Havia uma vontade de transformar o mundo quando Sérgio Carvalho, aos 25 anos, ingressou na carreira de auditor fiscal, em 1995, no mesmo período em que o País criava uma campanha contra o trabalho análogo à escravidão. Recém saído do movimento estudantil universitário, se voluntariou para atuar em locais onde há violação humanitária.
Sérgio nasceu no Sertão do Piauí, mas vive no Ceará há 25 anos. Formou moradia fixa em Fortaleza, mas já percorreu todas as regiões do País em auditoria e para executar a vocação descoberta no primeiro contato com o trabalho análogo à escravidão.
“Quando eu me deparei com aqueles trabalhadores, decidi virar fotógrafo para dar visibilidade à voz deles. Tem sido essa a documentação nesses últimos 28 anos”, resume Sérgio ao lado dos quatro livros de fotografias produzidos até o momento.
O fotógrafo conversou com o Diário do Nordeste na Pinacoteca do Ceará onde será feita exibição única do documentário “Servidão” sobre as marcas do período escravocrata nas relações atuais de trabalho, além do trabalho feito para combater esse tipo de situação.
Antes da criação da “Política Nacional de Trabalho Escravo”, há 28 anos, as denúncias eram feitas por iniciativas como a Pastoral da Terra e pela imprensa internacional. Ao participar dos primeiros esforços contra esse contexto, Sérgio chegou ao Pará.
“Quando eu me deparei com esses trabalhadores que saíam da Floresta Amazônica e via a desolação, o desamparo e a solidão estampadas naqueles rostos, eu decidi virar fotógrafo”, lembra. Após a conclusão da auditoria, foi para São Paulo onde comprou a primeira câmera.
A fotografia é peça fundamental como um documento, meios de prova pela própria natureza do testemunho do real. A fotografia também funciona como expressão artística e eu acredito muito no poder político da imagem
Os registros causam impacto ao levar os observadores para os cenários degradantes ou gerar empatia aos semblantes em sofrimento. As imagens também deixam em evidência as técnicas profissionais de composição, foco e enquadramento.
Sérgio aperfeiçoou as fotografias de forma autodidata, mas chegou a fazer cursos como o da Casa Amarela da Universidade Federal do Ceará (UFC), no início dos anos 2000. Colegas como João Roberto Ripper e referências como a fotógrafa Claudia Andujar estão na lista de inspirações.
Os retratos em preto e branco são recorrentes entre as obras, mas Sérgio frisa que “o tema é quem impõe a estética”.
Arte combativa
Os trabalhos na fotografia exigem um envolvimento, empatia e respeito com as pessoas retratadas. “Se você for lá só fotografar e sair, vai pegar apenas aparência e não a alma”, pondera Sérgio.
Por isso, ele descreve a fotografia como “construção coletiva” pela confiança de quem se deixa retratar mesmo numa situação de extrema vulnerabilidade.
“Meus trabalhos costumam ser muito, muito longos, às vezes eu levo 10 anos para fazer um livro. Eu acho que o livro é o local certo para fotografia, eu vejo muito como o narrador através das imagens”, completa.
Títulos publicados pelo fotógrafo:
- Retrato escravo (2010): fotografias sobre péssimas condições de trabalho, solidão das famílias e resgate desses trabalhadores. As imagens foram feitas no Pará, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Ceará.
- Às vezes, criança – um quase-retrato de uma infância roubada (2013): recorte sobre a situação de milhares de crianças no Brasil com a infância roubada por terem de trabalhar precocemente em busca para a sobrevivência.
- Resgates - combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil (2021): trata do trabalho degradante encontrado pelos auditores no curso de ações desenvolvidas pelo Brasil afora.
- Oficina do suor (2023): aborda o trabalho análogo à escravidão no contexto da indústria da moda em São Paulo.
Mesmo diante de tantas histórias, algumas situações estão marcadas na memória do artista. “Quando eu fiz sobre o livro ‘Santo Sertão’ a última pessoa fotografada, uma senhora de 90 anos, após ser fotografada revelou pra gente que estava fazendo aniversário naquele dia e pediu um abraço. Aquilo fechou tudo”, descreve com certa emoção no olhar.
Pela natureza do trabalho, grande parte das recordações estão associadas à dor. “Teve uma situação muito dolorida, quando encontramos uma família onde a mulher estava grávida de sete meses e a oficinista cortava, inclusive, os alimentos dos filhos menores quando não tinha condições de trabalhar porque tava com dores.”
Sérgio tem dois filhos, o trabalho e o exercício artístico feito, principalmente, nos momentos de folga. “Não dá para separar, essas coisas caminham todas juntas, como artista visual eu tento nas horas possíveis trabalhar a fotografia como expressão artística”, reflete.
A fotografia é uma forma de conhecer as pessoas, o mundo e de se reconhecer dentro desse mundo. Apesar de estar fotografando o outro, a gente olha para dentro de si porque a gente só fotografa aquilo damos importância
Além do trabalho análogo à escravidão, Sérgio se dedica a retratar a luta do sertanejo, demonstrações de fé e as mulheres pescadoras artesanais no Ceará. “Eu me transformei no momento em que decidi ser fotógrafo.”
Ainda existe escravidão?
Os auditores fiscais do trabalho resgataram 40 vítimas deste tipo de violação em municípios cearenses ao longo do último ano. Em Quixadá, no Sertão Central, a operação foi ligada à extração de pedras. Já em Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza, a ação foi no contexto da construção civil.
Na capital cearense, os auditores resgataram pessoas em trabalho análogo à escravidão no serviço doméstico. São Gonçalo do Amarante (extração de granito), Russas (cerâmica), Pacujá (carnaúba) e Reriutaba (carnaúba) foram as demais cidades.
Em 2023, o Brasil teve 3.240 trabalhadores resgatados da condição análoga à escravidão.
Para Sérgio, as vítimas seguem um perfil: negras, pobres e sem instrução. “O pilar da exploração é essa pobreza extrema, a falta de capacitação e de escolaridade de pessoas vulneráveis aliado com a impunidade e com a ganância de alguns”, observa.
O auditor carrega na bagagem operações em diversos estados brasileiros devido à estratégia de levar profissionais de outros lugares para proteção pessoal. “A luta contra o trabalho escravo é uma luta diária, tivemos vitórias e conquistas, mas também derrotas, sem sombra de dúvidas”, completa.
O reconhecimento da existência do trabalho análogo à escravidão, a federalização do crime, a criação da lista suja do trabalho e a formação do seguro-desemprego para os trabalhadores resgatados são avanços na área.
Mas, por outro lado, o combate às violações exige esforços complexos. “Por que até agora não se erradicou o trabalho escravo? Enquanto houver desconhecimento, pobreza extrema e impunidade, o trabalho escravo vai permanecer”, considera.
Sérgio não possui o mesmo olhar sonhador, como ele próprio descreve, mas permanece acreditando na relevância de agir. “A fotografia e o cinema têm o poder fundamental na efetivação dos Direitos Humanos, faz parte da História da Arte no Brasil, porque é um elemento que leva você à reflexão, ao pensamento crítico e leva conhecimento”, conclui.
Sobre o documentário "Servidão"
O documentário "Servidão" (2024, 72 min) aborda as marcas do processo escravocrata ainda presentes nas relações trabalhistas contemporâneas com direção de Renato Barbieri. O filme estreou em janeiro deste ano e chega ao Estado com exibição única e gratuita na Pinacoteca do Ceará, neste sábado (5), às 17h.
O trabalho análogo à escravidão é apresentado com foco na Amazônia brasileira. Foram ouvidos trabalhadores rurais em frentes de desmatamento no Norte do Brasil e abolicionistas contemporâneos de diferentes vertentes, além de jornalistas, historiadores, auditores-fiscais e pessoas que lutam contra a exploração da força de trabalho.
A obra tem narração da artista Negra Li, codirigida por Neto Borges. Os fotógrafos Sérgio Carvalho e João Roberto Ripper participam de um debate sobre o documentário após a exibição na Pinacoteca.
Serviço
Exibição do documentário “Servidão”
Data: sábado (5), às 17h
Local: Auditório da Pinacoteca do Ceará (Rua 24 de Maio, 34 - Centro)
Classificação indicativa: 12 anos
100 vagas por ordem de chegada
Acessível em Libras