Um religioso do Ceará, que atuou firmemente em favor da democracia e da defesa dos direitos humanos na ditadura militar, foi preso, torturado, exilado e morreu em 1974. Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, é um ilustre cearense e desde setembro de 2021 batiza uma rua, na Vila Leopoldina, bairro em São Paulo. Mas, apesar da relevância à história brasileira e do merecido reconhecimento na cidade em que ele também morou e foi torturado, a homenagem ao fortalalezense tem rendido um certo grau de polêmicas e dividido moradores.
O Diário do Nordeste percorreu a via de São Paulo, na última quarta-feira (3). Na entrada da rua, que é sem saída, há um portão que a torna “fechada” e com acesso controlado. A placa oficial de localização informa: “Rua Frei Tito de Lima”. Abaixo dela há a outra placa. Essa menor, informal, feita pelos próprios moradores, diz: “Antiga Rua Dr. Sérgio Fleury”.
De fato, por anos, foi esse o nome que batizou o logradouro, de pouco mais de 100 metros de extensão e 31 casas. Sérgio Paranhos Fleury foi um delegado do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops) durante a ditadura militar, na década de 1960. Ele, morreu em 1979, e é apontado como um dos torturadores de Frei Tito. Esse é um dos motivos da troca de nome da rua.
A mudança que, apesar de consolidada, ainda divide os moradores, foi proposta em 2013 na Câmara dos vereadores de São Paulo. Mas, foi aprovada apenas em agosto de 2021. Em setembro, foi sancionada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB).
Quando foi proposta, São Paulo vivenciava uma discussão de um programa da gestão passada, de Fernando Haddad (PT), chamado “Ruas de Memória”, na qual se preconizava a mudança de nome de ruas, pontes, praças e viadutos relacionados à ditadura militar seguindo recomendações do Programa Nacional de Direitos Humanos e do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014.
O que dizem os moradores?
“Cearense? O Frei Tito?”, eu nem sabia”, na via, essas são algumas das falas sobre o homenageado. Na rua, embora o fato histórico que marcou a trajetória de Frei Tito - a perseguição e a tortura durante o regime militar - não seja um fato em si contestado, a homenagem não chega a ser uma vontade unâmime. No local, pouco se sabe sobre Frei Tito, um dos mártires brasileiros na resistência à ditadura.
“A mudança de nome é bem recente. Mas a discussão dessa mudança já tem alguns anos. Um vereador elegeu a (rua) Sérgio Fleury para o projeto piloto de mudança de nome. Desde aquela época a discussão se arrasta entre nós. Na verdade, entre todas as ruas que passam por isso”, conta Andreia Riskala, a síndica da rua - que por ser fechada tem uma organização informal como “condomínio”.
A discussão entre os moradores, relata Andreia, teve início em 2014, e desde lá “uns achavam pertinente, porque a grande maioria sabia que Sérgio Fleury era o nome de delegado que era o maior torturador de todos os tempos”, diz.
Andreia foi favorável à alteração, e relata que quando se mudou para a rua, há 17 anos, uma das vizinhas chegou a ser que “o nome da rua é um absurdo. Eu não sabia quem era Sérgio Fleury, mas ela me disse e eu fui pesquisar e pensei, de fato, quem homenageia uma criatura dessa?”.
casas existem na via. A mais antiga é de 1966. Desta, segundo a síndica, apenas 6 são alugadas. Nas demais, são as mesmas famílias que moram desde a década de 1960.
Quando apareceu a proposta de troca do nome, conta, uns achavam que era bom, outros que ia trazer “uma enorme dor de cabeça” e ainda havia aqueles que não queriam “Frei Tito”, por achar que remetia a uma história muito triste, trágica.
“Os que eram contra, pensavam, qual transtorno isso vai nos causar do ponto de vista prático? De correspondência, entrega, mudança em cartório. E alguns que queriam que mudasse, falavam que podia mudar para um que não tivesse relação alguma com a ditadura”, explica.
Em 2014, a Prefeitura de São Paulo, relatam os moradores, exibiu um filme na rua sobre Frei Tito, distribuiu um livro com a história dele. “Uma trajetória horrorosa da tortura pra frente. Do ponto de vista de como isso impactou a vida dele”, acrescenta.
Outra moradora da rua, Elisa Nishiu, que há 30 anos reside na via, diz que pouco sabe sobre Frei Tito. Segundo ela, apenas tem conhecimento de que “ele foi torturado”, já sua origem, trajetória e atuação são aspectos desconhecidos para ela.
“Na época, eu fui contra a mudança. Mas por razões de logística. A gente tem sentido o efeito nas entregas, encomendas. Não chega. As pessoas não sabem onde fica essa rua. Não tenho nada contra o Frei Tito. Não queria a mudança. Se fosse qualquer outro nome, eu também não aceitaria”, completa.
Grupo da vizinhança silenciado
Em 2014, conta Andreia, os moradores fizeram uma votação para saber quem era contra e quem era a favor da mudança. Venceram as opiniões contrárias. “A diferença foi pequena, 5 ou 6 casas de diferença, mesmo com a explicação da Prefeitura”, esclarece. Mas, na época, a proposta não prosperou. Já em 2021, quando a Câmara Municipal colocou o projeto em votação, o debate foi retomado.
Já em 2021, explica a síndica, abriu-se uma discussão no grupo de whatsapp da rua - que não existia em 2014 - só que com aspectos políticos e ideológicos envolvidos. “Já entrou uma polarização que não tinha nada a ver com a história. Virou uma confusão de vizinho querendo se pegar com vizinho e eu tive que silenciar o grupo e tirar gente do grupo pra acalmar a discussão”.
Para Andreia, em termos práticos, a mudança não trouxe tantos percalços como foi imaginado. O maior gargalo, diz ela, de fato, são as entregas. Por isso, ela fixou a placa “Antiga Rua Dr. Sérgio Fleury”.
O Diário do Nordeste entrou em contato com a Prefeitura de São Paulo para saber detalhes sobre a mudança, mas até a publicação desta matéria não obteve resposta.
Nome de ruas e resgate da memória
A situação desta homenagem ilustra um conceito chamado de “lugares de memória”, do historiador francês Pierre Nora, explica o historiador e professor do curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Altemar Muniz. “Lugares de memória podem ser várias coisas, ruas, praças, e estão todos passíveis de serem questionados nos presente e no futuro por conta dessas mudanças políticas e de cultura, e de contextos históricos”, diz.
“A educação patrimonial é algo que os historiadores discutem muito e o que se percebe é que a educação patrimonial tem que ser para além de uma informação, porque essas pessoas, esse fatos, as simbologias relacionadas ao nomes de ruas precisam está mais presentes no cotidiano para além de uma referência de localização geográfica”.
A importância das pessoas que nomeiam logradouros, acrescenta o historiador, deve estar ligada a fatos, simbologias, “a uma espécie de mística em torno das questões que podem fazer as pessoas entenderem a relevância daquele lugar”.
Em Fortaleza, Frei Tito batiza, dentre outros equipamentos: uma rua no bairro Cajazeiras, uma escola pública municipal, uma creche pública, um Centro Cultural e um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). No Brasil, Frei Tito nomeia também ruas em São Bernardo do Campo (SP), Belo Horizonte e Recife.
Quem foi Frei Tito?
Tito de Alencar Lima nasceu em Fortaleza em 14 de setembro de 1945. Quando jovem, atuou como dirigente regional e nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC). Em 1965, ingressou no noviciado dos dominicanos em Belo Horizonte e foi ordenado sacerdote em 1967. Mudou-se para São Paulo em 1968 onde foi estudar filosofia. No mesmo ano, em outubro, foi preso pelo regime militar sob a acusação de ter alugado o sítio onde se realizou o 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Em 1969 foi preso pela segunda vez, em novembro, junto com outros dominicanos. Na prisão foi torturado e sofreu as consequências psíquicas até sua morte. Na prisão, ele escreveu sobre a tortura que viveu e o relato documentando se tornou um símbolo da luta pelos direitos humanos.
Frei Tito foi banido do Brasil em 1971, viajou para o Chile, seguindo depois para a Itália e França, onde recebeu apoio dos dominicanos. Traumatizado pela tortura, Tito passou por tratamentos psiquiátricos, mas nunca se recuperou. Em agosto de 1974, cometeu suicídio. Em março de 1983 seu corpo foi trasladado para o Brasil e se encontra sepultado no Cemitério São João Batista, em Fortaleza.