A vida nos oceanos é um mistério até mesmo para a ciência. Por isso, pesquisadores têm se debruçado cada vez mais em buscar, nos organismos marinhos, soluções para problemas de saúde cujos tratamentos convencionais se mostram pouco eficazes. Cientistas do Ceará, por exemplo, avaliam em laboratório possíveis substâncias para tratar doenças como câncer e diabetes e destruir bactérias super resistentes a antibióticos.
Para conhecer essas moléculas promissoras, o Diário do Nordeste fez um raio-X das pesquisas na 8ª reportagem da série “Mar de Leva e Traz”, em que são entrelaçadas as memórias e os diferentes usos do litoral.
O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.
Essas pesquisas são chamadas de ensaios pré-clínicos e se desenvolvem em ambientes controlados, seguindo normas de biossegurança. No Laboratório de Bioprospecção e Biotecnologia Marinha (LaBBMar), vinculado ao Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da Universidade Federal do Ceará (UFC), os estudos se concentram sobre a cromomicina.
O produto natural foi encontrado em pequenos seres marinhos da praia de Paracuru, no litoral Oeste do Ceará, e se mostrou um potente agente capaz de matar células cancerígenas.
“Basicamente, a gente encontrou uma molécula que mata a célula tumoral através de um mecanismo bem interessante”, explica Diego Wilke, coordenador da pesquisa. “Em concentrações bem baixinhas, ela mata células tumorais bem resistentes”.
Katharine Florêncio, professora da UFC e integrante da pesquisa, destaca o potencial imunogênico da cromomicina, que passa a ter efeito de uma vacina: as células tumorais atacadas por ela, até então “invisíveis” ao sistema imunológico por uma série de alterações químicas, voltam a ser reconhecidas e a gerar uma resposta positiva e a longo prazo do próprio organismo.
“A problemática do câncer é mundial e isso tem nos estimulado. Buscamos compostos e formas de tratamento para esses pacientes que tanto precisam”, ressalta. São estudadas suas aplicações em células de câncer de mama, melanoma (na pele) e sarcoma (tecidos).
“Foi uma sorte grande porque é um efeito raro”, complementa Wilke. “Poucos quimioterápicos dentro do arsenal de drogas para combater o câncer são assim; de mais de 100 moléculas, em torno de 6% têm esse efeito vacinal”.
Por enquanto, ainda há limitações. Testes em humanos ainda não foram cogitados pela equipe porque os efeitos nocivos da cromomicina se estendem não apenas às células doentes, mas também às saudáveis.
Segundo o coordenador do LaBBMar, esse é um grande desafio, mas estimula novos estudos para contornar esses efeitos, seja pela elaboração de formulações ou pela modificação da molécula mantendo as mesmas propriedades, mas sem toxicidade.
Munição contra bactérias
Em 2050, a Organização Mundial da Saúde (OMS) projeta que a maior parte das mortes no mundo serão causadas por bactérias super resistentes aos antibióticos conhecidos, superando câncer e problemas cardiovasculares. Os atuais 700 mil óbitos estimados pelas infecções passariam a cerca de 10 milhões.
Combater essas bactérias é um dos focos do Laboratório de Biotecnologia Marinha (BioMar), localizado no Departamento de Engenharia de Pesca da UFC, no Pici. Por lá, são explorados os potenciais das lectinas retiradas de algas marinhas da costa do Ceará, sejam coletadas em praias ou em mergulhos.
O professor Rômulo Farias explica que as moléculas são testadas contra bactérias causadoras de infecções hospitalares, como Staphylococcus aureus, Escherichia coli e Klebsiella. “São bem difíceis de controlar porque elas vivem em simbiose com a gente. O problema é quando elas têm espaço para crescer mais”, diz.
Até o momento, as lectinas se mostraram promissoras para efeito antibacteriano e antibiofilme. “O biofilme é uma comunidade bacteriana que, quando formada, aumenta a resistência das bactérias aos antibióticos”, detalha o pesquisador.
Ao reconhecerem os carboidratos da superfície das células, as lectinas passam a interagir com as bactérias. “A partir desse reconhecimento, a gente tem o disparo de uma série de reações intracelulares que levam à morte das bactérias”.
Além desse potencial, as lectinas também são avaliadas no reconhecimento e tratamento de células de câncer e no controle da diabetes, por apresentar atividade anti-hiperglicêmica (ajuda a diminuir os níveis de açúcar no sangue). Fora do Brasil, há estudos avançados no uso de lectinas para prevenir o HIV e a Covid-19.
Limitações das pesquisas
Os estudos mencionados nesta reportagem são pré-clínicos, ou seja, investigam moléculas candidatas a gerarem um novo medicamento, mas apenas com testes in vitro ou, no máximo, em animais. A aplicação em humanos demanda avanços e investimentos.
“Temos pensado no potencial translacional, nos efeitos em células de melanoma humano. Isso nos daria possibilidade que ela saísse do mundo pré-clínico e de fato pudesse ser estudado na clínica”, projeta Katharine Florêncio, do LaBBMar.
Esse caminho - do laboratório à farmácia - leva, em média, 20 anos, segundo o professor Rômulo Farias. Após a comprovação em animais, podem ser realizados testes em humanos doentes que não responderam a tratamentos diferentes.
No entanto, a espera não desanima os pesquisadores, já que a fase de laboratório é o pontapé para os resultados. “A ciência no nosso país precisa ser mais valorizada. Temos laboratórios de ponta e muitos pesquisadores fazendo a diferença. Essas moléculas são muito promissoras e vão ganhar o mundo na sua divulgação”, pensa Katharine.
Riquezas do mar
Os organismos marinhos têm potências ainda desconhecidas porque as pesquisas sobre o oceano são recentes, aponta Rômulo Farias. Enquanto há uma grande variedade de drogas derivadas de plantas terrestres, há apenas 13 drogas registradas e derivadas de seres marinhos.
Quando a gente está doente, a avó ou a mãe sempre vai sugerir um remedinho caseiro, um chá de alguma planta, né? Nunca uma coisa relacionada ao mar.
Animais, plantas e micro-organismos aquáticos desenvolveram capacidades distintas para se adaptarem ao ambiente durante um processo evolutivo mais longo e complexo, segundo o professor Diego Wilke.
“Uma substância, para fazer efeito tóxico dentro do mar, tem que ser muito potente. O percentual de organismos detentores de substâncias de alta toxicidade é muito maior nos organismos marinhos. Por exemplo: um invertebrado de corpo mole poderia ser comida para vários bichos, mas está lá por que? Porque está protegido por substâncias químicas”, destaca.
Conforme o pesquisador, o avanço científico também permite a sustentabilidade dos projetos. Não é necessário retirar grandes quantidades de matéria-prima da natureza, uma vez que as moléculas em estudo podem ser replicadas com mais facilidade. No caso do LaBBMar, isso também evita deslocamentos maiores, pois mantém um banco com cerca de 1.500 bactérias coletadas em toda a costa e ilhas oceânicas do Brasil.
“Às vezes, você precisa de uma quantidade grande, mas não tem como fazer uma coleta predatória. Antes, a gente coletava de 3 a 10 kg de material apenas para estudos iniciais. Hoje, coleta 10 gramas e consegue estudar o tempo que a gente quiser, com a quantidade que quiser, cultivando bactérias no próprio laboratório”, descreve Wilke.