Deficiência óssea, com desenvolvimento de raquitismo;
- Deficiência de vitamina A, podendo causar cegueira;
- Atraso no desenvolvimento cerebral;
- Alteração na produção de hormônios na adolescência, com impacto no desenvolvimento;
- Deficiência no sistema imunológico, tornando o indivíduo suscetível a infecções e condições crônicas, que podem levar à…
- Morte.
O médico nutrólogo Paulo Vasconcelos, professor do Departamento de Cirurgia da Universidade Federal do Ceará (UFC), alerta que alguns efeitos da fome prolongada ao corpo são irreversíveis.
“Se a fome perdurar, pode causar a morte celular. Há tipos celulares que nunca mais se regeneram: como os neurônios, células especializadas que demandam energia intensa. Quando você perde o neurônio, não há volta. Há perda de massa encefálica, com danos irreversíveis”, explica.
O corpo não apenas sente, como mostra, torna evidente o esforço para se manter vivo mesmo sem “combustível”. O nutrólogo compara que os efeitos físicos da fome são comparáveis aos da quimioterapia.
Células da pele, do cabelo, as que recobrem o intestino e as do sistema imune demandam alta energia. Quando falta energia, elas sofrem muito. Por isso, quando um paciente faz quimioterapia, perde o cabelo, tem diarreia, a pele fica esgarçada. Assim como a pessoa com fome.
Crianças são maior grupo de risco
A nutricionista Ilana Nogueira e o nutrólogo Paulo Vasconcelos frisam que as crianças são as que sofrem os danos mais graves e permanentes da insegurança alimentar. “Com a deficiência de energia e nutrientes, elas não conseguem se desenvolver adequadamente”, resume a professora.
“Existem estudos que mostram que quando uma criança passa por fome, ela nunca consegue chegar a um desenvolvimento pleno na idade adulta”, acrescenta o médico.
No Ceará, a fome atinge mais da metade (51,6%) dos lares onde vivem crianças menores de 10 anos, de acordo com o Vigisan. No Nordeste, fica atrás apenas do Maranhão (63,3%), de Alagoas (59,9%) e de Sergipe (54,6%).
“Sem alimentação adequada, as crianças ficam mais suscetíveis a outras doenças, principalmente as infecciosas, pois não possuem sistema de defesa apropriado para se defender. Infecções virais e bacterianas são muito comuns, e sem reserva de energia e nutrientes, acabam agravando o quadro clínico”, lamenta Ilana.
Fome é um problema de saúde pública
Diante dos efeitos múltiplos e, muitas vezes, irreversíveis, a insegurança alimentar em qualquer nível – mas, sobretudo, a fome – se converte num grave problema de saúde pública, como avaliam os especialistas ouvidos pela reportagem.
“O mau desenvolvimento de crianças, adolescentes e adultos, em termos crônicos, afeta a capacidade de realização das atividades diárias. Isso tem um impacto social e econômico. As crianças não conseguem estudar, aprender, afetando a capacidade funcional quando adultas”, destaca a professora da Uece.
A insegurança alimentar causa danos coletivos. Se há crianças mal nutridas, haverá adultos incapazes de trabalho, com cognição diminuída. É um problema de saúde pública e tem que ser combatido como tal.
A nutricionista pondera ainda que a fome gera um círculo vicioso: incapacita as pessoas de trabalhar, estudar, gerar a própria renda; com isso, elas vivem à margem, vulneráveis em tudo, inclusive a doenças. E não podem trabalhar. Nem estudar. E vivem à margem.
Neste ano, de 33.677 adultos acompanhados por equipes da atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS), somente 4.591 tinham o hábito de realizar pelo menos as 3 principais refeições diárias. Isso corresponde a 14% dos pacientes.
Entre os adolescentes, a porcentagem cai: dos 12.359 acompanhados pelo SUS, só 1.592 (13%) tomam café da manhã, almoçam e jantam. Quase 9 a cada 10 cearenses têm alguma dessas refeições – ou todas elas – como incertas.
O que dizem os futuros governantes
Em nível estadual, o combate à fome deve ser, segundo o governador eleito, Elmano de Freitas (PT), uma das prioridades do mandato que exercerá a partir de 2023. A declaração foi dada em entrevista à TV Verdes Mares, nesta semana.
“A medida mais importante é, primeiro, o combate à fome, porque infelizmente nós tivemos o retorno no País inteiro, e o Ceará também tem essa dificuldade. Temos que fazer uma grande ação junto com as entidades, para que nenhum cearense fique nesse sofrimento”, destaca o gestor.
Já a nível nacional, ambos os planos de governo dos candidatos que concorrem em 2º turno à presidência citam ações para garantir a segurança alimentar da população.
No plano de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o termo fome aparece 11 vezes. O documento traz como “primeiro e mais urgente compromisso a restauração das condições de vida dos que mais sofrem com a crise, a fome, o alto custo de vida, os que perderam o emprego, o lar e a vida em família”.
“É estratégica a retomada da centralidade e da urgência no enfrentamento da fome e da pobreza, assim como a garantia dos direitos à segurança alimentar e nutricional e à assistência social. Produzimos comida em quantidade para garantir alimentação de qualidade para todos. No entanto, a fome voltou ao nosso país”, cita.
No plano de Jair Bolsonaro (PL), o termo fome aparece 1 vez, em citação ao Relatório de Desenvolvimento Humano de 1994. No geral, o texto propõe “a integração das políticas de segurança alimentar e a econômica, aumentando a eficiência da alocação de recursos”.
“O equilíbrio entre a demanda nacional e as exportações é possível e perfeitamente factível, devendo ser objeto de estudos aprofundados a fim de dar acesso, em primeiro lugar, à população brasileira a uma alimentação saudável, compatível com os índices internacionais de calorias e qualidade diária”, resume.