O interesse pela intimidade das estrelas não é exclusividade dos tempos atuais. Na metade dos anos 1990, um episódio abalou as estruturas do entretenimento. Naquela ocasião, uma filmagem caseira atingiu em cheio a vida destas duas estrelas. Ela, um “símbolo sexual” querendo se firmar como atriz. Ele, um reconhecido e popular astro do rock.
Pamela Anderson e Tommy Lee eram o casal em evidência. Quatro dias depois de se conhecerem, o baterista do Mötley Crüe e a musa da série “S.O.S. Malibu” decidiram unir as alianças. Meses após o feliz casório, uma fita com a lua de mel do casal veio a público. Conhece o termo “caiu na rede”? Sim, nascia com essa presepada.
O escândalo antecipava uma tecnologia até então desconhecida, uma tal internet. A “sex tape” roubada marcou história como o primeiro vídeo íntimo a circular online. Durante anos, pairou a desconfiança de que o vazamento fosse algo planejado por Pamela e Lee. Contudo, em 2014, reportagem publicada pela Rolling Stone desvendou o mistério.
O artigo escrito por Amanda Chicago Lewis foi adaptado para minissérie disponível nos serviços Hulu/Star+. “Pam & Tommy” estreia no atual contexto de nudes, virais e dispositivos móveis. A infame fita do passado aquece temas relevantes ao presente. Fala, entre outras discussões, de consentimento, objetificação, privacidade e ascensão da pornografia via internet. Tudo começa quando um eletricista sedento de vingança cruzou o caminho dos apaixonados.
Uma noite de crime
Seu nome é Rand Gauthier. Um completo desconhecido que não imaginaria a repercussão do seu ato. Sem entregar muito do ocorrido, a desavença aconteceu em 1995. Após trabalhar em uma reforma da mansão do casal, o profissional alegou não ter sido pago pelo serviço prestado. Para além dos 20 mil dólares de prejuízo, a confusão envolveu até arma apontada na cara.
Após bolar um engenhoso plano, Gauthier levou o cofre da casa com tudo dentro. No conteúdo, relógios, joias e até, o bikini usado por Pamela no casamento. Havia mais. No meio dos pertences estava uma fita Hi8. Nela, 54 minutos da vida conjugal e oito minutos de sexo.
Anos antes da expressão “pornografia de vingança” ser criada, Pamela Anderson e Tommy Lee foram vítimas dela. “Não foi a primeira vez que um vídeo de uma pessoa famosa apareceu na esfera pública, e certamente não seria a última. Mas era um pornô que atraía pessoas que não costumavam assistir pornôs, um mergulho voyeurístico na intimidade inocente entre dois queridinhos dos tabloides”, descreveu Amanda Chicago Lewis.
“Pam & Tommy” é bom?
Amanda conseguiu detalhar os diferentes dramas e fardos que cada personagem carregou. A riqueza e o caráter inusitado do crime renderam nas mãos do produtor Robert Siegel. O fato é que a nostalgia dos anos 1990 segue gerando lucros e Siegel está com moral na área.
É dele as produções “The People v. OJ Simpson” e “The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story”. Crimes que abalaram aquela década. Outra escolha de Siegel figura nos quatro nomes que dirigem os episódios. Craig Gillespie, que trabalhou em “Eu, Tonya” (outro escândalo dos 90, só que na patinação artística) dirige três partes da história.
Repleta de referências daquela era, “Pam & Tommy” ganha força nas atuações de Lily James (“Downton Abbey”) e Sebastian Stan (“Falcão e o Soldado Invernal”). As caracterizações adentram os excessos e o peso de duas figuras públicas no centro de uma exposição nunca antes vista. Conhecido pelos trabalhos ne comédia, Seth Rogen trabalha bem como o perdido Rand Gauthier.
Um dos méritos da minissérie é iluminar a figura mais vulnerável dessa história. A Pamela Anderson personificada por Lily James alerta o quanto uma invasão desta natureza é devastadora. Ao longo da produção somos apresentados à criatura por detrás do ícone sexual. Em verdade, uma pessoa com desejos comuns à maioria dos mortais, como a maternidade, por exemplo.
Uma contradição explode em “Pam & Tommy”. A minissérie foi realizada sem a aprovação da estrela. Ou seja, um doloroso acontecimento do passado voltou à tona com força máxima. Mas, falamos de um universo no qual entretimento e dinheiro se cruzam numa fronteira esfumaçada. Com uma publicação no Instagram, Pamela Anderson anunciou que contará sua versão dos fatos pela Netflix.
“Minha vida. Mil imperfeições, mil interpretações erradas, maldosas, selvagens e perdidas. Nenhuma expectativa a atender, posso apenas te surpreender. Não uma vítima e sim uma sobrevivente e viva para contar minha história real," diz a mensagem.
Tempos de mudança
Não bastasse refletir sobre privacidade e consentimento, “Pam & Tommy” amarra o contexto cultural daquele momento. Vale lembrar, por volta de 1996, as carreiras de Pamela e Lee esbarravam com outra era em movimento.
Com os parceiros de Mötley Crüe, Tommy Lee construiu uma história de peso no rock dos anos 1980. A figura máxima do roqueiro inconsequente, capaz de vender milhões de álbuns, lotar arenas e destruir quartos de hotel em farras homéricas. A banda até ganhou filme disponível na Netflix, intitulado “Dirty”.
Mas, desde que a turma do grunge explodiu no início dos 1990, os holofotes deram uma caída para o pessoal da cena “metal farofa”. Já Pamela pretendia se afastar da imagem plastificada da TV e investir num projeto próprio. Uma adaptação para as telonas de uma personagem dos quadrinhos.
Quis o amargo destino que sua aposta no cinema, o filme “Barb Wire - a Justiceira” fosse eclipsada pela polêmica sex tape. Não só o famoso casal passava por mudanças. A tecnologia avançava em outra direção e o mercado pornográfico sentiria o baque.
O pornô ganha a web
Nos anos 1980, o mercado pornográfico dos EUA fora radicalmente impactado pela popularização dos videocassetes e das filmadoras VHS.
“O equipamento permitia que as pessoas fizessem seus próprios filmes, emergindo daí outro segmento dentro do mundo da pornografia: o vídeo pornográfico amador e também o vídeo gonzo", descreve Rodrigo Gerace no livro “Cinema explícito: representações cinematográficas do sexo” (1995).
Para o sociólogo, a indústria cinematográfica vai remodelar não apenas seu modo de produção, mas também o modo de percepção do sexo. “O culto ao amadorismo e aos vídeos escondidos, de flagrantes, teve início nessa década, mas atingiu seu auge nos anos de 1990 a partir do advento de outra importante tecnologia, a internet".
Com o objetivo de levantar uma grana e se vingar, Rand Gauthier criou um site para vender cópias da filmagem. Com o material circulando é óbvio que outros aproveitadores iriam entrar na jogada. Assim, a filmagem caseira trancada dentro de um cofre viralizou pelo planeta. Um aperitivo do que iria acontecer nas décadas seguintes.