Já são, ao menos, 30 anos trabalhando com educação e naquela quarta-feira, 5 de outubro, Jorge Célio Coelho Aguiar, que há 19 anos trabalha na Escola de Ensino Médio de Tempo Integral Professora Carmosina Ferreira Gomes, em Sobral, viveu a maior tragédia da carreira. Um dos alunos da escola que ele dirige há 9 anos, entrou armado e atirou em outros 3 estudantes. Um deles, inclusive, segue internado em estado grave.
Correria, pânico, sofrimento. Uma tragédia no horário do intervalo. Jorge estava no espaço ao lado da sala onde tudo aconteceu. Narra que agiu no impulso para salvar todos os envolvidos. Dias depois da tragédia, ela ainda segue doendo. Mas, a gestão caminha no sentido de recomeçar uma nova história para alunos, funcionários e pais ligados à unidade escolar que funciona na periferia de Sobral desde o final da década de 1970.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, Jorge Célio, destaca que não sabe o porquê aconteceu, reitera que a escola não identificou bullying e que os quatro adolescentes envolvidos são “educados, estudiosos e participativos”. Sobre o recomeço, reforça, é preciso reconstruir a escola que "é ativa, viva". Nesse percurso, diz ele, apesar das dores, uma coisa é inquestionável: a escola é resgate de vidas.
Qual a sua experiência na educação e como tem sido lidar com essa tragédia?
A educação é vida. A escola é viva e mexemos com a transformação dessas crianças, jovens e adultos para que eles possam ter uma vida melhor, uma vida com um nível e qualidade melhor no futuro. Até de cidadania. Eu iniciei a vida na educação em 1995. Tenho ampla experiência em trabalho com jovens e adultos porque trabalhei em escolas privadas.
Desde a década de 1990 também trabalho em escolas públicas do Estado e do município de Sobral. Em 2013, somente por ter conseguido passar em concursos públicos estaduais, foi que me afastei do município e estou somente no Estado. Tenho uma experiência de gestão tanto em escola privada, como em escola pública. Sou especialista em gestão escolar.
Então a gente tem um pouco de experiência. Lógico que a situação que veio a acontecer foge de todo um contexto esperado, estudado, trabalhado, porque não esperamos um acontecimento desse.
Isso é muito de momento. Essas ações são muito do tempo, da maturidade que nós temos no cargo, da sensibilidade que temos, com a responsabilidade das ações. Até porque no momento a gente não pensa muito. É tudo muito rápido. Mas uma coisa é inquestionável: é resgate de vidas. Seja ela física. Psicológica. No caso lá (ataque na escola), a prioridade era resgatar e tentar socorrer os feridos para depois tomarmos qualquer outra atitude em relação a segurança, em relação às comunicações com os órgãos e tudo.
Jorge, quando aconteceu, você estava na escola?
Nós estávamos em um dia muito tranquilo. Em um dia de muita normalidade. Inclusive nós tínhamos uma equipe de psicólogos tanto da CREDE (Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação), como de um projeto que está sendo desenvolvido em três escolas. Um projeto piloto do Estado do Ceará em três escolas de Sobral, inclusive a escola Carmosina foi uma das contempladas. É com alunos e estudantes de psicologia. E os psicólogos da Crede e de Fortaleza desse projeto estavam conosco lá no momento.
Estavam na sala. Nós estávamos na sala dos professores, estávamos com 5 minutos do intervalo. Todo mundo já estava lanchando. Estava tudo tranquilo. Inclusive tive notícias de que o menino que atirou já tinha lanchado e que os meninos que foram atingidos já tinham lanchado, estavam na sala de aula descansando. Quando recebi de forma abrupta uma grande quantidade de alunos desesperados. Eu não identifiquei imediatamente, mas a sala que ocorreu é ao lado da sala dos professores.
Foi quase que de imediato que eu cheguei no momento. Eu e um professor. Chegamos imediatamente e começamos a fazer o que a gente tinha que fazer: socorrer as vítimas e isolar a área. Aí começamos os trabalhos com muita aflição lógico, mas foi de imediato.
Nesse momento, vocês saem pra socorrer, o SAMU chega, leva os adolescentes que foram atingidos, e a escola foi esvaziada?
Eu agilizei o esvaziamento da escola logo após os três comunicados. Foi o do SAMU, do órgão de segurança e da chefia. Fiz os comunicados imediatamente e esvaziei a escola. Para que a gente pudesse ter um trabalho mais tranquilo.
Depois que os alunos foram para unidade de saúde, vocês começaram a se organizar para fazer o quê?
Como tudo é muito rápido, vem assim um filme. Não podia me retirar da escola e deixar a escola sem ter uma conversa com os professores e com os funcionários que estavam todos abalados. Então, pedi antes mesmo e durante a retirada dos alunos, para que todos os funcionários fossem para uma sala, que tivessem calma que nós iríamos conversar. Aí dei um suporte à polícia, às forças de segurança. Subsídios para poder saber quem atirou e ter condições para começar a investigação.
Terminei com eles, fui pra sala que eu pedi para os professores e funcionários irem e fomos fazer um momento de acolhimento. Os psicólogos estavam conosco. Foi uma coisa boa nesse sentido, se é que tem uma coisa boa, mas foi.
Já tinha uns quatro (psicólogos) lá na escola. Eles participaram desse momento com a gente. Pedi tranquilidade a todos. Fizemos orações. Pedi que procurássemos esclarecer. Que houvesse uma descentralização de trabalho de acolhimento com a comunidade.
Quase todos os funcionários da escola são da própria comunidade, Sumaré e Padre Palhano. Alguns professores são da comunidade. Então, ficaria mais fácil já que eles fazem parte ajudar a gestão na questão dessas visitas, desse acolhimento. Depois eu, o professor e um funcionário fomos chamados pelo delegado, no caso já para prestar depoimento imediatamente.
Vocês na hora chegaram a ouvir os tiros?
Eu particularmente mesmo estando na sala dos professores ao lado não ouvi. O professor que estava fora ouviu um barulho que ele não identificou como tiro. Como saiu todo mundo correndo, ele achava que era uma briga e que o estampido parecia como um móvel jogado na parede. Ele não achava que era um tiro.
Você já disse que a escola não identificou que havia bullying nessa situação. Qual a percepção que a gestão da escola tem sobre o que ocorreu e a motivação?
Não foi identificado o bullying, e não reconhecemos o bullying porque não tivemos esse reconhecimento por parte dos alunos e nem de nenhum colega, porque senão nós teríamos atuado no caso.
Temos um projeto nas escolas estaduais chamado Projeto Professor Diretor de Turma. É como se fosse um professor, diretor, mas só que ele vai gerir somente aquela sala de aula. É um trabalho de perto exatamente onde tem escuta ativa, tem um trabalho sócio emocional, e se o professor identificar um problema de saúde em um aluno, ele passa todo esse caso para gestão onde nós fazemos os encaminhamentos para áreas necessárias, para oftalmologista, posto de saúde, psicologia.
O que a gente percebia desse aluno? Ele era um aluno introvertido. Raramente era de tirar brincadeira ou brincava. Ele era sonolento porque ele mesmo relatava que jogava jogos que são de tiro. Eu não sei o nome dos jogos. Mas ele jogava muito durante a madrugada e, por isso, na escola ele não conseguia passar o dia todo acordado. Porque a escola é o dia todo. Vai de 7 horas da manhã às 16 horas e 40 minutos.
Ele era muito sonolento. Era o que a gente já sabia desse garoto. Além disso, fazia todas as tarefas e não era aluno faltoso. Não tinha problema de vida, de confusão, de discussão que fosse percebido, entendeu? Então, não tínhamos como fazer um trabalho de um aluno que não passava para gente.
E, às vezes, mesmo que o aluno não passe, como fica o dia todo com a gente, a gente percebe muita coisa, mesmo se o aluno não falar. Existem os relatórios recolhidos pela escola, pela CREDE e são repassados ao projeto Diretor de Turma. E não foi percebido nada.
O que nós trabalhávamos era pra ele deixar de jogar, pra ele dormir cedo. Para ele não dormir em sala de aula, para prestar atenção. Então esse trabalho era feito com muita tranquilidade, com muita calma, com muita paciência.
Quanto aos demais alunos, Jorge, vocês falaram também que eram alunos excelentes. Qual o perfil desses adolescentes?
O perfil dos quatro envolvidos é parecido. Tanto do que atirou, quanto dos que foram feridos. Todos os alunos são educados, estudiosos e participativos. O que está em uma situação pior (um dos adolescentes atingidos com um tiro na cabeça segue internado em estado grave), ele é amigo de todo mundo. Um menino feliz, um menino assim um pouco tímido. Tanto que ele não gostava nem de sair muito de sala de aula, mas não era aquela timidez que se destacava, que fosse uma timidez que atrapalhasse. Porque ele brincava, ele participava de brincadeiras, de aulas mais lúdicas, do esporte. Ele é muito querido.
O aluno que teve o tiro de raspão na cabeça (foi encaminhado à unidade de saúde, mas já recebeu alta), ele já está um pouco mais calado. Mais introvertido. Assim como o que teve o tiro na perna (também foi hospitalizado, mas recebeu alta).
Então, eu sinceramente não vejo uma justificativa para esse ocorrido com essas crianças. É muito esquisito.
Esse retorno à escola que está previsto para a próxima semana traz consigo uma grande necessidade de cuidados, de reencontro com a comunidade. O que, de fato, vai ser diferente nessa rotina?
Eu disse hoje paro professor Daniel (coordenador da CREDE), eu como gestor, eu tenho que pensar no macro de uma escola. A gente não pode isolar o fato e viver somente para aquele fato. Até porque o que nós vamos querer é que ele vá “entrando em um esquecimento” para que a vida da escola volte ao normal o mais rápido possível.
Imediatamente, nós vamos ter um acolhimento com todos os funcionários na terça-feira (11 de outubro) quando a escola abrir, estaremos na porta da escola recebendo os pais, alguém da comunidade escolar, alunos. Todos com faixas, com mensagens, com um abraço. A gente vai dizer que está perto. Com uma coisa mais tranquila, mais lúdica. Para trazer tranquilidade para escola.
A gente tem que começar a tirar aquela coisa meio macabra que aconteceu, sabe, de dentro da escola. A escola é muito viva, é muito ativa. Não pode ficar parada no tempo.
Nós vamos depois, cada professor, fazer um trabalho com uma equipe que eles vão saber o que pode falar, o que não pode falar. Eles vão receber um atendimento e vão receber um treinamento para poder levar estas palavras a cada sala de aula.
Nós teremos uma equipe da CREDE com, se não me engano, 4 ou 5 psicólogos. Inicialmente, as duas primeiras semanas, o dia todo na escola pra se o aluno tiver uma crise de choro, se o aluno tiver deprimido.
Se um professor não estiver bem, imediatamente a gente vai substituir o professor e ele vai ser atendido pelos psicólogos e assistente social. No caso dos meninos do bairro, um assistente social também está fazendo esse trabalho. Fazendo ponte entre a escola e a família.