Primeira artista mulher a ingressar na Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap), a pintora, desenhista e professora de arte infantil, Nice Firmeza (1921-2013), despertou o amor pelos pincéis e o desenho, ainda na infância, quando morava em Aracati, cidade localizada no litoral Leste do Ceará, que logo ficaria pequena para comportar os sonhos e o talento daquela menina de sorriso largo. Determinada, escolheu ser artista profissional, numa época em que cabia à mulher o papel de casar e educar os filhos.
Nascida na segunda década do século XX - no Brasil, apenas em 1892, a Imperial Academia de Belas Artes “passou a aceitar as matrículas femininas”, destaca a historiadora da arte, Ana Paula Cavalcanti Simioni, no artigo “Eternamente Amadoras: artistas brasileiras sob o olhar da crítica (1885-1927), no qual denuncia a relação, no mínimo, desigual entre arte e gênero.
Ao longo do período imperial, e até as primeiras décadas dos anos 1900, as artistas mulheres, que conseguiam participar de salões e mostras, eram aceitas na categoria “amadoras”. Durante o Império, somente os homens podiam cursar a Academia. Assim, a primeira exposição dedicada à presença feminina nas artes foi realizada no país, em 1960.
Nesse cenário sociocultural, é possível esboçar, em rápidas pinceladas, como se deu a construção da trajetória de Nice Firmeza, artista mulher, vinda do interior do Ceará, no campo das artes plásticas, território delimitado exclusivamente para homens, até o século XIX. Nesse aspecto, é importante destacar a sua contribuição para o desenvolvimento do protagonismo feminino, ao abrir caminho a outras mulheres, que desejavam seguir a carreira artística.
Desde sua chegada a Fortaleza, aos 12 anos, em 1939, passando pelo primeiro contato com o ensino formal de arte, aconteceria em 1950, ao ser aprovada para participar do curso livre de Desenho e Pintura da Scap, entidade criada em 1944, funcionando até 1958, para difundir as ideias da arte moderna no Ceará, era clara a sua posição: ser uma pintora profissional.
A Scap dava continuidade ao trabalho do Centro Cultural de Belas Artes (CCBA), fundado em 1941 pelo artista Mário Barata (1915-1983) juntamente com Antônio Bandeira (1922-1967), Raimundo Cela (1890-1954) e Aldemir Martins (1922-2006).
Por isso, lembrar do versátil legado da pintora Nice Firmeza, no seu centenário de nascimento, é tentar romper o silêncio ou jogar um pouco de luz nessa escuridão que ainda permeia a participação feminina nas artes plásticas do Ceará.
Quantas “Nices”, “Heloísas”, “Dayses”, entre outras, “scapianas” ou não, foram obrigadas a abrir mão do sonho de se tornarem artistas por conveniências sociais? Nice, por exemplo, tinha um irmão que tentou mudar o curso de seu projeto de ser uma pintora. Mas contou com o apoio da mãe, e, depois, do marido.
Numa época em que poucas mulheres ousavam enveredar pelos caminhos da arte – até o século XIX sequer eram admitidas nas academias de belas artes, sendo consideradas “amadoras” – Nice Firmeza demonstrou determinação ao escolher a arte como profissão, atividade que exerceu ao longo de meio século, tendo começado na década de 1950, ao realizar a primeira exposição oficial. Aliás, a arte lhe deu tudo: da realização do sonho de infância de ser pintora, ao amor.
Na Scap, conheceu o artista plástico e crítico de arte, Nilo Firmeza (1919-2014) com quem se casou em 1961, formando um dos casais mais significativos das artes visuais do Ceará. Nice Firmeza, que também se destacou no conhecimento teórico de arte, em especial voltada à educação, exerceu as funções de secretária e bibliotecária da Scap, acompanhou os vários despejos da entidade, cuidou do seu acervo, e presenciou a criação da Escola de Belas Artes da Scap, durou entre 1953 e1954.
Participou da criação do grupo Clã, no sítio do Mondubim – hoje Minimuseu Firmeza-, equipamento que projetou com a função de partilhar sua arte com a comunidade, em especial, estudantes de escolas públicas.
“Sempre gostei de arte”
O gosto pela arte e o talento foram percebidos logo cedo, durante as aulas de desenho, ministradas pela irmã Margarida, primeira professora de arte da menina Maria Nice. Aliás, era a única pessoa que ensinava desenho em Aracati, cidade que retratou tão bem, em seus desenhos. Mas, a aluna não gostava das aulas, uma vez que a professora impedia que as alunas criassem seus desenhos, incentivando a cópia.
Às vezes, pegava um cartão-postal e modificava. Por tentar fugir da cópia, a professora achava que Nice tinha um defeito visual, então, como freira, não queria ganhar o seu dinheiro em vão. “Sempre falava que eu não dava para aquilo”, como relata nesta entrevista, concedida para fins acadêmicos em 1999, que serve de fio condutor a esta matéria. Assim, seus trabalhos nunca fizeram parte das exposições promovidas pela escola. Apesar de ser desestimulada pela freira, não abriu mão da vontade de se tornar uma pintora.
Não demora muito para isso acontecer. Por sorte, apareceu um pintor, em Aracati, hóspede do farmacêutico, que também pintava. Como era muito interessada por pintura, logo que soube de sua chegada, procurou o artista, e não pensou duas vezes em convidá-lo para visitar a exposição da escola. Convite aceito, com a condição de que ela estivesse presente.
Cópia x criação
A menina aproveitou o encontro para falar do interesse pela pintura e, também, sobre o que ouviu da freira: “jamais seria uma pintora”. Claro, que diante dessa afirmação e da recusa de incluir seus desenhos na mostra, Nice – apesar do amor pela arte – começou a duvidar do próprio talento. Após visitar a exposição, o pintor constatou que todos os trabalhos eram cópias, perguntando pelos desenhos da menina Maria Nice.
A freira respondeu que não exibia seus desenhos porque nunca conseguia copiar igual ao modelo proposto. “Como ela dizia que não prestavam, fiquei com vergonha e fui embora”, contou. Ao retornar, no outro dia, me falou: “Maria Nice, eu queria te pedir desculpa. Está aqui um bilhete que aquele pintor deixou. Disse que você é a única aluna que demonstra talento para se tornar uma pintora. Seus desenhos não são cópias, mas criações. As outras são copistas”.
No bilhete, o pintor convidava Nice para vê-lo pintar, no outro lado do rio. Como não iria sozinha encontrar com um homem desconhecido, chamou duas colegas, que também estudavam pintura. Pegaram as maletas e partiram.
“Lá, nos mostrou a paisagem e ensinou como fazer o enquadramento. E avisou: esqueça a irmã Margarida, tente fazer do jeito que você está vendo. Naquele momento, percebi que era aquilo que gostava de fazer”, diz com entusiasmo, como se voltasse à infância. Ao se despedir, aconselhou Nice a não frequentar mais as aulas da irmã Margarida. “Caso tenha oportunidade de ir para Fortaleza, procure um curso de arte, mas arte mesmo, que não seja cópia”, sugeriu.
Chega em Fortaleza
“Eu não tinha nem esperança de vir para Fortaleza”, assinala Nice. No entanto, sua mãe queria fazer um curso de enfermagem, mas não era oferecido em Aracati. Quando chega em fortaleza, vai morar no bairro Jacarecanga, no mesmo prédio do pintor “scapiano”, João Maria Siqueira, tornando-se vizinhos.
“Tive uma surpresa, certo dia, ao olhar pela pela janela a saída do pessoal de uma fábrica, que ficava longe do meu apartamento. Pelejava para desenhar e pintar aquela paisagem, quando ouvi uma voz de homem: você gosta de pintar? Estava dentro de casa, mesmo assim, o susto foi tão grande que o quadro caiu”, relembra rindo. Respondi que não sabia pintar, apenas gostava muito.
O pintor se sensibiliza com força de vontade da recém-chegada, afirmando que, como integrante da Scap, sabia da existência de muitas pessoas que gostariam de pintar, porém não tinham um lugar para aprender. Prometeu propor o seu nome à direção da entidade, a fim de que pudesse participar de uma aula de desenho e pintura. Para se aproximar mais da casa dele, aprendeu a jogar gamão com a sogra do pintor, que era viciada no jogo.
Na realidade, o jogo de gamão era apenas um pretexto para Nice observar os quadros do vizinho pintor. Muitas vezes, ficava até meia-noite jogando. Numa noite dessas, João Maria lhe deu a melhor notícia que poderia receber. “Você será a primeira aluna inscrita no curso de desenho e pintura da Scap”, disse.
Isso significava que uma artista mulher começaria a integrar um dos mais importantes espaços de discussão, difusão e aprendizagem de arte, em Fortaleza, que começava a dar boas vindas às ideias modernistas.
“Passei a frequentar a Scap”, comemorou. As aulas eram ministradas à noite, nos altos do Bar Americano, localizado na Praça José de Alencar, sede da entidade. Ao sair do trabalho, Nice seguia direto para a Scap, que contava com mais três alunas, sendo os demais homens.
Carreira começa na Scap
"Minha carreira teve início na Scap, nos anos 1950, quando comecei a expor oficialmente", conta com um misto de orgulho e saudade. Ao todo, foram 50 anos dedicados à pintura e ao ensino de arte para crianças. As aulas eram ministradas no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, localizado na Avenida da Universidade, destinadas a crianças a partir de três anos.
Geralmente, criança gosta de professora nova e bonita. Acho que consegui algo que poucas professoras, na minha idade, [78 anos] conseguem: conquistar a amizade e o carinho dos alunos. Tenho uma agenda em que anoto as coisas inteligentes que elas dizem”, comenta.
Seu amor e companheiro de vida, Estrigas, ingressaria na Scap um pouco depois de Nice, mas no mesmo ano, corrige. A turma era grande, no entanto, com o passar do tempo, alguns saíram, ficando Nilo Firmeza, Hélio Rôla, que era criança naquele tempo, Nice e Joaquim Arrais.
Quando a Scap mudou-se para a Floriano Peixoto, ingressaram Heloísa Juaçaba, Mirian e Cleusa. A próxima sede ficava na Avenida Tristão Gonçalves, e contou com as alunas Dayse Grieser e Lúcia Galeno. Dessa turma, só resta o artista visual Hélio Rôla.
O curso aconteceu entre os anos de 1950 e1953, ocasião em que a Scap ganha o status de Escola de Belas Artes. “Ainda cheguei a fazer a Escola de Belas Artes. O programa seguia as mesmas diretrizes da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), porém, durou dois anos, voltando a ser curso livre. Também fiz esse curso, que continuou até 1958. Eu tinha a carteirinha da Scap, mas perdi”, lamenta.
Escola de Belas Artes: sonho dos scapianos
A Escola de Belas Artes da Scap - fundada em 1953, em caráter de preparação, só funcionaria em 1954, com o aval do Ministério da Educação- teve como presidente Nilo Firmeza, o Estrigas. A experiência não foi bem-sucedida, voltando a ser Scap. “Era tão boa”, diz em tom de saudade, enquanto a entrevista é interrompida pelo apito do trem.
A Scap disponibilizava infraestrutura e materiais – cavalete, papel-jornal, carvão e até modelos vivos – aos alunos e professores, tornando o ambiente semelhante ao de uma academia ou ateliê. Os professores colocavam um modelo de gesso, às vezes, uma cabeça de leão, e usavam um refletor para proporcionar o contraste de luz e sombra, assim, cada um fazia o seu trabalho, descreve a artista.
No primeiro dia de participação da modelo vivo, foi muito engraçado; só havia duas mulheres. Quando aquela cortininha foi aberta, aparecendo aquela mulher despida, senti um calor de cima abaixo mas, depois, quando vi o procedimento de todos trabalhando como se fosse um modelo de gesso, fiquei mais à vontade. E o Hélio não podia assistir porque ele era menor de idade. Mas aquela pessoa, ninguém nem conhecia, quando terminava, saía, não se sabia quem era”, pontua.
Quando os alunos chegavam, a primeira tarefa era riscar. Na vertical, horizontal, inclinada e fazendo circunferência, para aprumar a mão. Cada dia, enchia-se o papel com aqueles traços para a mão ficar mais aprumada. Só depois vieram os modelos.
Aulas de campo ou “piquenicarte”
As aulas de campo ou sessões de pintura ao ar livre aconteciam nos fins de semana, podia ser no sábado ou domingo, e eram chamadas de “piquenicarte” . Além de tintas e pincéis, os artistas também levavam algo para comer.
A gente era pobre, não tinha cavalete. Comprava algodãozinho e uma lata de tinta fosca branca para aparelhar com uma trincha, pregava no Eucatex e pintava. Faltava dinheiro para as molduras também. No período dos salões, recolhia pedaços de madeira, em serrarias, e levava para a telefônica [local de seu trabalho] onde havia um rapaz que montava as molduras para mim. Era um tempo de sacrifício mesmo. Era muito engraçado andar com aqueles pedaços de pau no meio da rua – ri-.”
Trabalho para comprar tinta
Nice confessa que começou a trabalhar por causa da Scap, justificando que o seu irmão, com a morte de seu pai, passou a ser responsável pelas despesas da casa, não queria que ela trabalhasse. Ressalta que ele começou a reclamar de que a irmã só procurava coisa para gastar dinheiro.
“Eu me aborreci, e decidi arranjar um emprego. Vi um anúncio no jornal sobre uma vaga para telefonista, me inscrevi e fiz a prova sem ninguém saber. Nessa época, morava na Gentilândia. Dei o número do telefone da minha vizinha, caso fosse aprovada. No outro dia, à hora do almoço, dona Mírian me chamou para atender a uma ligação da telefônica, deixando meu irmão curioso. Tinha sido aprovada e deveria começar a trabalhar no outro dia, às 7h”, festejou.
Nice trabalhava durante o dia, e, à noite, seguia para o curso, acompanhada do irmão mais novo. Essa era a condição imposta por sua mãe.
Foi um tempo muito bom. Quando os alunos terminavam os trabalhos, eram expostos para a apreciação dos professores, que avaliavam cada um. A gente aceitava aquilo como uma lição. Ninguém se aborrecia. Era um ambiente que, acredito não existir mais na nossa situação atual, hoje em dia, quando o pessoal começa a pintar, quer logo vender. Nós passamos vários anos jogando nossos quadros fora. Não tenho os meus primeiros quadros. A gente dava", disse.
Scap cria o Salão dos Novos
Nós, a turma da Scap, fundamos o Salão dos Novos, revela com satisfação. O espaço que abrigou a primeira mostra do Salão dos Novos foi cedido pelo empresário Edson Queiroz (1925-1982), a sede da Ceará Gás Butano, “era só uma portinha”, na Rua Barão do Rio Branco, centro de Fortaleza.
“Eu tirei o primeiro lugar, e o Nilo, o segundo”. Fizemos os outros no Instituto Brasil Estados Unidos (IBEU).
Acervo sem manutenção
Nice Firmeza foi bibliotecária da Scap do começo ao fim, exercendo, também, a função de secretária. Lamenta a falta de conservação do acervo da Scap, desde livros, revistas até o mobiliário. Os livros chegavam em grande quantidade do Rio de Janeiro, na época, capital do Brasil. Às vezes, trabalhava até tarde da noite para organizar o acervo disposto em várias estantes.
"Todo esse material, quando a Scap foi despejada – o Barrica queria até tirar uma foto no meio da rua, mas o Nilo não deixou" -, uma parte foi para a Universidade Federal do Ceará (UFC), e a outra, para a Academia Cearense de Letras (ACL), funcionava na 24 de Maio, na casa que pertenceu à família Thomaz Pompeu.
Eu e o Nilo, uma vez por semana, dávamos uma olhada. Os quadros e os livros ficaram na Academia. Mas era desagradável, às vezes, eles estavam em reunião. O cupim comeu tudo. As estantes com os livros", disse.
A Scap sofreu uma sucessão de despejos devido à falta de dinheiro. "Antes de fechar suas portas, nós expomos no Salão de Abril. Os professores não ganhavam remuneração. Os sócios davam uma contribuiçãozinha, e o sujeito que recebia o dinheiro não repassava", lamentou por fim.