Dançar reggae “coladinho” é a cara do Nordeste. No Maranhão, estado onde está localizada a “Capital Nacional do Reggae”, São Luís, o reggae agarradinho ganhou até projeto para virar Patrimônio Imaterial, tamanha a importância do ritmo para a identidade do estado. No Ceará, quem domina é o reggae a dois, versão do agarradinho com jeito de forró, seja no arrastado no pé ou no movimento dos quadris. Mas, em Fortaleza, um outro jeito de dançar reggae se popularizou nos últimos anos: o reggae do passinho.
Criado em 2012 pelo DJ cearense Luis Thande, o DJ Tandinho, em parceria com o primo, DJ Regis Dekker, o reggae do passinho mixa elementos tradicionais do reggae jamaicano ao break dance e, ao contrário do “a dois”, se caracteriza por ser uma dança mais livre, “para dançar solto”.
“Eu já dançava e ensinava hip hop e fazia muitos eventos de reggae. Quando comecei a escutar reggaeton e vi que eles faziam aquele passo para frente, '1, 2', quis criar um passo original, inspirado no dancehall, e instigar quem dançava por aqui”, lembra Tandinho, que conta ter se inspirado também nas dançarinas Rita Maranhense e Adilene Lessa (Carioquinha), que já dançavam “marcado” nas festas, numa versão inicial do passinho.
O dancehall é uma subcultura com forte influência do reggae que surgiu na Jamaica nos anos 70. O movimento abrange um tipo de dança urbana que costuma ser embalada por batidas marcantes e mais rápidas que o reggae “tradicional”.
Ainda em 2012, com o intuito de compartilhar o passinho com amigos e familiares, o DJ decidiu publicar um vídeo com uma das coreografias que tinha elaborado com Regis no Facebook. Uma página de humor compartilhou e o conteúdo rapidamente chegou a mais um milhão de visualizações – foi o primeiro viral do reggae do passinho.
Aos poucos, quem via os vídeos publicados nas redes foi começando a se interessar e reproduzir, fosse nas festas ou em casa. Segundo Tandinho, a ideia era justamente essa: permitir que as pessoas dancem sem a “pressão” de ter que dançar com alguém – mas a conexão com outras pessoas permanece, já que grupos costumam se formar para dançar juntos, seja de forma oficial ou ocasional.
De início, nem todo mundo aderiu ao passinho. Dentro do próprio movimento reggae, muitos dançarinos, entusiastas e DJs viam a modalidade como algo que "feria" a cultura tradicional e "o reggae que vem de Bob Marley", por propor novos subgêneros e passos de dança.
Hoje, no entanto, o reggae a dois e o passinho são vistos como expressões diferentes, mas legítimas, e o estilo ganha cada vez mais adeptos, se tornando um ponto de fortalecimento da cultura reggae na Capital. “A galera que antigamente criticava hoje dança, participa de grupo, toca. Tá uma febre de novo”, aponta DJ Tandinho.
O importante é que toda a galera que dança e conhece o passinho do reggae continue dançando, mostrando nas redes sociais que o reggae do passinho é uma cultura, um reggae que ajuda as pessoas. Muita gente já foi ajudada pelo reggae do passinho. Gente que diz que se não fosse por ele estava errando, fazendo outras coisas.
Grupos renovam público
A “febre” inicial do reggae do passinho atingiu o auge entre 2017 e 2018, quando programas como o Se Liga VM, da TV Verdes Mares, e o Profissão Repórter, da Rede Globo, descobriram e divulgaram o passinho de Fortaleza. O movimento nunca parou, é verdade; mas, mais recentemente, o passinho voltou a ser trend em redes como o TikTok e o Kwai, conquistando novos entusiastas e adeptos da dança.
Nos vídeos curtos, duplas, trios e até grupos de dezenas de pessoas dançam reggae marcado, em uma sintonia que impressiona – e coleciona, muitas vezes, milhares de likes e visualizações.
Na Capital, além dos amigos que se juntam para dançar em diversos pontos da cidade, como praças, Cucas, centros culturais e bailes, atualmente há dois coletivos de reggae do passinho: o grupo OSS Passinho – primeiro grupo oficial após a Equipe do Reggae do Passinho, do DJ Tandinho – e o Debocha Reggueiro, grupo independente que começou a atuar em 2023 e desde então, em parceria com o projeto EducaReggae, oferece aulões e oficinas para levar o passinho para mais pessoas.
Idealizadora do EducaReggae, a estudante e professora de dança Jéssica Marília, 26, conhecida como Jhessy, explica que esse movimento impulsiona a cultura local, já que, a partir dos eventos dos coletivos e das aulas, mais pessoas têm ido a bailes de reggae e conhecido a cultura do ritmo.
“Hoje em dia, na cidade de Fortaleza, conseguimos achar um lugar para dançar reggae todos os dias da semana. É um movimento que vem crescendo cada vez mais e, ao mesmo tempo, mostra o nosso jeitinho único de dançar”, explica.
Instrutora do reggae a dois, Jhessy ressalta que se encantou também pelo passinho ao entender que a dança é uma cultura periférica e única, original de Fortaleza, e que inova na forma de promover a conexão entre as pessoas. Por isso, desde o ano passado o EducaReggae une os diferentes estilos de dançar reggae. “A proposta é acolher todos que estão nessa luta por espaços”, explica.
"Pelo prazer de se sentir vivo"
Diretor do OSS Passinho, Everton Yago Bezerra da Silva, 29, o Bully, conta que o grupo se reúne quatro vezes por semana para ensaiar, se revezando entre praças, Cucas e o Dragão do Mar para contemplar lugares próximos a todos os integrantes.
“A gente ensaia por gostar da arte mesmo, pelo prazer de se sentir bem, de gostar de dançar, de se sentir vivo”, conta Bully. Apesar de saber que ainda é difícil viver da dança e lidar com os preconceitos de quem não conhece a cultura, “que ainda é criminalizada e mal vista”, ele compartilha que o grupo teve uma grande conquista recente: se apresentar com o rapper Leviano no Plantão Festival 2024.
Inicialmente, Bully e mais nove amigos se reuniam para dançar; hoje, são cerca de 50 integrantes – incluindo a irmã mais nova de Bully, Inara Morais de Santos, 25, coordenadora do coletivo. Outro membro da família costuma aparecer e curtir os ensaios: o pequeno Brayan Lucca, 3, filho de Inara e sobrinho de Bully, que adora ver a mãe dançar.
“O grupo começou a crescer mais e a ter mais visibilidade depois desse show. Nossas redes sociais estão tendo mais alcance, todo mundo tá assistindo, comentando”, afirma. Não são só elogios: muitas críticas de quem ainda associa o reggae à criminalidade chegam aos integrantes, em sua maioria oriundos de bairros periféricos da Capital.
“Existe todo um preconceito enraizado, querendo ou não. Hoje a gente até tem um modo diferente de se vestir, mas há quem ainda diga que reggae é coisa de maconheiro, de desocupado, de vagabundo”, lamenta.
Mas Bully acredita que, com o tempo e mais divulgação sobre a cena local de reggae, há dias melhores por vir. “O reggae do passinho contribui bastante [para diminuir o estigma] porque quem não se identifica e não gosta do baile a dois, pode se identificar de outra forma. Você dança, você consegue se divertir – e ele vale para todos”, destaca.
Reconhecimento da arte da periferia
Atualmente, o principal ponto de encontro para quem curte dançar passinho, além dos Cucas e do Polo de Lazer do Conjunto Ceará, são as diversas praças da Capital. Seja na caixinha de som ou nos setlists de DJs como Victoria System, Natan Pedra e Ramon Roots, o reggae se faz ouvir em vários pontos da Cidade – mas um deles, em especial, se tornou reduto do grupo Debocha Reggueiro: a Pracinha do North Shopping, no Presidente Kennedy.
Ao lado da BigBanca, o grupo faz a festa de 200 a 300 jovens toda terça-feira, no famoso “Reggae do North”. Às quartas, também na praça, o coletivo dá aulas gratuitas para quem quiser aprender a dançar.
“Quando eu aprendi, não tinha ninguém para me ensinar. Então, eu quis ensinar para quem não tinha apoio e tinha dificuldade”, conta Jéssica Sales, idealizadora e uma das instrutoras do Debocha, que atualmente conta com 14 integrantes fixos. Além das aulas e oficinas, o grupo já se apresentou com artistas como a rapper Má Dame e irá fazer uma participação em um filme em breve.
“O primeiro convite que recebemos foi do Coletivo Barramar. Depois dele, a gente começou a instigar e fazer figurino, se dedicar. E a gente está se profissionalizando, porque agora as pessoas estão reconhecendo o trampo da periferia, que lá não tem só criminalidade”, destaca Jéssica.
A rotina de ensaios e aulas revela um propósito maior no grupo de passinho, segundo a idealizadora. É ali, conta Jéssica, que pessoas trans como ela podem dançar sem medo, sendo acolhidas e livres. A representatividade LGBTQIAPN+ no grupo, destaca, é um dos grandes diferenciais do coletivo na cena. “A gente abraça quem chega como se fosse uma família”, pontua.
Jéssica explica, inclusive, que o coletivo se esforça para que o reggae do passinho seja para todos os grupos e idades, não só para a juventude. No Reggae do North, por exemplo, “não pode ter bebida nem fumar em todo canto, a gente respeita o ambiente, porque tem crianças ali, famílias que chegam, comem um pratinho. Começou a ter uma espécie de feirinha ao redor”, completa.
A liberdade de expressão do passinho permite que a gente se expresse dançando. Traz mais força para a cultura, para as periferias, movimenta os bairros, leva alegria pra comunidade.
Jéssica ressalta que, diferentemente de quando o passinho começou, hoje a tecnologia está mais acessível. Por isso, mais jovens veem e publicam vídeos dançando, o que acaba construindo uma nova rede de entusiastas. “Hoje tem galera de fora querendo aprender por causa das redes sociais – TikTok, Kwai, Instagram, YouTube. A gente gosta de ensinar pessoalmente, mas de tanto ver os vídeos, muitas pessoas já estão treinando em casa e dançando”, conta.
Juventude adere ao passinho
A estudante Sophia Silva, 17 anos, faz parte dos que se encantaram com o passinho em casa, pela tela do celular, antes de sair para dançar. Ela conta que começou a ouvir reggae na infância e seguiu apaixonada pelo ritmo como uma forma de homenagear o pai, que sempre gostou do gênero musical.
“Quando fui crescendo e conhecendo mais, tive a curiosidade de aprender a dançar o passinho. Já conhecia o Tandinho e o Regis, porque eles eram da minha rua. Aí conheci o Debocha Reggueiro pelo TikTok”, conta.
De casa, a jovem tomou coragem para conhecer os passos pessoalmente. Em dois dias, já tinha conseguido acertar os passos base. “Aprendi muita coisa [com o passinho], é onde me sinto bem. Onde desopilo, depois de um dia estressante”, destaca.
Assim como ela, diversos outros jovens buscam no reggae do passinho a possibilidade de momentos alegres e de liberdade – e inclusive se dedicam a ele profissionalmente. É o caso da produtora cultural e DJ Victoria System, 22, que desde a pré-adolescência é apaixonada pelo reggae. Hoje, ela produz um projeto relacionado ao reggae no Cuca do Mondubim e toca em festas e bailes, além de ser presença frequente nas terças do Reggae do North.
"Quando eu comecei como DJ, meu primeiro objetivo foi tocar dancehall e levar essa cultura para frente", conta a artista, que costuma tocar de artistas clássicos do gênero, como o jamaicano Shaggy, e cantores brasileiros, como o cearense Emiciomar.
"De oito anos para cá, o cenário mudou muito. A gente agora pode conhecer a cultura, o que o reggae realmente passa. Não é só dançar: vai muito além disso. O reggae me salvou, desde nova. E, graças a Deus, as pessoas estão abraçando mais a cultura e tendo menos preconceito", conclui.