"Reunindo amigos para celebrar a vida!", O Camocim é um dos atrativos da movimentada Rua Padre Mororó, Centro de Fortaleza. Em paralelo ao agito comercial tão característico da região, as residências ainda se sobressaem, formando assim uma vizinhança na qual boa parte das famílias se conhecem.
Esquina com a Rua Liberato Barroso, a edificação guarda aspecto arquitetônico único. Três portas altas se dividem entre as arrojadas colunas de alvenaria. Um palacete com ares de mercearia do interior. É balcão para tomar gelada. A caipirinha é famosa. É também espaço para almoçar um prato feito a um preço justo.
Os dotes culinários são conhecidos nacionalmente. A casa é tradição no festival "Comida di Buteco". Foi campeã em 2020 e já ficou perto do título em outros anos. Participou de todas as edições realizadas na capital cearense. O evento chega a reunir bares espalhados por mais de 16 cidades brasileiras. Para levar o prêmio é preciso ter notas altas em "atendimento", "higiene", "temperatura da bebida" e, claro, "petisco".
A ordem do concurso é divulgar o que o ramo tem de melhor no quesito "tirar o gosto". E falando pelo território das guloseimas, O Camocim é querido no paladar da freguesia. Ter esse status é um das muitas conquistas de José Romildo Sousa e Silva (48). Proprietário fiel à regra de atender bem e ser a mente criativa de pratos saborosos. São 28 anos de batente diário ali.
Na correria do Centro
O caminho até O Camocim revela toda uma geografia particular da cidade. Passou a Catedral no sentido praia é dobrar à esquerda. Subindo a Rua Dr. João Moreira o clima já é de Copa. O Forte Schoonenborch segue impávido num sol de rachar.
"Ei, tem um restaurante bom aí. O indicador do taxista apontava à "Praça dos Mártires", também conhecido por “Passeio Público”. O "Mártires" do nome oficial tem a seguinte razão. Naquele lugar foram fuzilados Azevedo Bolão, Feliciano Carapinima, Francisco Ibiapina, Padre Mororó e Pessoa Anta. Queriam a República. Seu D. Pedro I não estava tão afim.
No destino observamos Emcetur e a renovada Praça da Estação (Atual Estação das Artes). O motorista, já na esquina com a Imperador, é só habilidade na buraqueira da Castro e Silva. "Pow, reformam essa praça inteira e deixam esse trecho assim"?
Casa do Zé Pilintra, o Casarão de Thomaz Pompeu, a Praça da Lagoinha, esquina do luthier Jorama, lojas de roupa, lanches, informática, galpões de reciclagem. E no entorno disso tudo, o prédio amarelo de O Camocim é avistado de longe.
É sexta. 15h. O casarão é um eldorado em contraste com o azul no horizonte do bairro Jacarecanga. Por telefone, Romildo avisa que está a alguns minutos de chegar. Dá tempo, antes da entrevista, para um caldo de cana com pastel por dois reais na Praça do Liceu (levando a própria vasilha o litro de caldo sai por 7 R$). Não para de chegar gente.
A cozinha é como uma música
O atendimento em O Camocim obedece a uma rotina rígida. O bar serve almoço a partir das 11h e vai até 15h. É quando Romildo tira uma "folga" e só reabre às 17h. Chegando ao local, avistamos o comerciante. Recebe as visitas com sorriso farto e prepara o local para o terceiro turno do dia.
Sexta à noite costuma ter bom movimento. Ele puxa os bancos, serve um refrigerante gelado em garrafa de vidro. Começa a desafiar a boa memória. Puxar das lembranças o meio de explicar a luta até hoje. Durante um bom período, o ponto funcionou como mercearia.
Foi Raimundo Alves quem batizou o negócio com o nome da terra natal. Contudo, a rotina apertou e o camocinense decidiu passar o negócio adiante. É quando Romildo assume a responsabilidade. Naquela altura da vida, o então funcionário precisava tomar outro rumo. "Não tinha mais como trabalhar para ninguém, já tinha família grande. Dois filhos. Como vou me segurar com um salário? Foi quando ele optou por arrendar", relembra.
É 1994, ano do Tetra mundial. Natural de Campos Belos, distrito de Caridade, Romildo chegou no Camocim para trabalhar como garçom. Lembra que chegou por indicação de um cliente antigo do bar. Também tinha conhecimento na cozinha. Anos depois, esta habilidade foi o diferencial na hora de conduzir o próprio negócio. O modelo de mercearia foi ficando para trás e o bar se fixou com principal atividade na esquina do O Camocim.
Assumir a casa exigiu um período difícil, quase chegou a fechar. "Aperfeiçoamos a parte do petisco. Tínhamos o petisco já, mas andava muito pouco. Viemos com ideia de melhorar, aí colocamos almoço, o 'prato feito' que vem junto. Aperfeiçoamos e hoje pegou muito bem a refeição", conta orgulhoso o proprietário que assina as receitas.
O prato é lançado tipo uma música. Por exemplo, não se faz uma música para ver se dá sucesso? Um prato é mais ou menos isso. Fazemos um prato com a intenção de ter sucesso. O que acontece? Você bota o povo para provar. Se o pessoal gostar, você já fez uma grande coisa. Por isso, acho que a cozinha é como uma música".
Não deixe de provar o torresmo
José Romildo Sousa e Silva anuncia orgulhoso o tempo de casa. São 28 anos trabalhando no mesmo lugar. Sem férias ou passeios em fins de semana. Quase três décadas dedicadas a fazer O Camocim um bar histórico nas ruas da capital cearense. Durante a conversa chega uma porção generosa do famoso torresmo. Imperdível.
Para Romildo, o atendimento é o segredo. Cliente satisfeito é o melhor caminho da boa divulgação. O popular "boca a boca" é a estratégia de um comércio pouco dado à realidade das redes sociais. Participar de um evento como o "Comida di Buteco" é outra ferramenta valiosa.
"Os bares que deixam de participar saem da mídia. Sai, não vê mais falar. Se você vive no comércio e não for visto por várias pessoas, você não será lembrado. Como o pessoal vai te visitar novamente? É importante que você esteja sempre ali, naquele concurso. E focado mesmo. Não adianta participar com qualquer coisa não. Você tem que participar e levar a sério, como tudo na vida. E o tira gosto é assim".
Na primeira edição participou com o clássico torresmo. "Hoje, se vier no Bar do Camocim e não comer o torresmo, não foi no Bar do Camocim", faz questão de sublinhar. Com os anos, Romildo investiu na criação de novos pratos. Vieram o "Mexeridinho", "Predileto da Verona" (3° lugar), "Buchada da Preta" e "O Melhor do Mundo", campeão em 2020. O escondidinho é um dos mais pedidos.
O Camocim serve torresmo. Temos quatro refeições diárias. Tem carneiro às quintas-feiras. Tem o peixe tradicional que é a tilápia. A dobradinha que é fava e bucho. A panelada que sai muito bem. O que tem na cozinha cearense conseguimos fazer aqui. Sarrabulho tem também. Cuscuz feito na hora... É simples, chegou, começa a comer".
Filosofia de bar
Ao reabrir naquele fim da tarde, Romildo tem o apoio do filho Cauã e de Vítor. A dupla organiza as mesas e atendem os primeiros clientes que chegam naquele turno. Enquanto isso, Romildo divide um pouco da experiência e o significado de uma história por detrás do balcão.
"O Camocim representa praticamente tudo. Cheguei aqui garoto, minha família foi criada, hoje se formando dentro do bar. Aí, o que acontece? Todo meu sustento eu tirei daqui. Minha base familiar foi o Camocim. Passamos por perrengue, coisa difícil. Reagimos e seguimos. Praticamente minha vida toda aqui dentro", estipula.
Nos tempos de mercearia, o ponto se furtava de abrir os domingos. A gestão do filho de Campos Belos priorizou o atendimento diário. "Bar é uma coisa que você não pode fechar, porque quando fecha, cliente começa a reclamar. Se o cliente chega e a porta está fechada, ele diz: 'Esse filho da mãe tá rico, quer trabalhar mais não', se diverte.
Para quem ainda pensa um dia em ser dono de bar, Romildo adverte que as exigências da área são inúmeras. A referência do bar é o dono. "Na hora que o dono começa a sair, acaba o bar. Onde você for tem tira gosto, onde você vai tem cerveja gelada. Então, quem é que faz a diferença? O atendimento", compartilha.
Nesse momento o telefone chama. Uma cliente encomenda uma porção generosa (1 kg) de torresmo. Rola uma rápida negociação e a entrega é marcada para o domingo. Assim, o produto chega fresco, no ponto. A "diferença" é o dono do bar. "É a estrela do negócio. Se ele fracassar, pronto. O negócio fracassa. Acredito que o bar seja mais ou menos isso".
Prestes a completar três décadas de total dedicação, Romildo resgata que atravessou crises severas e o temor de fechar as portas. Quando lembra dos momentos de baixa, os olhos marejam. Mas, o trabalho é motivo de orgulho e conhecimento de um arte dominada por poucos: ser dono de bar!
Lá fora, o acelerado de buzinas ganha intensidade. A noite se consolida e emoldura o vai e vem da Padre Mororó. Adolescentes retornam da escola. A turma religiosa se encaminha para o culto em uma das igrejas da região. No Camocim, o som ocupa as caixas de som. Dois operários da construção civil tomam cerveja. Um mais animado mostra as onças na carteira e diz que vai ter cabaré. Na parte da calçada, um senhor se acomoda com dois dachshund, os simpaticos "cães salsicha".
Há poucas horas, o lugar estava adormecido. Cadeiras em cima da mesa. Agora é outra história. "Tá vendo? O bar vai se formando", descreve Romildo. A observação fala sobre a sabedoria dos 28 anos de entrega àquele lugar. O comerciante aponta para uma panela cheia de bucho e fava que irá ao fogo. Agradece a entrevista, mas chegou o momento de cuidar da cozinha.
No caminho de volta, descendo a Padre Mororó, é notável como a rotina do local também é tomada por espetinhos e outros bares. Passamos pelo Santa Cruz (templo do metal em Fortaleza), Cemitério São João Batista até chegar à pista da Leste Oeste. No carro, Tim Maia apresenta a banda Vitória Régia. Obviamente, respeitamos a regra da casa e levamos um pacote do torresmo.
A série de matérias Conversa de Bar, publicada quinzenalmente, conta histórias da capital cearense pelas mesas da boemia