Não foram apenas 3, 7 ou 10 as músicas inéditas que o cearense Belchior deixou por aqui antes de partir naquele fatídico 30 de abril de 2017. Tampouco estes tesouros ainda não lançados em disco, que somados dão mais de trinta, estão perdidos. Eles se encontram há décadas sob os cuidados de um guardião até certo ponto silencioso, mas que não hesita quando o propósito é deixar registrado o que de fato aconteceu.
Aos 73 anos, Jorge Mello é a voz da história, e partilha conosco aquilo que talvez nem o dono do “canto torto” lembraria se ainda estivesse aqui. É que o músico piauiense de Piripiri sempre foi a memória, não só de Belchior, como de outros parceiros cearenses, a exemplo de Fagner, Ednardo e Fausto Nilo.
Basta imaginar que em seu acervo existem fitas com mais de 200 horas de gravação de um passado longínquo dessa turma, cinco décadas atrás. Algumas das preciosidades lhe foram doadas pelas famílias dos empresários Reynaldo Zangrand e Simon Bal, logo que os dois, primeiros a gravarem esses músicos, vieram a falecer. Os registros seguem cada dia mais vivos, especialmente quando vem a público alguma descoberta.
A mais recente delas foi o achado do pesquisador Renato Vieira nos arquivos da Ditadura Militar. Ele localizou sete letras, canções que não chegaram a ser gravadas por Belchior e parceiros, mas submetidas e aprovadas pela censura entre 1971 e 1979.
O primeiro comentário de Jorge no dia seguinte à publicação desse material foi: “tenho todas, mas sem o carimbo!”. E olhe que de uma das canções, “Adivinha”, ele diz guardar até o manuscrito original.
O passado é uma roupa que ainda pode servir
Há quatro anos, em maio de 2017, Jorge já havia mostrado a “ponta do iceberg” a esta mesma repórter que aqui escreve. Tinham passado poucos dias da morte do cearense, quando o amigo, ao lado da esposa Teca Melo, abriu o portão branco da Rua Tabaré, na região de Santo Amaro, em São Paulo, para revelar alguns segredos “de primeira grandeza”.
Em dois dias, fui apresentada a uma série de agendas, fotos, livros, manuscritos, discos e contratos exclusivos do sobralense. Mas das inéditas que guardava do parceiro, o piauiense me revelou na ocasião apenas três, compostas em 1968: “Cateretê”, de 16 de junho; “O bailinho da ironia”, de 20 de agosto; e “Pobre rima, pobrezinha”, assinada um pouco antes, em 19 de março por um “Bel Chior” de 21 anos e numerada como a letra número 28 de sua autoria.
Estas canções remetem ao período universitário, quando o compositor era estudante de Medicina. Elas foram entregues a Jorge pelo irmão Emanuel Carvalho, que era colega de curso do cearense e intermediou o primeiro contato de uma parceria duradoura, de pelo menos 25 anos de contato diário entre os dois músicos.
Com Jorge, Belchior morou por alguns meses num apartamento no Rio de Janeiro, no começo dos anos 1970, compôs 25 canções, e fez ainda sociedade na gravadora Paraíso Discos (1980-1995). Por meio dela, os dois lançaram mais de 300 trabalhos de artistas de todo o País, incluindo um “Pessoal do Ceará” (1986), sem Ednardo.
É desse período que o piauiense guarda letras e manuscritos - hoje copiados e autenticados, pois entregou os originais aos filhos do sobralense - e horas e horas de gravações.
“Usava aquele rolo caseiro do gravador Akai 4000 DS nos encontros com os amigos. Objetivo? Levar as músicas para gravadoras e tentar conquistar contratos. Eu dava a cópia em cassete para eles e guardava comigo a matriz. E até hoje, quando quero ouvir, ouço no mesmo gravador de 1972”, detalha.
Se calou sobre a lista completa de inéditas em 2017 foi porque, no auge das manifestações pela morte do cearense, Jorge preferiu ser cauteloso. Advogado com décadas de atuação na área de direitos autorais, decidiu fazer isso apenas agora, com autorização do herdeiro mais velho, Mikael, e ainda com algumas restrições.
“Não posso ferir a vida do criador por vaidade minha ou interesse que outros se tornem bem-sucedidos com aquilo”, destaca.
Títulos liberados
Nas mais de trinta canções guardadas por Jorge, vale ressaltar, já figuravam os sete achados de Renato Vieira - “Adivinha”, “Alazão”, “Baião de Dois Vinte e Dois”, “Bip Bip”, “Fim do Mundo”, “Outras constelações”, “Posto em Sossego”; e as cinco divulgadas por Lucinha Menezes ao Jornal O Globo em junho de 2017 - “Caravelle”, “Pindorama”, “Rosa dos ventos”, uma “sem título” e “Cateretê”, esta citada ao lado de “Bailinho da ironia” e “Pobre rima, pobrezinha”, pelo Diário do Nordeste, em maio do mesmo ano.
Mais duas do acervo do piauiense - “Hino da Faculdade de Medicina” e “Bolero em Português” - também foram localizadas em redes sociais com gravações caseiras, mas nenhuma na voz de Belchior.
Há ainda sete composições de Jorge com o sobralense já mostradas ao público, mas que nunca foram lançadas em disco. Logo, tal como as 16 acima citadas, também podem ser pensadas como inéditas “Tchans de Cowboy” (apresentada por Jorge no programa de Inezita Barroso, na TV Cultura), e seis canções da trilha do espetáculo “O Morro do Ouro” (1971): “Cobalto”, “É Vitamina”, “Garotas da Aldeota”, “O Colorido Da Pobreza”, “Pílula” e “Porque Choras, Madalena?”. As letras destas últimas estão disponíveis no livro “Cancioneiro Belchior” (2019), de José Gomes Neto.
Outras dez, porém, terão os títulos, e algumas também os trechos, apresentados agora com exclusividade.
São elas: “Tigre da Esso/O Brasil é de quem U.S.A” (Belchior), “Quem espera, sempre cansa” (Belchior), “Vapor” (Belchior), e as parcerias do sobralense com Jorge: “Nessa Onda A Balançar”, “No meio dos coqueirais”, “Outros caminhos”, “Pelas lentes do pranto”, “Um Cha Cha Cha chamado Xaxado”, “Canoeiro de muita paz”, além de uma última ainda “sem título".
“Belchior era sambista”
Feitas entre 1968 e 1988, em Fortaleza, Rio e São Paulo, boa parte dessas músicas, especialmente as do começo da carreira, revelam uma faceta até então pouco conhecida do rapaz latino americano: a de sambista. A fim de não infringir os direitos autorais, Jorge cantou ao telefone apenas os trechos de algumas melodias, e é perceptível o flerte com o samba e até mesmo com o frevo nessas canções.
“O Belchior tinha uma visão muito rudimentar do instrumento. Quando você tem dificuldade, corre atrás das coisas mais óbvias para justificar suas palavras. Ele era um poeta genial que tocava com três acordezinhos. Quase todas elas têm ligação com samba, a ponto de eu te dizer que Belchior era sambista”, dispara Jorge.
“Dentro desse samba, estão todas elas articuladas. Depois, ele foi amadurecendo ao lado do Cirino e morando comigo. Ele fazia letras maravilhosas para músicas muito rudimentares. Isso classificava aquele momento dele: muito simples, música que se faz com caixa de fósforo”, analisa o piauiense.
Pós 1974, Jorge acredita que o cearense já tinha outro tipo de toque. As letras deixaram de ser 2 por 4 e passaram a ser 4 por 4 e até 6 por 8, o que o compositor classifica como formas de trabalhar palavras sobre melodias.
“Acabou buscando um caminho novo. Quando a gente se encontrava, ele falava muito: ‘Jorjão, lembra aquela música?’. E eu dizia: ‘Não só lembro, como tenho todas!’. Aí eu cantarolava e ele olhava quase chorando”, recorda saudoso o amigo.
O que vem após os achados
Como admirador e guardião da obra de Belchior por tanto tempo, Jorge quer que todas essas canções sejam um dia aproveitadas, gravadas e ouvidas pelo público. Mas também espera que se faça isso em conformidade com as normas. Ou seja, que sejam gravadas depois de ter as autorizações dos herdeiros ou de uma Editora Musical com poderes para autorizar a utilização. Não fazendo assim, é pirataria e fere o direito autoral, conforme ressalta o advogado.
“Meu desejo é que os sonhos de todos sejam realizados. Que os intérpretes tenham acesso a essas obras inéditas do parceiro Belchior e que os herdeiros sejam beneficiados com o sucesso dessas obras. Então, oriento e torço para que tudo seja feito como deve ser, dentro das normas legais. Assim todos ganham, inclusive o consumidor e o fã, e todos aqueles que amam e adoram as obras de seu ídolo”, reafirma.
Atualmente, o acervo do piauiense se encontra em um sítio, em Embu-Guaçu (SP), para onde se mudou com a esposa, e conta com mais de 80 mil documentos, que são disponibilizados para pesquisadores, jornalistas, escritores e estudantes na busca de suas monografias, mestrados e doutorados sobre a música brasileira.
“Eu disponibilizo a todos gratuitamente, porque entendo que esse material pertence à Cultura Brasileira, e que eu sou apenas o guardião. Sendo assim, para preservar o inédito das obras dos que faleceram, eu as separei e as coloquei no segundo andar do prédio que construí no meu sítio. Lugar onde não permito visitantes. Assim, esse material, tendo como origem meu acervo, só pode ser publicado em pequenos trechos”, ele se precavê.
“Sei que assim estou sendo ético e cumprindo a Lei. Quando os herdeiros ou uma Editora Musical me autorizarem, eu os disponibilizarei por inteiro. Porque são obras lindas...!”, promete Jorge, que pretende viver até os 108 anos.
“Meu sucesso é saber disso/ E dizer isso pra vocês”, finaliza o compositor, parafraseando a “Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico”, dele e de Belchior, com a qual o sobralense abriu e fechou inúmeros shows.