O Ceará recebeu mais de R$ 157,6 milhões de recursos federais enviados para ações de segurança pública e prevenção à violência entre 2019 e 2023. Entretanto, o Estado executou apenas 48,2% dessa verba recebida por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). A situação é semelhante em todos os outros estados.
Nesse período, o valor executado foi de R$ 75,71 milhões, conforme dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), aos quais o Diário do Nordeste teve acesso. No ano passado, por exemplo, o Ceará não investiu nada dos cerca de R$ 41,53 milhões repassados pelo governo federal para a área.
Em nota à reportagem, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS-CE) alegou que os recursos estão sendo aplicados no âmbito estadual e que o montante refere-se a projetos que estão em execução e que serão finalizados dentro do prazo, ou seja, até 2026. A Pasta destacou ainda que as várias adequações ocorridas nos processos administrativos, em virtude da pandemia da Covid-19, impactaram esse processo.
O FNSP é um fundo especial que tem por objetivo garantir recursos para apoiar projetos, atividades e ações nas áreas de segurança pública e de prevenção à violência. O projeto foi instituído em 2001, mas os valores só começaram a ser repassados a partir de 2018.
Valor aproximado do repasse do FNSP para o Ceará em 2024
Conforme o Ministério, essa discrepância entre valores repassados e executados não é exclusividade do Ceará. A utilização da verba federal tem sido priorizada desde o início da gestão do ministro Ricardo Lewandowski, que encontrou uma série de recursos acumulados por parte dos estados.
Todos os entes federativos possuem valores não executados. Somente entre 2019 e 2020, R$ 370 milhões do FNSP ficaram represados e poderiam retornar ao Tesouro Federal por ultrapassarem o tempo limite para sua utilização. Para que isso não aconteça, o Ministério deve publicar uma portaria nas próximas semanas para que os estados tenham mais prazo e não percam o dinheiro.
“Os valores já executados priorizaram três eixos definidos pelo MJSP: Enfrentamento à Criminalidade Violenta, Fortalecimento das Instituições de Segurança Pública e Valorização do Profissional de Segurança Pública. Nessa execução, podemos destacar a modernização do sistema de radiocomunicação, com a implantação de 56 torres de comunicação em pontos estratégicos do estado do Ceará; aquisição de veículos, coletes, munições, equipamentos de TI, mobiliários, aparelhos de ar condicionados, eletrodomésticos e eletroeletrônicos para as diversas unidades da Segurança Pública; além do desenvolvimento de ações na área biopsicossocial para garantia do bem-estar do profissional da Segurança Pública”
MONITORAMENTO FEDERAL
O MJSP acompanhou as execuções do Fundo Nacional de Segurança Pública no Ceará, em visita ao Estado no dia 15 de julho. Na ocasião, os representantes federais monitoraram os repasses feitos “Fundo a Fundo”, que inclui a transferência de recursos do FNSP de, no mínimo, 50% das receitas decorrentes da exploração de loterias para o Fundo Estadual e Distrital de Segurança Pública.
O objetivo foi “assegurar maior eficiência na gestão dos recursos federais destinados à segurança pública”, divulgou o Ministério, que alega que as ações fazem parte de um planejamento anual, pelo qual cumprirá agenda em outros estados. A medida segue uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), que visa promover a aproximação entre a Pasta e as unidades federativas.
Ainda segundo o MJSP, a equipe técnica auditou as aquisições realizadas com o recurso federal no Ceará, especialmente em relação às atividades periciais, como equipamentos de balística, de análise da escrita manual, extração de dados de aparelhos de telefonia móvel e de identificação de entorpecentes.
A agenda também previa uma oficina técnica de execução de repasses, com o objetivo de esclarecer dúvidas e ensinar maneiras para efetivar a prestação de contas dos recursos destinados pelo FNSP.
Ao Diário do Nordeste, a SSPDS-CE ressaltou que, periodicamente, promove “reuniões de monitoramento para fins de verificação do andamento dos projetos, com foco no apoio mútuo entre os órgãos, para dar maior efetividade nas ações de execução”. O trabalho envolve ainda a atuação do Comitê Gestor do Fundo de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará, composto pelos órgãos da Segurança Pública e Defesa Social e representantes da CGE, Seplag e do Consesp.
SSPDS COMENTA MONTANTE NÃO UTILIZADO
A reportagem questionou a SSPDS-CE sobre a discrepância entre os valores repassados e executados entre 2019 e 2023. Via assessoria de comunicação, a Pasta informou que os recursos estão sendo aplicados no âmbito estadual e que o montante refere-se a projetos que estão em execução e que serão finalizados dentro do prazo, ou seja, até 2026.
“Dentre os fatos que impactaram no tempo da execução dos projetos, no caso dos repasses ocorridos entre 2019 e 2021, estão as várias adequações ocorridas nos processos administrativos, em virtude da pandemia da Covid 19, que repercutiram no tempo médio de execução dos recursos, em virtude da implantação do serviço home office, a demora e/ou impossibilidade de fornecedores na entrega de bens/serviços contratados por conta da escassez de matérias-primas”, afirmou a Secretaria.
Além disso, ponderou a SSPDS-CE, os órgãos de segurança pública tiveram que disponibilizar um maior número de profissionais para a realização das atividades operacionais relacionadas à pandemia, para garantia do cumprimento dos normativos de isolamento (ação nas barreiras sanitárias, fiscalização em estabelecimentos comerciais, dentre outros). Isso teria impactado a conclusão dos procedimentos administrativos de aquisições.
A Pasta explicou que, desse modo, os valores liberados nesses anos acabaram por gerar saldos não executados dentro dos exercícios anteriores, mas que foram sendo realizados nos demais períodos. A Pasta explica ainda ser necessária, anualmente, a adoção de um fluxo de ações baseadas na legislação vigente, como a lei de licitações, até a execução total dos projetos. (Leia no fim da reportagem as cinco etapas realizadas pela SSPDS).
“Uma vez realizada a licitação e o bem/serviço entregue, o projeto é concluído, de modo que o tempo médio para esta conclusão a partir do anúncio de repasse dos recursos é de 16 meses, ressalvando-se itens que dependam de licitações internacional e/ou processo que gerem impugnações durante a licitação”, complementou a SSPDS-CE.
CENÁRIO CEARENSE
Os números da violência no Estado evidenciam a necessidade da urgência nas ações e projetos voltados para a segurança pública. Nesse sentido, o cenário motivou uma série de mudanças por parte da gestão Elmano de Freitas (PT), incluindo o incremento financeiro, a expansão do policiamento ostensivo e, a principal delas, a troca no comando da SSPDS-CE. Desde 3 de junho deste ano, Roberto Sá substitui Samuel Elânio como titular da Pasta.
Conforme dados da própria Secretaria, o Ceará registrou aumento de mortes violentas em junho deste ano, comparado a igual período de 2023. O mês terminou com acréscimo de 22,7% nos Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs) – número que inclui homicídios, feminicídios, latrocínios (roubos seguidos de morte) e lesões corporais seguidas de morte.
CVLIs no Ceará entre janeiro e junho de 2024
Outro destaque negativo, abril foi o mês mais violento desde novembro de 2020, com 320 CVLIs.
Além disso, o Ceará registrou o índice de 35,4 mortes violentas intencionais (MVI) por 100 mil habitantes em 2023, conforme dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O número faz o Estado ter a 6ª maior taxa do Brasil nesse aspecto.
"EMPOÇAMENTO DE RECURSOS"
O FNSP foi idealizado ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, mas só a partir de 2018 que o fundo nacional se consolidou com a perspectiva de coordenação da verba entre os entes federativos, mesmo ano da criação do Sistema Único de Segurança Pública. A partir daí, foram estabelecidos repasses obrigatórios anuais para os estados, com a definição do volume de percentual dos recursos.
Como explica Ursula Peres, professora da Universidade de São Paulo (USP) e associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), para o estabelecimento dos repasses entre os fundos federal e estaduais, os estados precisavam se comprometer com a utilização dos recursos em objetivos específicos, que não incluem gastos com despesas correntes, como salários de servidores.
“O que foi acontecendo ao longo do tempo é que o volume aumentou, a organização com os objetivos específicos foi criada, mas os estados não tiveram e não têm um preparo de uma estrutura burocrática, de uma capacidade específica para utilização desse recurso, ainda mais levando em conta que a gente teve pandemia, em 2020 e 2021, que limitou o uso de recursos. E também tem um fato de que as secretarias estaduais de segurança pública têm um contingente burocrático muito mais focado nas forças policiais, do que em um foco de burocracia regulatória e licitatória”, esclarece a especialista em gestão de Políticas Públicas, que ressalta também que a atualização da Lei de Licitações e Contratos, em 2021, tornou-se um desafio a mais nesse sentido, exigindo a adaptação dos estados.
Com a gestão Flávio Dino, que comandou o Ministério entre janeiro de 2023 e fevereiro deste ano, tentou-se acelerar a utilização dos recursos. Embora tenha buscado induzir o comportamento dos estados, os critérios para os investimentos eram considerados restritivos, o que não reduziu as dificuldades burocráticas.
Com isso, dos R$ 4,3 bilhões de recursos repassados para todos os estados desde 2019, cerca de 2,8 bilhões ainda aguardam destinação.
Agora, sob o comando de Lewandowski, o fundo passou a ter como diretora de gestão a ex-procuradora de São Paulo, Camila Pintarelli, que assumiu o cargo em março de 2024. Desde então, há uma tentativa de dar maior eficiência na execução dos recursos, com a criação de uma rede interfederativa – que promove a conexão entre os gestores estaduais – e a ampliação das áreas de utilização. Nesse sentido, o principal destaque ficou por conta do acréscimo da área de “combate ao crime organizado”.
Peres avalia ainda que ter orçamento disponível é muito importante, mas é preciso uma lógica de atuação ativa e coordenada entre a União, os estados e os municípios para mudar o quadro de violência no país. A pesquisadora vê com bons olhos a criação da rede interestadual e a perspectiva do Ministério em repensar a área de forma sistêmica, mas é necessário estruturar um apoio técnico aos estados, um processo que é desigual no país.
“O Ceará é um estado de bastante capacidade, de várias áreas de excelência, como educação e outras. Então, eu acho que, na verdade, vai ter que se pensar como é que traz esse foco também para a segurança pública, desse adensamento burocrático na área, para esse foco em conjunto com os demais estados”
FOCO NA EXECUÇÃO
Em nota ao Diário do Nordeste, o Ministério esclareceu que o FNSP está atuando junto a todos os Estados e ao Distrito Federal para auxiliar e promover maior governança ao uso dos recursos repassados.
“Em 5 de abril deste ano, foi criada a Rede Interfederativa do Fundo Nacional de Segurança Pública, espaço institucional voltado a auxiliar tecnicamente as unidades federativas na execução dos montantes. Desde então, R$ 800 milhões já foram reservados para execução pelas unidades federativas”, apontou.
A Pasta Federal ressaltou ainda que a Portaria 685, editada em 16 de maio de 2024, atualiza a dinâmica de uso dos recursos repassados. O novo documento estabelece que os estados devem apresentar plano para aplicação dos recursos na estruturação e no aprimoramento da capacidade operacional de suas instituições de segurança pública e de defesa social. Nesse sentido, o planejamento deve estar alinhado às seguintes áreas temáticas:
De acordo com o MJSP, o Ceará ainda possui R$ R$ 99,76 milhões em recursos federais para a área da segurança pública, que podem ser executados até o final de 2026. Caso não sejam utilizados, esses valores voltam para o Tesouro Nacional.
Sobre esse montante federal, a SSPDS-CE explicou que há um planejamento em andamento para execução dos recursos, mas o valor de R$ 38,56 milhões foi liberado para execução somente em maio de 2024. A Pasta afirmou ainda que os processos estão em sua fase preparatória, o que envolve o estudo técnico preliminar, a pesquisa de mercado e demais etapas para realização da licitação.
“O valor de R$ 23.814.201,33 já encontra-se contratado e com empenho realizado, apenas aguardando o recebimento dos bens/execução dos serviços para pagamento. E R$ 34.307.357,21 encontram-se com processo licitatório em fase bem avançada com previsão de contratação e posterior empenho até outubro de 2024, e tão logo os bens/serviços sejam recebidos e conferidos será realizado o pagamento”, completou a Secretaria.
Confira as etapas realizadas anualmente pela SSPDS a cada repasse:
- Formalização do Termo de Adesão, etapa que é iniciada geralmente no 2º semestre do ano de repasse, na qual o estado é informado do valor do repasse a partir de critérios definidos em Portaria pelo MJ, em que se faz necessário que o Estado comprove que cumpre as exigências prevista em lei. Uma vez comprovada, o Estado fica apto a assinar o Termo de Adesão e receber o recurso.
- Após a assinatura do Termo de Adesão o recurso é empenhado em conta para o Estado e referida ação ocorre geralmente na última semana do ano de repasse, ou seja, o recurso referente a 2019 foi empenhado para o Estado na última semana do ano de 2019, fato que ocorreu também com os anos seguintes, a exceção do recurso de 2023, que foi específico para o Programa Nacional de Segurança da Escolas, que foi liberado em junho de 2023, cujo contrato para sua execução já foi celebrado e esta Secretaria aguarda o recebimento dos bens para conferência e conclusão. Ressalte-se que o MJSP tem envidado esforços para que referido repasse seja realizado com maior antecedência para fins de celeridade na execução.
- Vencidas as etapas anteriores, o MJSP estipula prazo para que os estados apresentem o Plano de Ação, a partir de critérios estabelecidos em Portaria do Ministério. É estabelecido o prazo de quatro meses para envio dos planos, que deverão ser avaliados e validados pelos técnicos da Diretoria do Fundo Nacional para liberação de execução.
- Após aprovação do Plano de Ação, o Estado inicia a tramitação interna de aprovação dos recursos pelo Comitê Executivo do Fundo de Segurança Pública e Defesa Social do Estado. Referido Conselho é composto pelos órgãos da Segurança Pública e Defesa Social e representantes da Controladoria e Ouvidoria Geral do Estado (CGE), Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag) e do Conselho Estadual de Segurança Pública (Consesp). Uma vez aprovados os projetos apresentados pelas SSPDS e suas vinculadas, eles são cadastrados no Sistema MAPP do Governo do Estado para aprovação do Executivo.
- Uma vez aprovados os projetos MAPP, cada corporação realizará a execução dos projetos por meio de processo licitatório, considerando a legislação vigente, em especial a Lei 14.133, que regulamenta o processo licitatório.