Os registros de racismo no Ceará saltaram de 170 em 2022, para 347 em 2023. O número representa um crescimento de 104,1% nas ocorrências desse tipo no estado.
Ao mesmo tempo, os casos de injúria racial caíram 48,2% no território cearense. Enquanto 164 registros foram contabilizados em 2022, no ano passado foram categorizados 85 crimes desse tipo.
O cenário estadual dos casos de racismo e injúria racial foi evidenciado pelos dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2024, lançado no último mês de julho.
Embora os dois casos sejam crimes, o racismo e a injúria racial se diferenciam, em geral, pela amplitude. Enquanto o primeiro está ligado a uma ofensa que atinge uma coletividade, o segundo é direcionado contra um indivíduo.
- Racismo: praticar conduta discriminatória dirigida a determinado grupo, o que inclui o preconceito e a exclusão social de pessoas com base na cor de sua pele ou origem étnica;
- Injúria racial: ofender a honra da vítima com relação à raça, cor, etnia, religião ou origem por meio de palavras preconceituosas.
A injúria racial passou a ser crime a partir da Lei 14.532/23, publicada em janeiro do ano passado, após o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer a importância de igualar juridicamente a prática ao racismo, ainda em outubro de 2021. Com a equiparação, o crime também passou a ter como pena dois a cinco anos de reclusão, além de ser inafiançável e imprescritível.
“A investida atual e sucessiva no enfrentamento ao racismo, em especial em 2023, pode ser causa, juntamente com as alterações legislativas recentes e com os novos parâmetros jurisprudenciais que explique esse movimento dos dados aqui descrito. Considerando que os dados oficiais estão sujeitos a uma série de limites de validade e de confiabilidade, o mais ajustado para interpretar esse aumento nos registros é afirmar que maior atenção tem sido dada àquele tipo penal [racismo]”
O QUE EXPLICA ESSE CENÁRIO?
A integrante da Comissão de Promoção da Igualdade Racial (COPIR) da OAB-CE, Isabel Mota, avalia que o racismo sempre esteve ligado à subnotificação, uma questão que começou a ser encarada. Esse enfrentamento, avalia a advogada, passa pelo entendimento do STF, que contribuiu para que esse tipo de crime fosse melhor caracterizado também do ponto de vista de quem recebe a denúncia, ou seja, as autoridades que capitulam os casos.
“Mesmo a gente tendo todas as informações, não é fácil dar o próximo passo, fazer o registro dessa ocorrência. Buscar a criminalização da conduta que foi ofensiva contra nós, isso não é fácil, mas isso é uma cultura que está mudando, a gente começou a entender o racismo na sociedade brasileira como um problema e na perspectiva que a gente entende como um problema, a gente fica mais próximo de ter um dia uma solução”, enfatiza Mota.
Já a doutora em Sociologia pela UFC e pesquisadora de movimentos sociais contra o racismo, Geísa Mattos, considera que os processos de conscientização em relação ao racismo impactaram a tipificação dos casos.
“Por incrível que pareça, apesar de toda a nossa tradição escravocrata, das pessoas negras sempre terem vivido de forma muito contundente o racismo nas suas vidas, é somente agora, com a expansão dos debates nas redes sociais e com as cotas raciais nas universidades, que o tema do racismo passa a ser reconhecido como um fato que não atenta contra indivíduos especificamente, não é uma questão individual, mas uma questão estrutural”
Titular da Secretaria da Igualdade Racial (Seir) do Ceará, Zelma Madeira reconhece o peso da mudança da legislação nesse cenário. No entanto, ela pontua que, entre os múltiplos fatores, duas implementações impactaram a realidade cearense: a Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou Orientação Sexual (Decrim) e a própria Seir, ambas criadas no início de 2023. A gestora falou sobre o assunto durante entrevista exclusiva ao Diário do Nordeste.
“Penso que é o conjunto de tudo isso. Isso eu estou trazendo mais para um caráter local, mas a gente sabe que há um aumento da presença de uma maior conscientização negra, seja pelos movimentos sociais negros ou pela mídia, a mídia alternativa negra. Então, veja que a gente tem mais como falar do que é o racismo, de desnaturalizar. Você vê uma prática de uma mulher num evento de samba imitando macaco, mas lá tinha pessoas de uma mídia preocupada com as questões da discriminação, de um preconceito que se opera em forma de discriminação e o racismo é uma delas.”
LEGISLAÇÃO E COMBATE AO RACISMO
Geísa Mattos defende que um dos pontos da luta contra o crime passa pelo acompanhamento dos casos que, efetivamente, são punidos com o rigor da lei. Para a especialista, embora haja um aumento das denúncias e, eventualmente, algumas punições, raramente indivíduos são presos por racismo no Brasil, sendo preciso tornar a legislação mais prática.
“As pessoas brancas que cometem esses crimes, sendo elas ricas e poderosas, dificilmente elas vão ser presas por conta do crime cometido. Nós temos casos, inclusive, de parlamentares que cometem crimes de racismo e que também não são punidos. Então, essa situação de não punição, a despeito das denúncias, a despeito da circulação muito mais ampla hoje nas redes sociais, faz com que o racismo continue sendo cometido de forma tão evidente na nossa sociedade”, salienta.
No mesmo sentido, Isabel Mota comenta que não vê um problema de lei no Brasil, mas de aplicação. “Não se trata de uma questão legislativa, se trata da gente cada vez mais capacitar o nosso aparelho estatal, tanto o policial, quanto passando pelo Ministério Público, pelos julgadores e julgadoras, para que toda essa estrutura esteja apta a entender a diferença entre o racismo e injúria racial e aplicar devidamente as penas capituladas na legislação”, aponta.
SEGURANÇA
A categorização do racismo também esbarra na Segurança Pública, já que o crime é registrado em órgãos da área, como a Decrim e as outras delegacias da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE).
denúncias de injúria racial, entre janeiro e junho de 2024 na Decrim da PCCE
A própria Secretaria da Igualdade Racial, destaca Zelma Madeira, reconhece a importância de concretizar ações conjuntas entre as duas Pastas. Os projetos nesse sentido incluem a formação antirracista para agentes e a futura implementação do Projeto Nacional de Câmeras Corporais no âmbito da segurança pública, por meio do plano ‘Juventude Negra Viva’.
Em nota ao Diário do Nordeste, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS-CE) pontuou que denúncias de racismo e injúria racial são resultado do aumento de visibilidade sobre o assunto em espaços de discussão como os meios de comunicação, escolas, entre outros. A Pasta, porém, não falou sobre o projeto das câmeras corporais, ao ser questionada como acompanha esse processo e acerca da preparação dos agentes para a implantação.
“As Forças de Segurança do Ceará recebem formação inicial e continuada na Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp), com disciplinas que orientam sobre o atendimento humanizado às vítimas. Para aprimorar essas formações, a SSPDS assinou um termo de cooperação técnica com a Seir. Além da formação, o termo prevê o fortalecimento de ações transversais de combate ao racismo e construção de fluxos de procedimentos para o recebimento, encaminhamento e acompanhamento qualificado de denúncias de racismo, por meio da Ouvidoria e Decrim da PCCE”
COMO DENUNCIAR
De acordo com a Seir, tanto a Decrim quanto as outras delegacias da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE) estão aptas a receber denúncias de racismo. Além disso, as vítimas podem registrar Boletim de Ocorrência (BO) por meio do site da Delegacia Eletrônica (Deletron).
“Se eu estou sendo vítima de uma injúria racial ou de racismo, dependendo da circunstância, eu tenho que olhar para os lados e ver: eu vou conseguir gravar? Tem alguém gravando? Tem uma câmera de segurança? Quem aqui vai poder ser minha testemunha? Porque a minha palavra só não bastará, a gente já sabe disso. Então, eu tenho que me cercar de meios capazes e idôneos para comprovar aquela conduta ofensiva contra mim. A segunda coisa é, se tiver medo ou se estiver preocupado de como vai ser recebido pela estrutura do Estado, seja na Delegacia ou mais na frente pelas estruturas de Ministério Público e Justiça, procure instituições, como a Comissão de Igualdade Racial da OAB”
Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou Orientação Sexual (Decrim)
- WhatsApp/Telefone: (85) 3101-7590
- Funcionamento: segunda a sexta-feira, das 8 às 17 horas
- Endereço: Rua Valdetário Mota, 970, Papicu – Fortaleza – CE
Secretaria da Igualdade Racial (Seir) do Ceará
- Endereço: Rua Silva Paulet, 334 - Meireles
- E-mail: gabinete@igualdaderacial.ce.gov.br
- Contatos: (85) 3466.4869 / (85) 98555.8788