“O fim vem se aproximando de Nóis há muito tempo, na verdade, ele sempre está nos rodeando”. O trecho do comunicado divulgado pelo grupo Nóis de Teatro nas redes sociais na última segunda-feira (20) é um resumo da luta que o coletivo vem protagonizando desde o início das atividades, em 2002, quando começaram a ensaiar peças de teatro na sala de uma igreja no Grande Bom Jardim.
Agora, 22 anos depois, os oito integrantes do grupo lançam a campanha de financiamento coletivo “Para adiar o fim do Nóis de Teatro”, que visa arrecadar R$ 18 mil para manter o funcionamento da sede do coletivo, na Granja Portugal, por pelo menos mais um ano. Quem quiser contribuir com o grupo de teatro pode doar qualquer valor neste link ou pelo Pix (chave: 4813903@vakinha.com.br).
O valor arrecadado será usado para pagar dívidas e a manutenção da sede do coletivo – que será transferida para outro imóvel, também no Grande Bom Jardim, devido a problemas estruturais na casa atual. Segundo a coordenadora pedagógica do Nóis de Teatro, Kelly Enne Saldanha, o montante também será usado para manter as atividades essenciais do grupo, “dando fôlego para investir nas promessas que vêm por aí: a Lei Paulo Gustavo e a Aldir Blanc, que deviam ter saído no ano passado”.
“Se a gente conseguir segurar as pontas por mais um ano, a gente consegue se dedicar nesses próximos editais e, quem sabe, se manter”, destaca Kelly Enne. Atualmente, além de peças teatrais, o grupo também desenvolve a Escola de Teatros Periféricos, projeto de formação de jovens e adultos realizado através do edital Escolas Livres de Cultura (Secult-CE).
No momento, a escola tenta, em meio a desafios, concluir a formação da segunda turma do programa. Entre fevereiro e abril, as atividades foram pausadas por atraso no repasse do recurso, o que inviabilizou, além do pagamento de professores e das contas fixas da sede do espaço, a viabilização das bolsas de estudo que permitem que os 15 alunos tenham condições de chegar à escola, se alimentar e outros gastos básicos.
Além da vaquinha, quem quiser ajudar também pode adquirir produtos da loja do grupo, como camisas e livros. “Também acho que é importantíssimo que o grande público cobre junto com a gente, com outros artistas, as secretarias de cultura do Estado, do Município e até a Funarte, os órgãos de âmbito federal, para agilizarem a Lei Paulo Gustavo e a Aldir Blanc”, pontua Kelly Enne. “Não apenas pelo Nóis, mas para todos os artistas da Cidade”.
Financiamento é problema antigo e afeta todas as áreas
Os sucessivos atrasos no cronograma de pagamento da Lei Paulo Gustavo no Ceará, segundo o grupo, foi fator determinante para que o Nóis de Teatro precisasse recorrer a uma vaquinha – algo que o coletivo pensava em fazer para circular com peças de teatro e criar novos projetos, não para manter as contas básicas. Mas, segundo a coordenação do Nóis, a falta de recursos financeiros para a cena teatral cearense é um problema antigo.
“É uma questão muito mais ampla e que não necessariamente é do Governo do Estado ou da Prefeitura. É algo de uma política cultural do País. É muito difícil você ver um grupo de teatro da cidade que esteja em uma situação financeira boa, sabe?”, destaca Kelly Enne Saldanha, que afirma que a situação piorou nos últimos cinco anos.
“Muitos grupos deixaram de existir, muitas sedes foram fechadas. E a gente ainda se mantém resistente, mas agora a gente está sem perspectiva”, completa.
A situação complica porque, atualmente, todos os projetos do coletivo são abertos ao público – ou seja, não há lucro – e a única política cultural de captação de recursos é a de editais, que costuma ser burocrática e prever extensão de prazos de pagamentos.
“A gente entende que, fazendo o papel do Estado, o estado deve nos financiar, através dos editais públicos. Com eles, a gente conseguiu manter nossas atividades, mas hoje em dia a gente não tem mais nenhuma perspectiva, principalmente porque a gente, inclusive, está desacreditado”, lamenta Kelly.
O problema do diálogo com as secretarias de Cultura do Município e do Estado, segundo a gestora, transcende gestões e bandeiras partidárias. “O diálogo já começa muito difícil com a Secretaria de Cultura do Município (Secultfor). Sempre foi, independente do governo que esteja, do partido que esteja assumindo", explica.
Com os impasses com o poder público, o grupo vê apoio maior em quem também faz parte, de certa forma, do coletivo: o público. Recentemente, junto a outros coletivos artísticos do Estado, o Nóis de Teatro participou da campanha digital “Paga Secult-CE”, que denunciava o impacto dos atrasos do pagamento da Lei Paulo Gustavo na cena cultural.
“Cansa muito todo esse processo. O que nos fortaleceu é que a gente teve muito apoio popular, ainda bem. Muita gente, muitos artistas, muitas pessoas que não são artistas, mas que acompanham o nosso trabalho, fortaleceram a gente nesse corre, por isso a gente não desistiu”, declara Kelly.
Teatro de rua como ferramenta de representatividade
Quem ouve que o Nóis de Teatro é formado por oito pessoas talvez não consiga dimensionar o impacto de um grupo de teatro de rua que atua onde o poder público, muitas vezes, não consegue chegar. Nas mais de duas décadas em atividade, foram muitas as pessoas que passaram pelo coletivo, participaram de ações formativas e – tão importante quanto – se tornaram público fiel dos espetáculos.
“Sabendo da deficiência de espaços culturais que as periferias têm, o nosso espaço também sempre foi um espaço onde, além de a gente poder realizar nossos processos de pesquisa, de estudo, de aprofundamento e de formação, a gente poderia, naquele espaço, ser um espaço de fruição, de compartilhamento de conhecimento”, destaca Kelly Enne Saldanha.
Um dos espetáculos mais conhecidos do grupo, “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, completa dez anos em 2024 – e, apesar de não conseguir circular na sonhada turnê comemorativa, segue sendo um dos grandes motivos de orgulho e emoção do grupo.
Isso porque, após as apresentações da peça, Kelly e a equipe ouviram, várias vezes, falas emocionadas de pessoas que viam um espetáculo pela primeira vez e que, a partir dali, se tornaram fãs, público recorrente. “Era engraçado: quando a gente mudava, eles percebiam; quando a gente errava, eles interferiam. Sempre foi uma relação muito massa, em todas as periferias que a gente vai”, destaca.
Para Kelly, aí reside a relevância do grupo: chegar onde o poder público não vai, mesmo nas comunidades que são mais difíceis de acessar. "E é claro que a gente não chega de qualquer jeito. A gente chega realizando parcerias com associações, instituições que estão dentro das localidades, das comunidades, dos territórios. Mas a gente vai, a gente chega, e estabelece essa parceria”.
Kelly comenta que, além do “chegar”, o grupo busca levar, por meio da arte, as pautas que interessam ao público. “Por exemplo, quem vai se identificar com Hamlet? Que pessoas do território da periferia se identificam com esse tipo de espetáculo?”, brinca. “Quando a gente faz um espetáculo no Nóis, a gente quer que os nossos vizinhos daqui do território olhem para aquele espetáculo e se enxerguem”.
A coordenadora também explica que o escopo do trabalho do grupo, ampliado pela Escola de Teatros Periféricos, faz com que a ideia de um teatro elitizado, para um público único, seja posta de lado.
“Para fazer arte, você precisa ter um recurso financeiro,e a grande maioria não tem”, pontua. “Grande parte da luta e problemática de a gente ter direito a fazer teatro tem a ver com esse recurso financeiro. Por isso que, quando a gente mantém a escola, a gente garante que tenha bolsa, justamente para pagar o transporte, alimentação, para pagar algum gasto que sempre vai ter”.
Para apoiar o Nóis de Teatro
Link da vaquinha virtual
Pix para doações: 4813903@vakinha.com.br
Mais informações: @noisdeteatro