Da primeira vez que escrevi sobre Nice, ela havia desabrochado há poucos meses em algum jardim celestial. Lembro que, à época, disseram-me que eu falava da artista como se a tivesse conhecido e até hoje me pergunto: será mesmo que não a conheci?
O fato é que todos aqueles que conviveram com essa cearense, soprada ainda na infância para Fortaleza pelos bons ventos do Aracati, conseguem eternizá-la em lembranças, entrevistas ou depoimentos concedidos. E neste 18 de julho, ocasião de seu centenário de nascimento, eles selam aqui novamente este contrato.
Faz-se o que o pesquisador Gilmar de Carvalho (in memorian), um dos “filhos” do casal de artistas Nice e Estrigas, projetou em texto de despedida, há oito anos: “avaliar o legado de Nice Firmeza e agradecer tudo o que ela nos deixou, marcas de arte e traços de luz”.
Assim responde o arquiteto e Doutor em História/História da Arte Albio Sales:
Penso que como uma das mulheres pioneiras da arte moderna no Ceará, ela ocupa um lugar de destaque. Poucas foram as mulheres de sua geração que participaram da SCAP, nosso primeiro movimento coletivo de afirmação da estética moderna nas artes plásticas no Ceará”, introduz.
O artista Hélio Rôla, que frequentou a Sociedade Cearense de Artes Plásticas ainda garoto, quando tinha entre 8 e 10 anos de idade, recorda da presença de Nice pelas fotografias do fim da década de 1940 e início de 1950.
“Participei das aulas nas quintas-feiras à noite, era nos altos do Bar Americano, na Praça José de Alencar. Lá tinha esse grupo de pessoas que se juntam e começam a progredir em torno daquele fazer. Encontrei um lugar interessante, de convívio com gente pintando, e fui aprendendo umas coisas lá”, lembra hoje, aos 84 anos.
Décadas mais tarde, Hélio já adulto, ao lado da esposa, Efímia Rôla, participaria de algumas reuniões promovidas por Nice e Estrigas no sítio do casal no Mondubim.
Fui algumas vezes, era muito bom, Nice fazia uns doces, uns bolos, umas surpresas… O ambiente era esse, dos artistas se encontrarem, e o clima no país era de ditadura militar, então também fazíamos reflexões políticas”, conta.
Fases artísticas
Como é comum a todo artista, Nice passou por diferentes fases em sua produção. No começo, sobressaiam-se pinturas de paisagem. O marco inaugural de sua trajetória, na visão deixada pelo pesquisador Gilmar de Carvalho, é uma obra que hoje pertence ao casal Angela e Oswaldo Gutiérrez.
“Meu marido e eu sempre visitávamos Nice e Nilo que, todas as vezes, nos chamavam para rever o acervo do Minimuseu, depois de uma boa conversa em redes, sob a bela copa de uma das mangueiras do sítio. Em uma das visitas, Nice retirou da parede esse óleo sobre madeira a que se referiu o querido e saudoso Gilmar e a colocou em minhas mãos, dizendo: ‘É sua. Quero que fique com você!’”, lembra a presidente da Academia Cearense de Letras (ACL).
A obra mostra a torre da Igreja do Bonfim, um trecho do Jaguaribe e do casario de Aracati. “Diante do meu ar de dúvida se devia aceitar o presente, Nilo completou: ‘É melhor aceitar, senão Dona Nice vai ficar triste’. Aceitei”, partilha Angela, cuja avó materna viveu por muitos anos defronte aos Firmeza, tecendo os primeiros fios dessa amizade que atravessou gerações.
Aliás, é desse convívio com a comunidade do Mondubim, já na década de 1960, que surge a inclinação de Nice para pintar figuras humanas, como ela mesma relatou algumas vezes. Mas, segundo o professor Albio Sales, sua característica mais marcante é ter uma relação direta com temáticas populares e possuir uma estética que ignora a composição realista das figuras e paisagens e empresta a elas uma certa ingenuidade e poética.
Nesse sentido, Nice traz para a sua pintura imagens de sua infância, das festas juninas, das cantigas de roda. Trabalhava com manchas e pinceladas fortes, cores primárias e pouca mistura o que imprimia a suas composições uma certa alegria e vigor”, observa o estudioso.
Doces bordados
Mas a trajetória artística de Nice conta ainda com outras linhas, como a desfiada aos 8 anos de idade, quando se inscreveu num curso de bordado em Aracati. Proibida pela mãe de frequentar as aulas, ela resolveria essa inquietação muitos anos mais tarde.
No livro “Mãos que fazem história” (Editora Verdes Mares, 2012), das jornalistas Cristina Pioner e Germana Cabral, a artista comenta o retorno ao bordado, por ocasião do luto de um tio. “Como minha roupa era preta, decidi bordá-la para ir à exposição do Barrica. Lá, o Zé Tarcísio, outro artista plástico, quis trocar de blusa comigo. Eu, então, lhe disse: não, traga a sua que eu bordo”.
O bordado de Nice, escreveu Gilmar de Carvalho, tem a mesma estatura dos “parangolés”, arte para ser usada, com os quais Hélio Oiticica envolvia passistas da Mangueira, para suas performances.
“Pode ser pensado como algo digno para se vestir e se estar diante de Deus, como os mantos de Artur Bispo do Rosário. Dialoga com os bordados de Leonilson, na fase em que o artista expressava poesia e angústia, por meio das linhas, numa grafia minimalista e contundente”, comparou em 2013 o pesquisador.
Efímia Rôla, que ensina, pesquisa e presta consultoria sobre bordados, diz dever muito à influência de Nice. “O que ela bordasse era lei. Uma pessoa muito especial, uma cearense pra todo mundo se orgulhar, que Deus abençoe onde quer que esteja, foi uma grande inspiração pra mim, um bem querer pela eternidade”.
Na visão da companheira de Hélio Rôla, Nice se empenhou para fazer evoluir os dons.
Ela era muito criativa, curiosa e uma professora incansável. A arte dela era muito ligada ao que sempre foi, uma pessoa que amava a vida, amava a arte, e passava muito isso pra quem estava perto dela”, partilha.
Herança viva
Assim também a traduz o arquiteto e artista plástico João Jorge Marques Melo. Aos 73 anos, ele recorda de quando tinha apenas 10 e participava de aulas de pintura ministradas por Nice no Clube Náutico. Conta ainda de tempos depois, já adulto, quando trabalhou com ela na organização de várias edições do Salão dos Novos e também do Salão Infantil.
Ela tinha um carinho muito grande pelas crianças, achava importantíssimo elas terem contato com as artes plásticas. Era um anjo para os pequenos e demonstrava isso no trabalho dela, pintava muitos brincando, na natureza, dançando. As crianças a amavam, era a tia Nice”, expressa.
Para o professor Albio Sales, a contribuição dessa artista não é, porém, algo que se distingue por formar gerações de pintores ou pintoras, até porque ela sempre diversificou o seu trabalho, dividindo o tempo entre o receber pessoas no Minimuseu Firmeza, cuidar de plantas e dar aulas de arte, por exemplo.
“A grande contribuição da sua existência para a cena artística cearense está no conjunto de suas ações. Teve uma postura inovadora para as mulheres de sua época, participando de um meio artístico de domínio ainda predominantemente masculino, e soube impor respeito a si e a seu trabalho. Transitou nesse espaço mantendo naturalidade, simplicidade e, por esses aspectos, destaca-se como uma presença feminina pioneira nas artes plásticas do Ceará”, finaliza.