Quem nunca viu sol e chuva ao mesmo tempo e disse que era casamento da raposa? Ou, diante de uma situação difícil, pensou estar comendo o pão que o diabo amassou? Ou ainda, no ambiente de trabalho, olhou para o colega bajulador e o chamou de puxa-saco? Onipresentes, essas expressões fazem parte de nós e constituem a vida em sociedade.
Reuni-las em um só lugar, além de exercício divertido, pode render generosa imersão na cultura de todo dia. Se o objetivo for também explicá-las, aí o pacote fica completo. Em “Balaio de Gato” – livro do dentista e pesquisador Helder Ferreira de Moura – essa ideia é levada a sério e convoca a um apanhado para ninguém colocar defeito.
São 700 expressões, histórias e curiosidades de termos falados praticamente todo dia pela população brasileira. O recorte, tão encorpado, engloba sentenças tanto do Ceará quanto de outras partes do país, num misto de identificação e peculiaridade. “Falamos tantas expressões e não lembramos de saber de onde elas vêm… Cada descoberta, assim, é um prazer”.
O levantamento feito por Helder começou durante a pandemia de Covid-19 e não parou mais. Agora mesmo ele tem material suficiente para outro livro na mesma pegada. O título desta primeira publicação, por sua vez, justifica-se por não ser específico, erudito ou acadêmico. Está tudo junto, se adequando a qualquer tipo de leitor.
“‘Balaio de Gato’ aceita todo tipo de retalho ou recorte, a exemplo do balaio de gato conhecido no sertão”, compara o autor. Esse detalhe faz diferença por fazer com que o projeto chegue junto tanto do público mais exigente quanto daquele afeito a gaiatices. O humor, elemento tão caro à brasilidade, é bastante trabalhado nas páginas.
Isso se reflete principalmente diante de expressões comumente cearenses, feito “rabissaca” e “amancebado”. A primeira, conforme o livro, indica um gesto com o corpo ou com a cabeça na direção contrária a alguém, desviando a face e o olhar de forma rude, com grande desprezo. “É prática frequente entre mulheres rivais, em competição amorosa”, explica.
A etimologia dela, por sua vez, vem da união das palavras “rabo” e “sacar” – algo que, inclusive, virou até música. “Rabissaca” tem autoria de Seu Pereira e Coletivo 401.
Já “amancebado” diz respeito a pessoas que vivem maritalmente sem casamento. Conforme a publicação, os amancebados sofreram forte preconceito em décadas passadas, rejeitados pela Igreja Católica e pela sociedade.
Conta-se que, no interior do Nordeste, na primeira metade do século passado, se eles pedissem água na porta de casa receberiam o copo no fim do terreiro amarrado na ponta de vara comprida, para não se aproximar do alpendre. “O objetivo do projeto é este: extrair mensagem, ensinamento, história e humor por meio das expressões e do contexto cultural”.
Folclore político e historinhas do sertão
Toda a pesquisa para o catálogo de verbetes foi feita em livros do gênero, bebendo, portanto, de fontes como Luís da Câmara Cascudo, João Ribeiro, Oswald Barroso, Mário Penna, entre outros. Buscas em sites especializados na internet também contribuíram para a lista.
Para além da redação própria e enxuta de cada palavra – sem, contudo, cair em reducionismos ou abreviações – há outras partes superinteressantes para a audiência. É o caso de “Para relaxar”, na qual Helder Ferreira de Moura inclui um pouco de folclore político e historinhas do sertão.
“O vocabulário brasileiro incorporou ao longo dos séculos expressões de diversas origens e que, por oralidade e por escrita, entraram para a nossa rotina. Temos verbetes da era antes de Cristo, passando por Império Romano, Idade Média, Renascença, Período Colonial, chegada de D. João VI, o cearensês etc. As expressões refletem a realidade de cada época”, situa o autor.
Não à toa, quando questionado sobre as dores e delícias da iniciativa, Helder é enfático: “Não tive dores, só alegrias, principalmente pela receptividade no primeiro lançamento, ocorrido em 9 de agosto no Círculo Militar”. É coisa da própria forma do estudioso de observar o mundo, as pessoas e as relações entre elas.
Helder nasceu na fazenda Santelmo, município de Umari, interior do Ceará. Sexto filho de uma prole de 14, foi estudante peregrino em várias escolas do sertão nordestino. Nessa travessia, passou, por exemplo, pelas cidades de Baixio (CE), Várzea Alegre (CE) e Cajazeiras (PB). Formou-se em Odontologia pela Universidade Federal do Ceará.
Hoje, é sócio-fundador e presidente da Associação dos Cajazeirenses e Cajazeirados do Ceará (AC3) e membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (ACAL), ocupante da cadeira de número 40, patronizada por Dom Zacarias Rolim de Sousa.
Seguir pesquisando
O Ceará, pela diversidade territorial e social, contribui no livro com expressões vindas de africanos, povos originários, árabes, povos originários, militares americanos na Segunda Guerra Mundial e ingleses na construção de ferrovias.
Espilicute, forró-forrobodó, cocorote, Queima Raparigal, baitola, vender cebola, cotôco cearense, entre outros, são alguns dos vocábulos cearenses em conformidade com esse panorama de Helder. Não à toa, o desejo do pesquisador de seguir estudando o tema.
“É muito bom”, confessa ao citar outros livros da própria autora, além de um com a professora Aila Sampaio. Trata-se de “Maria Olívia”, com lançamento previsto para este ano. “Tem plataforma para Teatro, Cinema e Televisão. Estamos trabalhando com todo cuidado para alcançarmos os objetivos”. Aguardemos.
Até lá, outros lançamentos de “Balaio de Gato” estão previstos para o dia 23 de setembro, em Cajazeiras, e na Embaixada da Cachaça, com data a definir.