Nice Firmeza completa 100 anos tecendo herança de inspiração para o bairro Mondubim, em Fortaleza

Foi nesse território da Capital que a artista permaneceu até o fim da vida, fazendo do Minimuseu Firmeza um recanto de aconchego, paz e encontros

Nice Firmeza (1921-2013) criou um tempo dentro do tempo. Quando mudou-se com o marido, Estrigas (1919-2014), para o sítio localizado no bairro Mondubim, em Fortaleza, germinou um novo ciclo para as coisas. Era a década de 1960 e, desde essa época, todo instante passou a ser motivo para ser e encontrar. Estar entre as plantas, os livros e o silêncio da mobília. Preparar receitas mirabolantes e bordar os tecidos e a vida. Abraçar um estado de real presença e deixar-se colorir pelo entorno. 

Há cerca de nove anos, ao se aproximar do portão que resguarda o Minimuseu Firmeza, Diana Mesquita, 63, sentiu exatamente esse movimento de ser transportada para um lugar dentro de outro. Moradora do Sítio Córrego, comunidade situada bem próxima ao endereço do querido casal de artistas, a artesã e dona de casa descreve como mágica a sensação de conhecer Nice no recanto onde ela permaneceu até o fim da vida. 

“Chegando lá, eu entrei, me apresentei e a gente começou a conversar. Fiquei sabendo do Minimuseu por conta de uma matéria no jornal. Dona Nice me levou para ver a casa e iniciamos essa amizade”, conta Diana. Com a senhora de generosos gestos e fala convidativa, sempre disposta a chamar para um café, Diana aperfeiçoou a arte do desenho, que alimentava desde criança. Passou a ver, em Nice, uma mestra e inspiração.

“Ficava sempre encantada com o jeito de ela passar o conhecimento. Com ela, aprendi a fazer desenhos maiores, pois sempre fui de desenhar menorzinho. No começo, ela olhava para o que eu criava e dizia, ‘mas esse braço da boneca está um pouco menor, né?’. Então, eu ia tentando melhorar e sempre levava o que ia produzindo para que dona Nice acompanhasse. Ela dizia que estava ficando cada vez melhor”, recorda.

Hoje, quando, longe da pressa do mundo, Diana traça os primeiros riscos do que virá a ser uma boneca, uma árvore, um casal ou uma paisagem campestre – seja no branco do papel, seja na superfície encorpada de uma telha – é Nice que vem à mente, caminhando junto. Não chegou a fazer nenhum registro fotográfico com ela, é verdade. Mas aquele vento nas altas copas do Minimuseu quando a artesã ali estava ainda marca presença no íntimo também.

“Sinto uma paz, como se ela estivesse ao meu lado de novo. Depois ainda participei de umas oficinas de bordado no Minimuseu para tentar ficar ainda mais próxima dela. Esse dia, dos 100 anos de dona Nice, é uma data para lembrar de amor, de união, de mostrar as coisas dela, para que mais pessoas possam saber. A arte transforma o ser humano, é algo inexplicável, assim como ela”.

Pluralidade e afeto

Sobrinha neta de Estrigas, Rachel Gadelha herdou o espaço do Minimuseu Firmeza e igualmente o situa como um lugar de muita doçura e potência, detentor de várias de suas memórias de infância. Nice sempre está presente nesse navegar pela história como sinônimo de pluralidade e afeto. Ela era toda emoção, sensibilidade e criatividade.

“Todas as pessoas que chegavam ao Minimuseu – e isso durante décadas – eram recebidas pelo Estrigas, que abria o portãozinho para que entrassem. E qualquer mulher que adentrasse na casa, era recebida pela tia Nice com aquele sorriso dela e uma flor, para que pusesse no cabelo. Sob as mangueiras, muitas vezes ficavam grupos de artistas conversando ou amigos sentados na varanda. Crianças também chegavam lá e, em muitas manhãs, rodas de mulheres ficavam bordando. Ela adorava”, sublinha Rachel.
Rachel Gadelha
Sobrinha neta de Estrigas e diretora-presidenta do Instituto Dragão do Mar

Referenciando a artista como uma arte-educadora de mão cheia e alguém com uma criança interior muito viva, a gestora cultural – diretora-presidenta do Instituto Dragão do Mar – observa que a atuação de Nice foi pioneira em muitos sentidos, alicerçando as bases para ofícios e projetos que atualmente ganham cada vez mais olhares e discussões. Como exemplo, o compromisso da arte de ser notadamente presente e inclusiva.

Não à toa, essa grande herança que Nice plantou quando no espaço do Minimuseu e que continua transbordando, mesmo após oito anos de sua partida. Antes da pandemia de Covid-19, por exemplo, o ambiente foi palco de diversas ações capazes de desenhar a fisionomia do Mondubim, estreitando convívios e saberes.

“As comunidades do Novo Mondubim, Mondubim e Parque Santana têm uma bonita memória dela... É tão interessante porque os moradores até hoje passam em frente ao sítio e lembram daquele casal que acenava e dava frutas, que trocavam plantas. Há, assim, muito carinho por eles, a gente sente isso”, percebe Rachel Gadelha. “Além disso, muitas atividades foram desenvolvidas no lugar tendo as pessoas do bairro como participantes, principalmente devido ao trabalho de Paula Machado e Lúcia Ferreira”.

Fortuitas aproximações

Historiadora, produtora cultural e coordenadora de projetos no Minimuseu Firmeza, Paula Machado afirma que a equipe à frente do equipamento percebeu que a casa recebia alunos, pesquisadores e visitantes espontâneos de bairros distantes, contudo poucas pessoas moradoras do entorno. Por conta disso, sentiram a necessidade de levar a comunidade das adjacências para dentro do museu. 

“Passamos, assim, a pensar iniciativas nesse sentido, voltadas para os moradores dali. Iniciamos com o projeto da Banda Cabaçal Firmezinha, contemplando crianças do Parque Santana. Elas tiveram aulas práticas e teóricas de música e, depois, montamos tudo para que fizessem apresentações no museu, no Cuca Mondubim e no próprio Parque Santana”, enumera. “Paralelamente a essa ação, também foi executado o projeto ‘Bonequices’, com as mulheres da comunidade”.

Para a alegria de Paula e dos demais envolvidos na proposta, os públicos dos dois projetos desenvolveram uma vigorosa relação de pertencimento com o espaço, ainda que frequentando pouco o local antes dessas ações. “A partir  desses passos, o elo se fortaleceu. Hoje existe uma forte relação de afetividade do público do entorno com o museu”, destaca.

Pouco antes da pandemia de Covid-19, estavam sendo finalizados o inventário e a organização do espaço físico da biblioteca do Minimuseu Firmeza; o já citado projeto “Bonequices”, voltado para a confecção de bonecas de panos com roupas inspiradas nos bordados de Nice; e a ação intitulada “Armarinho da Nice”, a partir de uma coleção de roupas e bolsas também inspiradas nos bordados da artista. 

“Esses projetos de bordados eram também projetos de empreendedorismo. As inscrições foram abertas ao público, mas uma porcentagem das vagas era direcionada para moradores do entorno do Minimuseu Firmeza. Os encontros aconteciam duas vezes na semana. As mulheres participantes aprenderam a bordar, cortar, costurar e confeccionar as bonecas. Antes de iniciar as aulas, tiveram pequenas formações sobre a história de Nice, sobre sua trajetória no bordado, as linhas e cores que utilizava etc”, demarca Paula Machado.
Paula Machado
Historiadora, produtora cultural e coordenadora de projetos no Minimuseu Firmeza

“Nice está presente no Minimuseu Firmeza em cada obra, em cada peça do mobiliário, no jardim, nas mangueiras, no baobá, na casa-museu. A casa permanece com a organização que ela e Estrigas fizeram. Tudo tem a cara deles. Hoje essa presença é ‘materializada’ por meio dos projetos e da participação das pessoas neles. A permanência do museu aberto era um sonho do casal. Mesmo com muitas dificuldades – falta de recursos diretos e de apoio do Estado e da Prefeitura – o museu tem funcionado, cumprindo sua função social. No momento ainda fechado, por conta da pandemia, e aguardando recursos para reabrir e darmos continuidade ao legado de Nice e Estrigas”, completa.

Formação e empreendedorismo

A professora de bordado Lúcia Ferreira, por sua vez, dimensiona o panorama artístico do segmento ao qual se dedica fomentado no espaço do museu. Ela conta que as oficinas de bordado no equipamento aconteceram de duas formas: por meio das Rodas de Bordado, com o público que visitava a feira do projeto “Criação de Coleção Nice Firmeza de Bonecas de Pano com Bordados Artísticos”, da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), em 2018; e por meio do “Bonequices: Coleção Nice Firmeza de Bonecas de Pano e Bordados”, em 2019.

Nas duas ações, participaram as moradoras dos bairros Mondubim e Parque Santana, com experiência ou não em trabalhos manuais. Elas aprenderam desde o início dos pontos do Bordado Livre, chegando à confecção de bonecas e suas roupas bordadas – corte, costura de peças do vestuário feminino e roupas de cama e mesa.

“Havia o objetivo de formação, empreendedorismo, geração de renda, organização de vendas nas feiras e ainda a montagem de um negócio, a partir da comercialização de produtos bordados numa sala do Minimuseu Firmeza, com continuidade num terceiro projeto já aprovado. Porém, diante da pandemia que ora atravessamos, estamos esperando o momento oportuno e seguro de prosseguirmos”, diz Lúcia.
Lúcia Ferreira
Professora de bordado

Ela diz que as atividades iniciaram com 25 alunas. O processo foi suspenso em março de 2020, devido ao cenário pandêmico, e concluído em maio de deste ano de modo remoto, envolvendo 18 participantes. Atualmente, há mulheres que recebem encomendas, fazem vendas online, participam de lives, assistem a aulas de modo remoto ou têm, no bordado, uma atividade de relaxamento nesse tempo de reclusão. “Estão ansiosas pelo retorno dos trabalhos”, realça.

Carmelita Lopes Alves, 56, é uma dessas mulheres. Apesar de não ter conhecido presencialmente Nice Firmeza, a inspiração proporcionada pela artista representou novas perspectivas diante da rotina da bordadeira, moradora do Parque Santana. Foi no Minimuseu Firmeza que ela aprendeu a arte que hoje executa. “Chegando lá, conheci as meninas participantes e começamos a fazer as bonecas de pano”, recorda.

“Até fizemos alguns trabalhos para vender, mas hoje não comercializo mais os bordados. De toda forma, sempre encontro um jeito de voltar para essa arte, fazendo algumas coisas só para mim. A saudade é grande dos encontros, eu ficava esperando toda semana pelos sábados, quando havia as rodas de bordado. Penso até em reunir as meninas na calçada aqui de casa para a gente voltar a bordar juntas”, planeja.

Nessa dinâmica de unir e tecer, Carmelita não esconde a vontade de ter conhecido a grande mestra da arte que hoje realiza com tanto esmero. “É engraçado porque não estive com a dona Nice, mas só em olhar para a foto dela, no Minimuseu, já me sentia bem, sabe? É uma paz que a gente sente quando está ali na casa. Quando entramos e olhamos aquelas coisas que ela deixou, temos aquele desejo de ter conhecido ela para ter mais tempo de convivência”.

Desejo de permanência

Apesar da protuberância de cada um desses gestos em direção à vida – outra moradora do Parque Santana, a mobilizadora social Silvânia Vieira, já chegou inclusive a levar jovens para o espaço a fim de realizar encontros de contato com o ambiente, à sombra do famoso baobá – as atuais condições do Minimuseu Firmeza são evidenciadas na fala de Rachel Gadelha.

“Nós estamos lutando com muita dificuldade. Paula e Lúcia estão trabalhando de forma voluntária, e a família segue persistindo para ver como é possível fazer com que esse legado não morra juntamente com a morte física de Nice e Estrigas”, pondera.

Ela diz que a todo momento tem feito a seguinte pergunta: qual é o lugar hoje, na cidade de Fortaleza, de um espaço feito o Minimuseu Firmeza? “Será que teremos a capacidade – e aqui eu falo não apenas da família e do poder público, mas de todos nós, enquanto sociedade – de mantermos esse espaço?A quem interessa um ambiente como o Minimuseu?”, provoca.

Decerto, a rua onde o sítio se encontra está mal iluminada, sem pavimentação e sinalização turística, com mato crescido e preponderância de violência social, acentuando desigualdades e minando, pouco a pouco, as possibilidades de manutenção.

“Quando tem chuva, a gente tem medo de que o teto caia. Há um patrimônio ali. A família não tem interesse financeiro. Para a gente, se o museu continuasse cumprindo o seu papel, esse sonho da Nice e do Estrigas, seria bom demais. Mas quem é o responsável pela continuidade desse sonho? Onde ele cabe? Essas são perguntas que a gente tem feito”, destaca.

Uma certeza se evidencia nesse oceano de incógnitas: o desejo de perseverança reside na continuidade desses fazeres que esgarçam a amorosidade, as potencialidades e a dedicação à arte e à cultura, gestos tão próprios de Estrigas e da terna aniversariante deste dia. Matizes em ininterrupta coreografia no semblante de um bairro que, feito Nice tão bem realizou, sorve o tempo dentro de um tempo que convida a ficar. A permanecer.