Contar histórias para que elas não morram, contar histórias para que não se esqueça de onde se vem. A partir de tal intenção, surge a série “O Livro das Guardiãs”. A produção em áudio, voltada ao público infantil, destaca em cinco episódios as trajetórias de mulheres pretas e indígenas que marcam o Brasil a partir de diferentes atuações e em diferentes tempos. A obra já está disponível para audição no YouTube e no Soundcloud.
“O Livro das Guardiãs” mescla dados e fatos históricos com aberturas à fabulação e imaginação para compartilhar as histórias da quilombola Dandara dos Palmares, da líder indígena cearense Cacique Pequena, da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, da heroína Luiza Mahin, da beata cearense Maria de Araújo e da líder indígena e ministra Sonia Guajajara.
Com direção de Camilla Osório de Castro e roteiro assinado por ela e Ana Aline Furtado, a série da produtora Mar de Fogueirinha conta as histórias das seis personagens em cinco episódios que são narrados por duas “guardiãs”: Luta e Memória, interpretadas pelas atrizes cearenses Paula Yemanjá e Eliahne Brasileiro.
História e fabulação
“A escolha das personagens históricas veio de uma tentativa de lançar um olhar sobre as histórias que a gente considera que não foram suficientemente contadas, principalmente para as crianças”, aponta Camilla.
“Todas as iniciativas para manter vivas as histórias valem a pena”, dialoga Eliahne. “O grande salto do ‘Livro das Guardiãs’ é a leveza, o afeto e o cuidado dado às protagonistas pelas personagens que esbanjam ludicidade com alegria e ternura”, define a atriz e cantora.
Essa opção se conecta a uma busca por se deslocar das narrativas comumente celebradas sob o ponto de vista histórico no Brasil. “São histórias que ajudam a contar a História do nosso país, mas a não oficial, a de quem não necessariamente ganhou as grandes batalhas”, segue a diretora.
Justamente por conta desse caráter “extraoficial”, parte das personagens retratadas são figuras sobre as quais, inclusive, se questiona a existência de fato, como Dandara e Luiza. “A gente não sabe sequer se elas realmente existiram. Não existem provas porque o apagamento das histórias delas é tão grande que não se tem um registro confiável”, avança Camilla.
"A gente desloca o olhar de uma narrativa hegemônica e dominante e, a partir da escolha desse olhar poético em cima dessas existências, lança mão na criação de outras possibilidades e referenciais. Quando a gente coloca essa lupa e trabalha a partir desse olhar, todo mundo ganha no sentido da gente construir outras realidades possíveis", elabora Paula.
Unindo pesquisas bibliográficas à criação, a intenção é por honrar as protagonistas dos episódios. "A gente se amarra em algumas informações históricas confirmadas, mas existe um grande espaço para a fabulação e me parece que esse exercício é a única forma que a gente tem de respeitar e honrar a memória delas e das mulheres como elas”, defende Camilla.
"É uma reparação de tantas histórias sobre mulheres que foram colocadas em invisibilidade. Escolhê-las e louvá-las, contar essas narrativas, é uma forma de se irmanar com todos esses saberes e mulheres fantásticas", dialoga Paula.
Narrativa oral
As histórias compartilhadas nos cinco episódios, como define Paula, são um "recorte poético de uma existência". A forma e o conteúdo de "O Livro das Guardiãs" aproxima a produção da tradição da narrativa oral, do “causo” repassado entre gerações.
“Interpretar a Memória foi um delicioso desafio. Ao me deparar com ela, a princípio, imaginei uma personagem de um tempo que não era o meu, criei uma voz do passado, trazendo a referência de minha avó que era ‘contadeira’ de histórias”, explica Eliahne.
"Mesmo que a gente esteja trabalhando com um texto muito bonito construído pela Camilla e pela Aline, o fato de você escutar vai ligando (o projeto) à coisa do ancestral, da importância da cultura oral", conecta Paula, que também atua como contadora de histórias na própria arte.
Neste sentido, o gesto ancestral de contar histórias para crianças acabou moldando o formato da obra, que baseia o desenvolvimento narrativo e sensorial da obra somente pela camada sonora.
“A entonação da voz das atrizes, a paisagem sonora, (a forma) como a trilha entra, tudo isso são coisas que ganham muito mais força porque são a tua fonte única de construção daquele universo. Você está trabalhando muito mais com quem te escuta, porque as imagens vão ser formadas na imaginação”, afirma a diretora.
Outros formatos
Apesar de atuar principalmente no campo do audiovisual, a Mar de Fogueirinha aposta em diferentes formatos nas produções, como o de “O Livro das Guardiãs”. Além da áudio série, a produtora já assinou também uma peça de teatro e uma publicação em quadrinhos.
“Antes de ser uma produtora de cinema, ela é um projeto de autonomia, como diz o Alisson (Severino, sócio da Mar de Fogueirinha). A coisa mais importante é que ela possibilita que nós e os artistas que trabalham com a gente possamos viabilizar a nossa vida econômica e nossa necessidade de expressão artística”, compreende Camilla.
“A gente abarca vários formatos porque os artistas que estão com a gente são muito múltiplos e não nos parece que seja o caso de enquadrar o trabalho e a criação das pessoas dentro apenas do formato do cinema. Se há uma demanda de passear por outros formatos, a gente abraça e faz com que seja possível”, finaliza.
O Livro das Guardiãs
Onde ouvir: no canal do Youtube ou no SoundCloud da produtora Mar de Fogueirinha
Mais informações: no Instagram @mardefogueirinha