Basta falar o nome para o gosto surgir na boca. Difícil encontrar algum cearense que não tenha experimentado o bulim. Vendida por ambulantes nos sinais e nas ruas – também encontrada em supermercados e mercearias – a iguaria atravessa gerações do nosso paladar. Pouco importa a idade e a condição social: se alguém gritar “olha o bulim”, a oferta é tentadora.
Saímos às ruas de Fortaleza para comprovar a onipresença dessa espécie de biscoito de goma. Muitos consomem bulim já na infância, seja no interior ou na capital. De fácil preparo e com sabor inconfundível, o alimento é o carro-chefe da Sequilhos Paulista, empresa comandada por Edson Lira Aguiar, 64. O empreendedor aprendeu a receita com a mãe e, desde essa época, não parou mais, fomentando um mercado com clientela garantida.
“Vende muito. Aqui na empresa, chegam donos de mercantis, representantes de supermercados e os próprios ambulantes, que compram diretamente, ensacam e revendem”, descreve Edson. Atuando no segmento há 36 anos, ele também comercializa petas, biscoitos amanteigados, suspiros, broas, entre outros quitutes. O bulim, contudo, se sobressai. Para o empresário, isso se deve ao componente natural da iguaria.
“Desde criança eu como bulim – naquele tempo, feito por seu Cabral (falecido) e dona Cleonice, moradores do Pirambu. Foram eles quem começaram a vender aqui em Fortaleza. Todo mundo gosta de bulim porque é feito com goma e coco, sendo totalmente natural. Também tem uma coisa importante: não contém glúten e possui preço acessível”, detalha.
Uma saca de seis quilos, por exemplo, é vendida por Edson no valor de R$50. Na mão dos ambulantes ou em estabelecimentos comerciais, o pacote com dez unidades varia entre R$2 e R$4. O lucro, porém, depende do momento. Edson Lira diz que se o preço da matéria-prima subir semanalmente, como está acontecendo hoje, tudo o mais sofre alterações também.
Considerando a escala industrial – nesse caso, a saca de seis quilos mencionada – a preparação do bulim envolve 25 quilos de goma, 20 quilos de açúcar, 500 de fermento e coco. O mais complicado é acertar o ponto do cozimento. Caso não seja o correto, o biscoito pode sair sem a tradicional consistência. “Aqui na empresa, o funcionário chega às 6h, mexe a massa e põe no fogo a partir das 9h, deixando em média 40 minutos. Com o tempo, automatizei quase tudo. Há máquinas que fazem grande parte do trabalho”, diz Edson.
Liderando uma equipe de 23 pessoas junto à esposa, Eunice de Sousa Aguiar, e festejando a incidência do produto no gosto do cearense, o empresário deve à venda do bulim a construção de um pequeno império. Muitas portas foram abertas para Edson e família por meio do biscoito de goma.
“A gente não enricou, mas formamos nossos cinco filhos e nunca passamos fome. Talvez se dependêssemos do momento atual, com a carestia, fosse mais difícil. Então, agradeço a Deus e à minha mãe, por ter nos criado e nos educado com a venda do bulim”.
De onde vem o bulim
Professora da Escola de Gastronomia Social Iven Dias Branco, Uiara Martins explica que são pouquíssimas as referências sobre a origem do bulim. O conhecimento está sobretudo na memória e em cadernos de receita do que propriamente nos livros. “Nas obras que se referem à história e à cultura da gastronomia cearense, não me recordo de encontrar qualquer citação sobre os primórdios dessa espécie de biscoito”, assegura.
Por outro lado, pessoas do interior e de regiões serranas – principalmente aquelas ligadas a casas de farinha e à produção de mandioca – recordam muito bem questões importantes no preparo da querida iguaria. O bulim acompanha o cearense na estrada em direção a localidades distantes da capital, nos semáforos de Fortaleza, em estádios de futebol, nas tardes de café e a caminho do litoral. Como ele se popularizou, não se sabe.
“Percebemos, porém, que com o encerramento de muitas casas de farinha, o bulim já não é encontrado com o mesmo sabor, textura e volume como há vinte anos atrás – embora continue muito presente, sobretudo nos comércios de beira de estrada”, situa Uiara.
“Assim como a maior parte dos doces brasileiros e nordestinos, acredito que a maior influência seja da cultura portuguesa. Essa estrutura de biscoito, o uso do açúcar, dentre outros fatores, são heranças lusitanas. Contudo, segundo o site Linguajar Cearense, os mais famosos bulins eram feitos pelas Irmãs do Bom Pastor (Casa das Irmãs de Nossa Senhora de Caridade do Bom Pastor, Parque São José, Fortaleza), mas desses eu nunca provei”.
Logo, a professora percebe o bulim como resultado de uma produção familiar, elencando como melhores aqueles mais assados – uma vez que demoram a amolecer. Quanto ao peculiar nome do alimento, Uiara acredita ser mais um subproduto das substituições de receitas de matriz portuguesa, nas quais trocamos a farinha pela fécula ou goma de mandioca. “Na região sudeste, ele é denominado biscoito de goma”.
Preparo do bulim
A receita mais popular do bulim leva clara de ovos, coco fresco, gordura vegetal (também pode ser manteiga), goma (de preferência, mais fresca e granulada) e açúcar. Há outro tipo de receita, que leva bicarbonato de amônia e não usa coco. Para Uiara Martins, os aspectos importantes para o bulim ideal são uma boa goma e um bom coco.
“Mas, atenção: na receita, precisa saber dosar dois ingredientes – o açúcar, pois ele ajuda a dar muito sabor ao biscoito; e as claras. Se a quantidade desta última for pouca, o biscoito vai esfarelar”, recomenda.
“O bulim está na nossa memória, não tem como não recordar. Já comi bulim no estádio, na rua, no Centro – para matar a fome até chegar a hora de almoçar. Lembro-me de um senhor que passava e vendia na porta da minha casa quando eu era criança. Comida afetiva, de casa de vó, de viagens ao interior”.
A estudiosa não crê que o alimento seja mais apreciado por uma classe ou outra. É a ocasião que define quem vai saboreá-lo ou não. “Eu como sempre que faço viagens longas e vamos parando”, exemplifica. “Comida com afeto e memória não se acaba, resiste ao tempo – embora uma coisa eu acho que tenha mudado: já não se fazem bulins como antigamente, sobretudo pela qualidade da goma, que muitas vezes é mais industrializada”.
Legado familiar
Apesar dessa questão, José Otacílio, conhecido como Júnior, aposta no amor em preparar o alimento para fazê-lo cada vez mais presente na realidade do cearense. Ele é sobrinho de Edson Lira Aguiar – logo, herdou do tio e da avó, Raimunda Paixão Aguiar, o gosto por produzir e comercializar bulim.
“Ela já administrava a firma há mais de 40 anos e a empresa se tornou nossa herança. Minha avó é pioneira na fabricação de bulim. Ao longo dos anos, o empreendimento veio passando de geração em geração até chegar em minha mãos”, conta o proprietário da Sequilhos JK, sediada em Fortaleza.
A linha de produção do alimento na fábrica de Júnior, de menor porte, envolve apenas duas pessoas. A iguaria é feita com açúcar, coco, goma e ovo. Passa pela preparação da massa, o molde em uma bandeja e depois a chegada ao forno. A média é de 30 sacas por dia.
“Vivemos desse comércio, ele é nossa principal fonte de renda. Por ser parte da cultura local, todo cearense é ensinado a gostar de bulim. Sem contar o sabor, o gostinho que ele deixa quando derrete na boca. Temos propriedade em dizer que é um produto do nosso cotidiano”.
Desta feita, comercializar um produto tão característico da gastronomia de um lugar representa bem mais do que tocar um empreendimento. O sentimento de Júnior é de valorização e carinho. “Minha vó começou e, de alguma forma, cativou esse sentimento forte nos filhos e netos”.
Ao que Edson Lira Aguiar complementa: “O mais legal e importante da venda do bulim é que não sou apenas eu que vivo desse negócio, mas os ambulantes, as redes de supermercado… É uma cadeia. Por dia, aparecem de 30 a 40 pessoas na minha porta para comprar. Infelizmente, com toda a carestia, não sabemos até quando o negócio se manterá. Mas tem uma filha nossa que já está encaixada nesse mesmo segmento”. O bulim, enfim, não morrerá nunca.