Restauro da obra “Mulher Rendeira” está em negociação entre o Banco do Brasil e a família do artista

Escultura, de Corbiniano Lins, traz à tona discussão sobre restauro, e expõe desafios de preservação de outras obras em Fortaleza

A escultura “Mulher Rendeira”, de Corbiniano Lins (1924-2018), exerce fascínio sobre o arte-educador cearense José Viana, 39 anos, desde que trabalhava como office boy. Sempre que passava em frente ao Banco do Brasil (BB), na esquina da Avenida Duque de Caxias e Rua Barão do Rio Branco, no Centro de Fortaleza, admirava o símbolo cultural, sem imaginar que, anos depois, seria o responsável por resgatá-lo de um destino irremediável.

A obra, instalada no jardim da agência da Praça do Carmo desde 1966, ficou aos pedaços após os operários da empresa Artflex Engenharia, contratada pelo Banco para realizar uma reforma, desmembrarem-na a marretadas.

Viana tomou conhecimento do caso via denúncias nas redes sociais, na última sexta-feira de maio (29). De imediato, ele se deslocou até o local e conseguiu impedir – com o aval e a ajuda dos próprios trabalhadores, após sensibilizá-los do valor histórico da escultura – que os destroços fossem enviados a um centro de reciclagem e vendido como entulho. 

Foi assim que Viana colocou tudo numa Kombi e levou para sua residência, onde os destroços da obra ficaram até ontem (3). Segundo ele, as peças foram entregues ao Banco para os devidos procedimentos de restauração. A assessoria do BB ainda não confirmou, porém, com quem ficará esse trabalho.

O episódio vem repercutindo em várias instâncias da sociedade, desde a classe artística até as secretarias municipal e estadual de Cultura, e também no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) - Departamento do Ceará. Primeiro, porque o responsável pelo resgate só anunciou que estava em posse dos destroços na segunda-feira (1), depois de tomar todas as medidas legais para garantir a segurança da escultura e a dele; e segundo, porque todos os olhares agora estão voltados para o processo de restauro. 

Encaminhamentos

Em notas encaminhadas ao Verso, tanto o Banco do Brasil quanto a empresa Artflex Engenharia lamentaram o ocorrido. Mas, se por um lado o BB responsabilizou a Artflex por um “erro de execução”, a acusada disse ainda estar “apurando os fatos, uma vez que tem como objetivo a adequada prestação dos serviços, respeitando sempre as leis, normas de engenharia e obrigações contratuais”. 

Até o fechamento desta matéria, porém, nenhuma das duas instituições cedeu o contrato vigente para provar o ruído de comunicação que levou à destruição da escultura, apesar de ambas afirmarem o compromisso com o restauro da obra.

“A Artflex Engenharia esclarece que as providências de restauração e realocação da Estátua já estão sendo solucionadas, de forma a minorar qualquer impacto porventura decorrente deste evento”, afirma a nota, na qual a empresa reitera ainda “o seu compromisso com a probidade e a transparência”. 

Já o Banco do Brasil confirmou estar “em contato com a família do artista Corbiniano Lins e com autoridades intervenientes, com as quais estuda meios de restaurar a obra, considerando os aspectos legais e artísticos envolvidos”. O BB disse ainda que “adota ações que levarão à sua reinstalação e comunicará as definições tão logo o processo esteja concluído”. 

O responsável pelo resgate, José Viana, havia se prontificado a montar uma equipe de restauração com o apoio da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, por meio da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho. No entanto, o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) - Departamento do Ceará, Jefferson John Lima da Silva, já tinha se posicionado contrário a essa alternativa.

“O IAB é radicalmente contra a execução do restauro por outra responsabilidade que não seja o ateliê do Corbiniano. Agora, se a família dele abrir mão, aí a Escola de Artes e Ofícios está preparada para fazer. Mas a prioridade, pela Lei de Direitos Autorais (Art. 26), é do ateliê do Corbiniano”, afirmou Jefferson na terça-feira (2). A reportagem tentou entrar em contato com a família do artista, em Recife, mas não conseguiu até o fechamento da edição.

O presidente do IAB-CE disse também que o instituto já havia notificado os conselhos de arquitetura e engenharia do Estado em busca de respostas efetivas para o caso, por meio de investigação ético-disciplinar dos responsáveis técnicos pela reforma.

Viana, por sua vez, acredita que mais do que encontrar culpados, este é um momento de buscar soluções. E o cearense mantém o interesse em colaborar com o processo de restauro. Ele já está em busca, inclusive, de patrocínios para viajar até Pernambuco, onde está o ateliê de Corbiniano.

Memória e conservação

Arquiteta e pesquisadora da Arte Urbana e Pública de Fortaleza, Tania Vasconcelos endossa o debate acerca da questão. “Considerando toda a luta, empenho e conquista dos artistas plásticos ou visuais cearenses, principalmente com a concepção da Lei Nº 7503, de 7 de janeiro de 1994, publicada no Diário Oficial de 18 de janeiro daquele ano, estimulando a arte na cidade, é literalmente inaceitável o que ocorreu com a obra ‘Mulher Rendeira’, do artista Corbiniano Lins, em Fortaleza”, sublinha.

Autora do livro “A Arte Pública de Fortaleza” (2003) – em que cataloga 112 obras, entre esculturas, murais e painéis – Tania comenta que sempre há um risco de a cidade ser um local desmemoriado, tendo em vista, em sua opinião, a carência de ações públicas e privadas que resguardem, com total zelo e segurança, as peças artísticas instaladas em lugares públicos.

“A gente precisa conscientizar a população, educar as pessoas sobre toda essa questão patrimonial, mas o exemplo do poder público e do poder privado em manter isso na cidade necessita acontecer. Educar a partir de um bom estado dessas obras. Não tem nem como contabilizar o mínimo que a manutenção delas representa. É uma questão de boa vontade, pura e simplesmente disso”, diz.

Nesse movimento, a arquiteta evoca a urgência de se olhar com afinco, por exemplo, para o Parque Pajeú ou das Esculturas, como é mais conhecido, situado entre a Avenida Dom Manuel e a Rua 25 de Março, no Centro, inaugurado em 1997. Segundo ela, o espaço “está em ruínas”, com poucas obras e as mesmas em mau estado de conservação.

“As demais foram se acabando, sendo retiradas, e esse parque é uma área com concentração de 17 obras de artistas cearenses, como Aldemir Martins, Sérvulo Esmeraldo, José Guedes... Teve uma curadoria muito séria do Roberto Galvão e do José Mesquita, na época da concepção, e simplesmente está se deteriorando”, situa. “Ele precisa ser restaurado, porque existe o projeto e os dois artistas que foram os curadores estão vivos, então a gente ainda tem todo o material na mão. É uma causa que urge”.

Além disso, como outra das medidas mais urgentes a serem tomadas, está um diálogo com a Divisão de Patrimônio do Município a fim de sanar pontos de extrema relevância. 

“Precisamos definir de quem são as responsabilidades com relação a essas questões de acervo na cidade. É do município ou do Estado? É público ou privado? Quem realmente está à frente, quem responde?”, questiona a pesquisadora. 

Processo de restauração

A afirmação do descaso com a arte pública no Ceará ecoa na fala da curadora de arte e presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo, Dodora Guimarães. Ela viu com tristeza o ocorrido com a “Mulher Rendeira”, contudo comemorou o engajamento, nas redes sociais, provocado por artistas e intelectuais, para tentar solucionar os dilemas e encontrar a obra. 

Ao mesmo tempo, traz à superfície complicada realidade. “Tenho uma lista de obras que desapareceram, foram destruídas, que ninguém sabe e ninguém viu, do Sérvulo Esmeraldo, que é um artista que até 2016 estava vivo e era alguém atuante, muito bem posicionado. Mesmo assim, a gente vê o mau estado de conservação das obras dele. E não por omissão nossa, mas por descaso mesmo”, argumenta.

A lição que o caso da obra de Corbiniano Lins deixa é, conforme Dodora, a relevância de zelar por outros monumentos concebidos pelo artista. “É dar atenção ao ‘Monumento ao vaqueiro’ (1965), por exemplo, de tanta importância simbólica para o cearense, na praça do antigo aeroporto Pinto Martins. Está largada, abandonada”.  Vale ressaltar que ele também esculpiu  “Iracema” (1965), no Mucuripe, restaurada em 2012.

Feito Tania Vasconcelos, ela também chama a atenção para a necessidade de um olhar extremamente acurado sobre a restauração da “Mulher Rendeira”, levando em consideração que, em sua visão, o Ceará não possui histórico positivo no setor. 

“Por exemplo, nós temos o caso da ‘Iracema Guardiã’, do Zenon Barreto. Aquilo não é um restauro, é uma adulteração. E tem também uma escultura do Sérvulo que foi arremedada, tendo em vista que aquilo também não é um restauro, o caso do ‘Monumento ao jangadeiro’ – perversamente retirada do local onde se encontrava por conta dessa reforma na Beira-Mar. O processo de restauro da ‘Mulher Rendeira’ deve ser feito por profissionais competentes na área, que sejam capazes de, de fato, restaurar o monumento”.

Na esteira dessa questão, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) - Departamento do Ceará afirma que está aberto à toda a cena cultural da cidade para ser o centro dos muitos debates acerca do caso e de outros, congregando artistas e classe cultural. 

Por sua vez, o arte-educador cearense José Viana alerta para a relevância da vigilância e do zelo para com o nosso patrimônio cultural.

“Não podemos mais esperar que mais ações como essa, infelizmente desastrosas, venham acontecer para que possamos entender e dar valor ao que é cultura, arte”, finaliza.