Em quase metade dos 33 anos de vida, Rafael Silva acordou junto ao Sol. Todos os dias, antes das 5h, com ou sem café, começava a rodar pelas ruas de Fortaleza, revirar centenas de sacos de lixo e empurrar o “carrinho de geladeira” emprestado de volta ao dono, repleto de recicláveis. Alguns reais no bolso, e tudo de novo no dia seguinte.
A rotina extenuante foi o “meio de vida” dele desde os 15 anos de idade, e intensificada aos 23, quando recebeu a primogênita nos braços. “Eu revirava lixo, abria saco, me cortava com vidro… Se o dia não fosse bom, tinha que rodar o dia todo. Era muito puxado”, relembra.
Há 3 meses, porém, o catador viu o cotidiano mudar completamente: hoje, inicia o expediente às 9h, com rota certa, percorrida a bordo de um triciclo elétrico cedido pela Prefeitura de Fortaleza.
Esta é a terceira de uma série de reportagens publicada pelo Diário do Nordeste nesta semana, sobre ações que utilizam o auxílio da tecnologia para mudar o destino do lixo e reduzir os impactos ambientais da larga produção de resíduos sólidos.
O projeto Re-ciclo é uma dessas ações. Mudou não só o destino de toneladas de lixo, mas a vida de Rafael, que você conheceu no início desta reportagem. Por meio do projeto, a gestão municipal equipa catadores com veículos de energia limpa e os conecta a residências, comércios e qualquer um que deseje ter o lixo reciclável recolhido em casa.
A plataforma foi desenvolvida pela prefeitura em parceria com uma startup de sustentabilidade e uma multinacional de delivery. Por meio da ferramenta, os usuários agendam a coleta em dia e hora escolhidos – só Rafael visita, em média, 30 locais por dia.
Muita gente brigava comigo, porque eu abria e fechava direitinho os sacos de lixo, mas os cachorros rasgavam e a culpa era sempre minha. Agora, mudou tudo. Não mexo mais no lixo, já tenho o local certo de buscar os materiais, não tem risco de não ter.
Além do triciclo e das melhores condições de trabalho, ele reforça a importância de “não precisar matar um leão por dia”. “Tenho renda certa, dinheiro da passagem, almoço, hora de descanso. E ainda sinto que tô ajudando de alguma forma”, pontua Rafael, membro da Associação de Catadores da Rosalina (Ascarosa).
“Com a reciclagem, mesmo sendo cansativo, eu acho que tô ajudando no meio ambiente. Toda vida botei isso na cabeça. Tô trabalhando? Sim, mas se eu encontro uma, duas, três garrafas jogadas, já é uma ajuda. Minha consciência fica melhor”, garante.
“Juntava o lixo no quintal de casa”
A Ascarosa, da qual Rafael faz parte, é uma das entidades parceiras da prefeitura na atual fase do Re-ciclo, iniciada em setembro deste ano. Os catadores, oriundos da comunidade da Rosalina, na periferia, encontram no Ecoponto da Varjota – bairro nobre da cidade – um local de apoio para organizar, limpar e enviar os resíduos para venda.
É lá o destino diário de Andreza Oliveira, 25, há 1 mês, desde que foi escolhida para receber um dos triciclos elétricos do projeto. A jovem compartilha com Rafael não só a comunidade, mas uma história similar: vive da reciclagem desde antes de nascer.
Eu trabalhava na comunidade desde adolescente, nasci e me criei lá. Os vizinhos juntavam o material e me chamavam pra buscar no carrinho de mão. É que eles já conheciam minha mãe, que criou eu e meus irmãos com reciclagem.
A transação era positiva para ela, que recebia os resíduos para vender, e para as casas e pequenos comércios ao redor, “que limpavam as áreas deles” – mas a renda, no fim das contas, era pouca e incerta. E a saúde se arriscava entre os recicláveis armazenados no quintal.
“Me chamaram pra trabalhar na associação e fiquei meio assim, porque não queria deixar o pessoal na mão, os que juntavam pra mim. Mas aqui no Re-ciclo é fixo, ganho por diária, tem os cantos e horas certas de ir. Pra mim, é crescer na vida. Ter dignidade”, diz a jovem simples, de falas miúdas e sonhos imensos.
“As pessoas têm consciência de separar”
Quem tinha a idade de Andreza quando começou a reciclar para gerar renda era Marcilene Rodrigues, catadora há uma década. Hoje, aos 36 de vida, é ela que recebe, separa e organiza as toneladas de resíduos que os “triciclistas” trazem das ruas.
Vidro de um lado, metal do outro. Papelão ali, eletrodoméstico velho acolá. Plástico mais distante, separado de todos, “porque vale mais”. Empacota tudo, pesa, registra. Atualiza o quadro de metas, ajuda a organizar as rotas dos catadores.
E assim desenha a própria rotina há 3 meses.
Agora ficou melhor, porque antes era tudo misturado, lixo com material reciclado. Aqui e acolá ainda vem com resto de comida, mas muito pouco. Agora as pessoas têm a consciência de separar.
Os catadores também pedalam, dia a dia, para alcançar um objetivo em larga escala: que Fortaleza consiga reciclar, em 8 anos, 50% dos resíduos que produz. O índice hoje varia entre 5% e 9%, como revela Nirlania Diógenes, gerente de projetos do Laboratório de Inovação de Fortaleza (Labifor), gestor do Re-ciclo criado em outubro de 2021.
“Nossa ideia é aumentar a coleta de reciclagem, por meio dos ecopontos, mini ecopontos, biodigestores nas escolas, centro de recondicionamento tecnológico e outras iniciativas de limpeza urbana”, lista.
Atingir o índice colocaria a cidade como líder no Brasil, meta que Luiz Alberto Sabóia, presidente da Fundação de Ciência, Tecnologia e Inovação de Fortaleza (Citinova), classifica como “muito ousada”. “Nesse esforço, o Re-ciclo é uma das estratégias principais: e queremos ter 100 triciclos até 2024 rodando em todos os bairros”, projeta.
foi o valor recebido pela Prefeitura de Fortaleza numa premiação em 2019, valor que permitiu a compra dos triciclos elétricos, de equipamentos de proteção e outros materiais necessários para executar o projeto.
Os primeiros veículos de três rodas foram entregues a catadores ainda em 2020, numa fase-teste para observar como se daria o uso do modal nas ciclofaixas e ciclovias da cidade. Mesmo com a pandemia, a renda dos trabalhadores aumentou em média 40%, e a velocidade com que conseguiram coletar os resíduos dobrou.
“Começamos a monitorar os indicadores de logística, reciclagem e inclusão social. No início, a capacidade do triciclo era de 200 kg, remodelamos para 150kg. Em algumas associações não tinha espaço para guardar, em outras as ruas eram instáveis devido ao tipo de pavimento. E fomos fazendo as adaptações”, relembra Nirlania.
Surge o Re-ciclo
Das ideias, então, surgiu o Re-ciclo como funciona hoje: um instrumento de coleta seletiva porta a porta, que remunera a mão de obra dos catadores. “Temos adquiridos 47 triciclos elétricos, dos quais 24 já distribuídos. Treze das 14 associações de catadores da cidade estão credenciadas”, cita a gerente do Labifor.
A atual fase teve início em setembro deste ano e será executada por 10 meses, quando os resultados serão estudados. A ideia é expandir o Re-ciclo para toda a cidade.
Hoje, os triciclos coletam resíduos em 5 bairros:
- Praia de Iracema;
- Centro;
- Meireles;
- Varjota;
- Mucuripe.
A previsão é de que em janeiro de 2023 a Aldeota seja incluída na lista.
Em pouco menos de 3 meses, com duas associações atuando com os triciclos, mais de 53 toneladas de resíduos já foram coletadas e quase 300 fortalezenses utilizaram o serviço de “delivery”. Toda essa engrenagem já rendeu às associações de catadores cerca de R$ 76 mil.
“Essas toneladas de materiais já estão sendo desviadas do aterro sanitário e tendo um destino melhor. Pra isso, utilizamos triciclos elétricos, que não geram poluição e incentivam a adesão da população”, destaca Nirlania Diógenes.
Os triciclos trazem muita visibilidade aos catadores. Eles dizem que antes as pessoas tinham medo deles, hoje param e pedem pra tirar selfie, perguntam como participar. Tem um nível de satisfação e empoderamento muito grande.
A inclusão social e a melhoria das condições de trabalho e econômicas dos catadores de recicláveis são pilares do projeto, mas outra meta diz respeito a toda a sociedade: erradicar os cerca de mil pontos de lixo irregulares espalhados por Fortaleza.
Só de janeiro a setembro deste ano, a prefeitura recolheu 465 mil toneladas de lixo descartado de forma irregular. Para se ter ideia, a coleta domiciliar – em que o caminhão passa rua a rua – recolheu 480 mil toneladas. Os dados são da Secretaria Municipal da Conservação e Serviços Públicos (SCSP).
“Ter uma população educada não resolve a questão”
Se por um lado o Re-ciclo incentiva a separação do lixo, a coleta seletiva e a reciclagem, por outro ainda esbarra em questões mais profundas: a educação ambiental e a disponibilidade de infraestrutura para que o resíduo separado “continue seu fluxo”.
É o que analisa Gemmelle Santos, professor de Gestão Ambiental no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e especialista em educação ambiental.
“É necessária uma triagem em grande escala, adotar uma política pública em que se instale infraestruturas que tenham suporte suficiente para processar toda a quantidade de material reciclável que a gente tem. Em paralelo a isso, ter toda uma cadeia de separação”, sugere.
De nada adianta um processo de orientação de coleta seletiva se as etapas posteriores – recebimento, limpeza, processamento e reciclagem – não existirem. Isso precisa avançar no mesmo nível da prática de separar o lixo.
O professor destaca, porém, o potencial transformador que a coleta seletiva e a reciclagem têm. “Ambas reduzem a pressão sobre a base de recursos naturais, valorizam o resíduo da forma que ele merece, diminuem o desperdício e agregam uma variável social muito importante, que envolve o trabalho de catadores”, cita.
Outro aspecto reforçado por Gemmelle como essencial é o saneamento básico em si. “Muitas questões relacionadas à saúde pública são evitadas a partir do gerenciamento adequado dos resíduos. Parte do que é disposto em lixões e aterros sanitários traz riscos de poluição ao solo, água, ar e, nos lixões, arrisca a saúde dos trabalhadores.”
Iniciativas como o Re-ciclo, a criação dos Ecopontos, a atualização da legislação municipal sobre resíduos sólidos e a intensificação da fiscalização de pontos irregulares são, para o especialista, passos largos de Fortaleza em direção a uma limpeza urbana mais concreta e eficaz.
“A iniciativa do Re-ciclo, por exemplo, tem um impacto significativo sobre a vida das pessoas que lidam diretamente com resíduos, tão deixadas de lado por tanto tempo. Eles tendem a notar melhorias na ergonomia, redução de doenças, aumento de produtividade, e a deixar a cidade com aspectos ecológico e ambiental mais amplos”, frisa Gemmelle.
O próprio veículo de coleta também é um instrumento de educação, porque as pessoas veem, param, conversam com o catador, isso começa a trazer uma nova simbologia e cultura.
O desafio citado pelo especialista é, inclusive, reconhecido pela própria gestão: ampliar o número de trabalhadores contemplados pelos triciclos e por toda a estrutura proporcionada pelo Re-ciclo. Quem já pedala por uma cidade mais limpa compartilha do pensamento.
“Ontem, eu tava passando e um rapaz me parou, perguntou como podia entrar em contato e agendar a coleta. É preciso colocar mais bicicletas rodando. Nós somos os primeiros, somos a visão do próximo Ecoponto, do próximo local que vem. Somos o olho, o futuro”, orgulha-se Rafael, minutos antes de se perder da nossa vista pelas ciclofaixas da cidade.
Passo a passo para chamar o Re-ciclo
- Acesse o site do Re-ciclo;
- Clique em "Quero reciclar";
- Leia e aceite os termos do site;
- Informe nome, telefone e e-mail;
- Diga em que bairro o lixo será recolhido;
- Informe endereço e ponto de referência;
- Escolha com que frequência deseja a coleta e agende.
Caminho do lixo pós-coleta
- O Re-ciclo recebe os agendamentos e monta as rotas de coleta;
- Catadores buscam os resíduos porta a porta, nos triciclos;
- O material é encaminhado ao ecoponto vinculado e direcionado às associações de catadores;
- Tudo é direcionado às indústrias de reciclagem.