Produção original da "Tundum" alemã, “Paradise” é um filme que parece ter sido feito sob medida para os fãs do estilo "Black Mirror" (raiz), onde vidas são radicalmente transformadas pelo uso de novas tecnologias. No cinema e na telinha, já vimos todos os tipos de distopia. As propostas são as mais variadas: apocalipse nuclear, ataques zumbis, invasões extraterrestres, revolta das máquinas ou megacataclismas.
Ninguém sabe qual o futuro do mundo, mas o certo é que a realidade já nos assusta mais do que muitos filmes clássicos do gênero. Movido por ganância ou poder, o homem vem gerando horror o suficiente para materializar dezenas de histórias que antes só existiam na imaginação.
Exagero? Não se lembrarmos do vírus que parou o planeta entre 2019 e 2021. A pandemia de Covid-19 matou mais de 14 milhões de pessoas. Em meio ao luto mundial, houve quem apostasse em uma era de redenção. Ao contrário disso, vimos eclodir uma guerra envolvendo um país que tem arsenal nuclear. Antes disso, já havíamos lamentado as mortes causadas por tsunamis, incêndios e nevascas. Ainda assim, os roteiristas fazem o que podem para ser originais.
O roteirista alemão Peter Kocyla acaba de dar sua contribuição para os títulos distópicos com “Paradise”, embora o filme lembre muito “O Preço do Amanhã”, estrelado por Justin Timberlake e Amanda Seyfried, em 2011. Também é um Dèjávu de “Repo Men” (2010) e flerta com a mesma rebeldia de “V, de vingança” (2006).
Enfim, inédita ou não, a ideia agradou o público já que o filme é um dos mais vistos na Netflix, nas duas últimas semanas.
Anunciada como ficção científica, “Paradise” é dirigido por Boris Kunz, nome um tanto desconhecido dos brasileiros, mas que conseguiu entregar uma obra bem resolvida.
Moeda mais valiosa
Na trama, o tempo é a moeda mais valiosa que existe, graças à empresa AEON. A gigante de tecnologia descobriu, entre outras novidades engendradas com Inteligência Artificial, uma maneira de reverter parte do processo de envelhecimento. Mas, para que alguém possa viver 100 ou até 150 anos e ainda parecer jovem, uma outra pessoa - com genes compatíveis - precisa concordar em perder anos, décadas até, de sua própria vida.
Dessa forma, tempo pode ser vendido ou até usado como garantia, junto aos bancos, para aquisição de bens. Tudo dentro da legalidade.
A história se passa em um futuro não muito distante, onde a tecnologia avançou, mas a humanidade parece estagnada. O mundo continua igualzinho em termos de conflitos sociais. Há áreas muito ricas e outras miseráveis.
É o que podemos ver retratado nos imensos campos de refugiados, onde imigrantes - vindos de países falidos - sonham com uma chance de fugir da pobreza enquanto são assediados para vender a única coisa que têm a oferecer aos bem nascidos: seus anos de vida. Os excluídos viraram uma fonte da juventude.
Partindo dessa premissa, conhecemos Max Toma (Kostja Ullmann), um recrutador (espécie de corretor de vendas) que começa seu dia convencendo um jovem imigrante de 18 anos a aceitar € 700.000 em troca de uma “doação” de 15 anos. “Imagine, você poderá conseguir vistos para toda a sua família”, diz Max, para convencê-lo.
Para os que podem pagar, a troca é justa. Os desfavorecidos recebem dinheiro. O planeta também ganha já que, diante de uma perspectiva real de longevidade, os bilionários começam a investir em programas de energia limpa e recuperação dos recursos naturais.
Pirâmide social
Mas, o revolucionário sistema que beneficia a quem pode bancá-lo nem sempre segue suas próprias regras. Quando não há oferta compatível, os esquemas criminosos garantem um atalho para compradores corruptos encontrarem seu DNA ideal.
Se alguém importante precisa, deseperadamente, superar o etarismo e provar para os jovens que ainda têm “muito a contribuir”, os “doadores” cadastrados podem se deparar com acidentes nada naturais.
É esse o caso de uma das acionistas e fundadoras da AEON. Linda, inteligente e do alto de seus 60 e tantos anos, Sophie Theissen (Iris Berben) aguarda sua vez de receber uma “doação”, enquanto escuta indiretas preconceituosas sobre sua idade. Não importa a sua genialidade ou que ela seja a mentora do projeto que mudou o mundo. Seus cabelos brancos e as rugas não são bem vistos para quem vende juventude. Ela precisa de um "doador".
Sem perder a pose e para exalar poder, Theissen faz questão de, todo ano, premiar seus funcionários mais produtivos. Max está entre os promovidos. Aliás, o reconhecimento da chefa vem em boa hora. Ele e sua esposa, Elena (Marlene Tanczik / Corinna Kirchhoff), planejam ter um bebê em breve.
Os planos mudam, quando o apartamento do casal pega fogo e os dois descobrem que não têm outra saída a não ser pagar pela destruição. Ironicamente, o fogo teria sido causado pela vela que Elena usou durante a comemoração pela promoção do marido.
Sem o dinheiro do seguro e com as contas batendo à porta, Elena é forçada a honrar o acordo feito com o banco. Aos 25, ela e terá que entregar 38 anos de vida. Está no contrato e não há negociação. A entrega é compulsória, para desespero do casal.
Ação vertiginosa
Daí em diante, o que vemos são cenas de ação vertiginosa. Revoltado com a empresa que antes ajudava a crescer, Max fará de tudo para tomar de volta os anos arrancados da esposa, nem que para isso tenha que se transformar em um rebelde fora-da-lei.
O primeiro passo é descobrir quem é a receptora de Elena. Depois, executar um plano de sequestro e sair do País rumo a um laboratório que funciona clandestinamente na Europa Oriental. Não bastassem os riscos de ser preso ou morto, Max também precisa convencer a esposa a aceitar a reversão temporal.
O problema é que, se o processo de transferência de genes carece de amparo moral e ético, na clandestinidade o que Max descobre é puro horror para quem cultiva empatia.
Algumas cenas de crueldade são difíceis de assistir. A principal se passa na Lituânia e nos mostra que mesmo com todo o avanço da ciência, ainda estamos longe de evoluir como espécie.
Para quem gosta de reviravoltas, o filme ainda garante uma boa dose de “plot twists”. Também há tiros, porrada e bombas. Mas em um limite que não compromete a narrativa principal.
Além da mensagem direta sobre a desigualdade, o filme levanta questões pertinentes em relação ao amor, à finitude, ao etarismo e às máscaras sociais.
Mesmo que a obra não seja inovadora, sua trama principal é sólida. Já os arcos secundários, deixam muito a desejar. Um deles mostra a luta armada de um grupo radical que denuncia e ataca os mentores da tecnologia. Isso ajuda a dar uma sacudida na ação, mas não tem a profundidade que merecia. Outra sub-trama mal aproveitada é a de Marie Theissen (Lisa-Marie Koroll), filha da dona da AEON.
No meio desses desvios do roteiro, é Max quem nos empresta o olhar crítico para entender a distopia em essência. De “engrenagem” na máquina, ele se transforma em ameaça ambulante. Para isso, teve que experimentar o “produto” que antes vendia. Sentiu na pele como é ficar do lado de lá da fronteira entre os que mandam e os que só podem obedecer.
Por fim, o que fica na mente é uma enorme interrogação: Por quanto estou vendendo (ou já vendi) a minha juventude?