Nova edição de 'Grande Sertão: Veredas' chega ao mercado ampliando perspectivas sobre o romance

Clássico de João Guimarães Rosa foi publicado pela primeira vez em 1956; agora, ganha reedição pela Companhia das Letras, em versão simples e de colecionador

O fio que percorre trajetórias no bordado, a exemplo do que você vê na capa da edição do caderno Verso desta segunda-feira (25), é o mesmo capaz de atravessar o tecido e garimpar histórias, ressignificando minúcias de narrativas atemporais.

Em delicado ou grosseiro relevo, são essas tramas que escancaram a influência de gênios incontornáveis e conferem novo fôlego a pautas e sentimentos, atestando o poder da literatura além-livro.

"Grande Sertão: Veredas" ocupa um lugar privilegiado no que toca a essa seara. Publicado em 1956 por João Guimarães Rosa (1908-1967), o romance experimental modernista que apresentou Riobaldo e Diadorim ao mundo é um dos maiores cânones de nossas letras, fonte inesgotável de novos olhares por parte de pesquisadores, críticos, artistas e toda uma fortuna de interessados na prosa inovadora e revolucionária da obra.

Qualificado pelo seu próprio autor como uma "autobiografia irracional", o livro continua sendo aposta para uma porção de recortes artísticos, seja no papel, palco ou tela. Exemplo recente é o espetáculo homônimo dirigido por Bia Lessa, com Caio Blat, Leonardo Miggiorin e Luíza Lemmertz no elenco.

Após passar pelo tablado, a peça ganha agora uma versão em filme, intitulado "Travessia", com mesma direção e investindo na pegada experimental que imortalizou o enredo de origem. A previsão de lançamento é para o segundo semestre deste ano.

No mercado editorial, a grande novidade fica por conta da caprichada edição da Companhia das Letras que chega nesta segunda-feira (25) às livrarias. Com novo estabelecimento de texto, cronologia do autor ilustrada e encorpada fortuna crítica sobre o romance - incluindo textos de Davi Arrigucci Jr., Walnice Nogueira Galvão, Roberto Schwarz, Silviano Santiago e Benedito Nunes, além de um breve recorte da correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino - a publicação conta com versão simples e de colecionador, esta já esgotada (foram feitos apenas 63 exemplares) e custando mais de mil reais.

A fixação do preço, vale mencionar, foi alvo de comentários nas redes sociais. De "cara e inacessível" a algo que promove a "gourmetização da cultura", os termos pipocaram mesmo com a explicação da editora que o valor se justificaria pelas especificidades da feitura do material, "produzido artesanalmente e com muito cuidado".

O acabamento, de fato, é em capa dura com baixo relevo e costura aparente, contendo uma faixa vermelha com botão artesanal feito pela Quiari Marcenaria, que envolverá o exemplar.

Quanto ao conceito da capa - assinada pelo premiado Alceu Chiesorin Nunes - será o mesmo para ambas as versões do livro. Inspirada em bordado do avesso do Manto da apresentação, feito pelo artista sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), contém os nomes dos personagens do romance; na edição de luxo, ela vestirá o livro feito uma sobrecapa, além de conter uma guarda, com função de grudar a capa ao miolo, elaborada a partir de papel artesanal com impressão em silk screen.

Filão

A nova estética do exemplar certamente deverá volver novamente os olhares do público para a clássica história do jagunço Riobaldo, homem que percorre o sertão para combater seu grande inimigo Hermógenes e que é atormentado pela dúvida sobre a existência do demônio e pela paixão inconcebível por alguém que julga ser outro homem, Diadorim.

Nessa estrada contada apenas a partir do ponto de vista do protagonista, Guimarães Rosa avança e volta no tempo, desenvolvendo um estilo de narrar celebrado por estudiosos de todo o mundo.

Além da inegável e potente criatividade, o êxito do autor reside também em fundir elementos do experimentalismo linguístico típico da primeira fase do Modernismo e a temática regionalista da segunda fase do movimento.

A nova luz jogada sobre a obra pela Companhia das Letras não deixa de compor um filão de livros publicados em edições especiais, movimento recorrente no mercado editorial nos últimos anos. De Miguel de Cervantes a William Shakespeare, passando por Vinícius de Moraes e Nelson Rodrigues, foram vários os autores que tiveram volumes "encaixotados" em boxes primorosos aos olhos - incluindo Guimarães, com toda a ficção publicada pela Editora Nova Fronteira em capa dura no ano de 2017.

No caso específico do autor, a dança das cadeiras promovida pelas editoras detentoras de seus escritos - entre elas, José Olympio, Nova Fronteira e Global, nova casa de toda a obra do romancista, exceto de "Grande Sertão: Veredas", sob posse da Companhia das Letras - pode despertar o interesse do público pelas diferentes versões e conteúdos liberados.

Por parte da Companhia, já foi anunciado que outras edições da obra-prima de Guimarães Rosa ganharão as prateleiras, incluindo uma econômica, prevista para o próximo ano. Ainda neste, já no mês de março, a Global Editora lança o volume de contos "Saragana", além de "Manuelzão e Miguilim", "Primeiras Estórias" e outros títulos no decorrer do ano.

É como se preparam para bradar, a veteranos e novas levas de leitores e leitoras, o urro imortal do mestre: "A vida inventa!".

 

Grande Sertão: Veredas

João Guimarães Rosa

Companhia das Letras

2019, 560 páginas

R$ 84,90

 

> Leia opinião do professor e escritor Marco Severo* sobre a nova edição do clássico

Os caminhos do Grande Sertão

O que significam os 63 anos da obra máxima de Guimarães Rosa na maior editora do país

O frisson causado pela notícia de que a obra de Guimarães Rosa deixaria a editora Nova Fronteira, onde era publicado desde 1984, foi imediato no mercado dos livros. Os desdobramentos não demoraram muito para surgir: soube-se que após um período de negociação com várias editoras, “Grande Sertão: Veredas” iria para a Companhia das Letras, e os demais livros para a Global Editora. Isso se deve ao fato de que, enquanto os direitos da obra-prima roseana pertencem aos herdeiros da segunda esposa do autor, os direitos dos demais livros são divididos entre eles e os herdeiros da primeira esposa. 

Disputas de grande monta no mercado editorial não são incomuns, ainda mais em se tratando de um vulto incontornável da literatura brasileira como Guimarães Rosa, cujos direitos autorais ainda vão demorar a entrar em domínio público e cuja obra, pela relevância que possui, está sempre presente em escolas, universidades, especializações em escrita criativa e, quando existem, compras de governo. Ou seja: é uma obra que gera lucro. 

Para além disso, “Grande Sertão” é um livro imprescindível em qualquer ambiente que se debruce sobre a literatura e o fazer literário. Que este livro esteja agora no catálogo da maior editora do Brasil é a certeza de vislumbrar a oportunidade de alcance para uma infinidade de novos leitores, uma vez que a obra terá um gigantesco trabalho de divulgação junto a livreiros e escolas.
 
Dito isso, me causa espécie que uma obra sobre jagunços, identidade, sobrevivência, a pobreza, a resistência no sertão, ganhe uma edição brochura que custa perto de cem reais e uma edição de luxo (que se esgotou em poucas horas depois de anunciada a pré-venda) de quase R$1200. É certo que o mercado de luxo não tem crise, e é legítimo que um grupo editorial faça uma edição mais sofisticada e a coloque à venda pelo preço que achar que deve – mas é justo cobrar por um livro mais do que o valor do salário mínimo do país? 

Tal atitude, puramente comercial, atendendo às demandas de uma sociedade capitalista, não aumenta o fosso que divide os que querem ler dos que podem ler, corroborando para a eterna (e pertinente) discussão: o livro é um objeto elitista? As redes sociais entraram em convulsão após a divulgação dos valores. Seja como for, esse clássico de mais de meio século está novamente em evidência. E acessível ou não, continuará eterno.


*Professor formado em Letras/Inglês pela Universidade Federal do Ceará e autor de cinco livros