Partilha, criação e networking: programa de tutoria artística no Ceará promove trocas entre gerações

Ha 10 anos, Escola Porto Iracema das Artes conecta artistas cearenses com nomes locais e nacionais para a produção de arte

São sete meses dedicados a elaborar, pesquisar e refletir sobre processos criativos e a continuidade do artista, com orientação de quem conhece bem as alegrias e desafios do setor cultural. Assim são os programas de tutoria dos Laboratórios de Criação da Escola Porto Iracema das Artes, iniciativa voltada para profissionais das artes visuais, cinema, dança, música e teatro que completou, no ano passado, uma década de atuação no Ceará.

Anualmente, os trabalhos desenvolvidos pelos artistas são apresentados na MOPI – Mostra de Artes da Escola Porto Iracema. Neste ano, a edição ocorre durante todo o mês de março e tem como foco os resultados da pesquisa dos 32 projetos aprovados em agosto de 2023. Ao todo, até o próximo dia 28, serão 36 apresentações nas cinco linguagens artísticas contempladas pelos laboratórios. 

Segundo a coordenadora dos Laboratórios de Criação, Cláudia Pires, um dos grandes diferenciais do programa é a possibilidade de ter a orientação de artistas renomados. Alguns são indicados pela própria escola, mas, geralmente, os tutores são escolhidos pelos próprios alunos. 

Entre os artistas que já foram tutores estão as artistas visuais Castiel Vitorino Brasileiro e Rosana Paulino; os cineastas Armando Praça e Karim Aïnouz; as coreógrafas Andréa Bardawil e Micheline Torres; os atores Gyl Giffony e Divina Valéria; e os cantores e compositores Russo Passapusso e Tulipa Ruiz.

“Quando eles se inscrevem, já trazem a ideia de quem seria um bom nome para acompanhar esse trajeto e qualificar o projeto. A nossa ideia é sempre acolher esse desejo do artista, porque ele conhece mais profundamente seu próprio projeto”, destaca. “Pode ser de qualquer lugar do Brasil, inclusive do Ceará. E cada vez mais, os alunos têm indicado tutores cearenses”, celebra.

Durante o processo, caso sejam de outra cidade ou estado, a Porto Iracema garante duas vindas presenciais para que tutores e alunos possam ensaiar e conviver de maneira mais próxima. “Mas no virtual, as trocas são constantes. Geralmente, são encontros semanais, mas isso costuma ficar a cargo de alunos e tutores, porque o tempo de cada projeto é muito particular”, explica.

Cláudia destaca que o formato tem funcionado bem, inclusive, por uma característica dos artistas cearenses: o interesse na troca. “A gente sempre teve essa disposição ao diálogo com outros contextos de criação. Ao longo do tempo, isso vem se afirmando como algo da nossa dinâmica de criação, uma singularidade cearense”, pontua. “E estar próximo de outros contextos só enriquece e alarga o repertório artístico-cultural dos nossos artistas”.

Para além do fortalecimento simbólico, os Laboratórios também têm impacto prático. Isso porque, apesar de o programa ter um tempo de duração, as conexões perduram, o que tem gerado colaborações e oportunidades – inclusive de empregabilidade.

“Esse diálogo acaba tendo um potencial de conexão e articulação, à medida em que os artistas podem ter contato com outros artistas já estabelecidos em outros contextos, além de programadores e curadores de eventos. Então, abre essa possibilidade de a nossa cena extrapolar o contexto cearense e se fazer presente em outras cenas”, conclui Cláudia Pires.

Oportunidade para experimentar o novo

Foi preciso tempo para que a Procurando Kalu engatasse um projeto nos Laboratórios de Criação. O grupo sobralense já havia tentado três vezes quando foi selecionado, no ano passado, para a 11ª turma do programa.

Formada em 2013 por então estudantes de Música da UFC, a banda teve a aprovação em um momento de maturidade artística, mas também de reinvenção. Depois de anos focados em “música de festa”, os integrantes começaram a perceber que queriam traçar um caminho mais experimental pouco antes da pandemia. 

Em 2022, lançaram um EP para estrear a nova fase  – “Kalu parado frente ao corpo", disponível nas plataformas digitais – e circularam por alguns festivais no Nordeste, mas entenderam que era preciso aprofundar a pesquisa e profissionalizar aquele trabalho.

“Entrar [no Laboratório] era um desejo muito forte, porque é um espaço muito potente para criação, e ainda dá a oportunidade de você encontrar com um artista que você admira, que é referência para o seu trabalho”, comenta o vocalista, compositor e percussionista Zeca Kalu.

A seleção para os Laboratórios de Criação inclui a escrita e apresentação de um projeto artístico, a elaboração de uma carta de intenções, entrevista e audição. O tutor é escolhido e aprovado durante o processo.

O objetivo inicial não era, de cara, gravar um novo disco, mas realizar uma pesquisa que misturasse música e artes cênicas e ajudasse a elaborar um novo repertório para shows. Com um olhar voltado para a música psicodélica nordestina dos anos 70 e para o Sertão, Zeca e os músicos Rodrigo Brasil, Izma Xavier e Gegê Teófilo elaboraram o projeto “Dançaremos furta-cor com outros mundos”, sugerindo como tutora a multiartista Karina Buhr.

“A gente queria que a tutora fosse uma mulher nordestina, então, quando estávamos pensando, o Rodrigo sugeriu a Karina, porque todo mundo é fã dela e ela é uma pessoa importante dentro da música brasileira underground e da música brasileira no geral”, detalha. A sugestão foi feita ainda nas primeiras tentativas e seguiu no projeto até a aprovação. 

A aproximação da cantora com outras linguagens, como cinema e teatro foram definitivas na hora da escolha. “Além disso, a Karina escreve de uma forma que nos interessa. As palavras são meio surreais, ela inventa coisas, ela inventa jogos com as palavras, é tudo meio percussivo. Pensamos na Karina em sua totalidade”, completa o músico.

Partilha e identificação

Os primeiros encontros ocorreram online, com os artistas ainda tímidos diante de Karina, mesmo que por uma tela. Tutora e alunos trocaram textos, músicas e outras referências, partindo do que a banda já havia criado e para onde queria ir.

Mas foi no início de novembro do ano passado, quando Karina veio ao Ceará para o primeiro momento presencial, que a conexão realmente se estabeleceu. “A fisicalidade resolve muita coisa. Enquanto o virtual tornava a coisa fria, na fisicalidade a gente joga todas as as referências ao mesmo tempo e deixa elas acontecerem”, pontua Zeca Kalu.

A conexão com a tutora, ressalta o artista, foi muito além do processo criativo. “Ela tem mais de 30 anos de carreira no mundo artístico e compartilhou muitas experiências com a gente. Então, a experiência foi muito além de uma criação artística. Foi para um lugar que a gente não imaginava, inclusive, um lugar de identificação com a Karina. Esse processo de partilha foi o maior saldo”, comenta.

Além das trocas, a banda ainda experimentou como funcionava a pesquisa “em trânsito”. Nos últimos meses, algumas das cinco novas músicas do grupo foram performadas em shows no interior do Ceará, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nesta sexta-feira (15), o público da Capital poderá conferir o novo show, que mixa canções antigas e novas – uma delas, inclusive, um feat. com Karina Buhr, a música “Coração de Amante”.

Agora, a Procurando Kalu promete focar na circulação do repertório atualizado pelo País e prosseguir com a pesquisa musical para lançar um novo álbum, que deve sair até o fim do ano e também contará com outras conexões feitas durante o Laboratório de Música, como a cantora Mona Gadelha, que coordena o programa formativo na área.

“Queremos encontrar uma leveza dentro do trabalho, circular com ele, lançar coisas, conhecer outras pessoas, e também tornar nosso trabalho cada vez mais coerente com o que a gente pensa”, afirma Zeca.

Para ele, o principal ensinamento que fica dos últimos meses é seguir com essa verdade e se arriscar. “A arte é feita para o outro, mas ela precisa servir para você. Ela precisa te fazer bem para fazer bem para o outro, precisa nos contemplar para contemplar outras pessoas. E acho que a gente está finalizando esse processo bem contemplado”.

Foco na horizontalidade e na convivência

Cantora, atriz, escritora e percussionista, Karina Buhr se viu diante de um desafio ao ser convidada para atuar como professora. A artista comenta que “foi se descobrindo tutora enquanto fazia, porque há muitas maneiras de fazer”. Para ela, cada processo de tutoria é único; não há fórmula.

Com a Procurando Kalu, partiu das coincidências. Para elaborar um cronograma, alinhou as semelhanças que tinha com a banda, como o interesse pela música popular e pelas artes cênicas. Analisou o que o grupo já tinha produzido, trocou leituras com os integrantes, além de filmes e outras músicas.

“Fomos conversando sobre o que as Kalus já tinham e para onde iam, porque não tinha um projeto fechado, um álbum, um show, uma peça – era uma coisa de descoberta. Isso é uma coisa muito interessante sobre esse projeto, né? Não é entregar um produto final, o interesse é exatamente por esse tempo juntos”, destaca.

Aos poucos, naturalmente, tutora e alunos foram criando letras e arranjos junto, ajustando arestas, tirando e colocando instrumentos, recortando palavras. “Ao mesmo tempo que a gente tem um trabalho totalmente diferente, temos ligações muito fortes. A partir disso, a gente foi criando outras coisas”, completa.

Karina comenta que, para ela, a prioridade era criar um processo criativo horizontal, que não fosse “de cima para baixo”. Não se trata apenas de dissecar e criticar a música proposta pelos artistas, mas de criar “novas possibilidades, novos caminhos” juntos.

“Eles tocam juntos há muito tempo, convivem há muito tempo, então a banda já tinha uma cara, uma personalidade muito forte. Isso não está sendo criado agora, está sendo potencializado, e outras formas de expressão estão se juntando”, comenta. 

Acho tudo muito legal e muito importante, porque esse processo reverbera em todo mundo. Reverbera em mim também – eu não tô ali só dando uma coisa para eles, né? Eu também tô recebendo. 
Karina Buhr
cantora, compositora, instrumentista e tutora do Laboratório de Música

Durante toda esta semana, Karina está em Fortaleza para ensaiar e se apresentar com os tutorados na 11ª MOPI, finalizando o programa formativo de sete meses. Além da relação alunos-professora, ela conta que o projeto permitiu que ela conhecesse novos artistas e, de certa forma, se reinventasse também. “Conhecer cada um deles e o que eles fazem como banda tem sido muito especial. Virei fã, acho muito incrível o trabalho”, conta, orgulhosa.

“Para mim isso já é precioso: poder conviver. Porque, às vezes, você fica ali fazendo o seu e não para para conhecer o que está sendo feito de novo, o que veio depois de você”.

Buhr conclui que a convivência é o que fica, tanto para artistas no início da carreira, quanto para bandas com mais experiência e para os tutores, artistas já renomados no que fazem. 

“A gente fica muito só quando tá começando a fazer música, e não só quando tá começando, se você não está dentro de uma estrutura de selo, de gravadora. Ter esse apoio dá uma certa tranquilidade. Não é uma tranquilidade total ainda, mas você vê que tem outras pessoas percebendo seu trabalho também como uma continuidade, o que é bem importante”.

Serviço

Show “Dançaremos furta-cor com outros mundos”, com Procurando Kalu e participações de Karina Buhr, Briar e Kieza Fran

Quando: Sexta-feira, 15 de março, às 21h

Onde: Teatro Dragão do Mar (R. Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)

Mais informações: @portoiracemadasartes e @procurandokalu

Gratuito | Acessibilidade em Libras