Homens se relacionam com mulheres ou homens. Mulheres se relacionam com homens ou mulheres. “Gente, a letra B da sigla (LGBTQIA+) não é de Beyoncé não, tá?”, ironizou a atriz Camila Pitanga nas redes sociais após ter sua orientação sexual questionada.
Com a mensagem, Pitanga não apenas se posicionou pessoalmente sobre o assunto, como também oportunizou novos olhares sobre a bissexualidade. Afinal, por que ainda é um tabu tão grande falar das relações empreendidas por indivíduos que se reconhecem assim?
“Acredito que a bissexualidade ainda é tão incompreendida por vários fatores, muitos deles associados a estereótipos – como a indecisão ou que devíamos tomar um lado”, observa a assistente administrativa Isabela Romão, 27. “E até mesmo por acharem que é só uma fase, que somos infiéis, que queremos estar com os dois gêneros ao mesmo tempo, e por aí vai”.
Não à toa, ao ler a postagem de Camila Pitanga nas redes, não houve surpresa por parte dela: as reações negativas geralmente fervilham quando o assunto é esse. “A maioria das pessoas reage de maneira resistente ou faz piada com a bissexualidade, principalmente quando você sai de uma relação com uma pessoa do mesmo gênero e começa outra com uma do gênero oposto”, diz.
No caso de Isabela, descobrir-se bisssexual aconteceu há cerca de sete anos. Ela conta que passou toda a adolescência realizando atividades na igreja, sem nunca ter tido dúvida quanto à própria orientação até então. Por sinal, chegou a ter um namoro de três anos com um rapaz, ficou solteira e continuou se relacionando com homens. Aos 20 anos, porém, passou a questionar muitas coisas que ouvia nos encontros religiosos sobre o universo LGBTQIA+.
“Comecei a não mais me sentir bem naquele ambiente, pois meu melhor amigo na época era gay e eu andava muito com ele. Então, resolvi sair da igreja e passei a ficar mais próxima dele. Até que, em um dos rolês, uma amiga desse meu amigo deu em cima de mim e, para a minha surpresa, eu gostei. Tive muita vontade de retribuir o flerte, mas fiquei confusa, nunca tinha sentido nada por mulheres até aquele momento”.
Depois de alguns meses de investida com a garota, finalmente aconteceu o primeiro beijo e Isabela iniciou um longo processo de compreensão de si – uma vez que, em sua mente, por ter ficado com uma mulher, passou a achar que era lésbica, mas continuava se relacionando e sentindo atração por homens. “Passei um bom tempo querendo me colocar em alguma caixa, querendo decidir se era sapatão ou se era hétero”. Nem uma coisa nem outra: bissexual.
Construções políticas
Profa. Dra. do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Paula Brandão percebe ser impressionante que ainda hoje o assunto em questão seja um ponto de debate e curiosidade social. A bissexualidade é cercada por tabus, conforme descreve, pela falta de compreensão do que ela significa.
“Não entender faz rechaçar aqueles(as) que se encontram nesse grupo. Há uma certa desconfiança, como se as pessoas fossem indecisas, quando, na verdade, elas são assertivas em seguir os próprios desejos. Nossa sociedade falocêntrica se organiza num binarismo patriarcal, macho x fêmea, e é estabelecida sob a égide da masculinidade e suas disputas”, explica.
Por isso mesmo, segundo ela, as questões de gênero e sexualidade não são naturais, mas construções políticas. As pessoas dissidentes das normas heteropatriarcais e que procuram viver as diversas possibilidades, sofrem, portanto, uma forte discriminação.
Um preconceito que se encontra não apenas no volume mais encorpado da vivência social, mas até mesmo na própria comunidade LGBTQIA+. “A bissexualidade, mesmo que represente o B da sigla, precisa de mais visibilidade e apoio das demais. Conhecemos muitas pessoas gays, lésbicas, trans, enquanto parece mais difícil, mesmo no meio, reconhecer a(o) bissexual. Pesa sobre esse grupo um certo exotismo e, diria mesmo, fetichismo, principalmente diante dessa onda conservadora que assola todo o país”, analisa Paula.
Isabela Romão que o diga. Ela enfrenta muito preconceito dentro da própria comunidade, já tendo ouvido comentários de lésbicas afirmando que jamais namorariam uma mulher bissexual. “Algumas dizem que jamais se envolveriam com uma menina bi porque não consegue imaginar beijar a boca de uma mulher que já beijou homem ou que também gosta de homem”, detalha.
“Essa questão acaba atrapalhando os relacionamentos com meninas lésbicas porque, geralmente, existe esse preconceito. E com os homens também, uma vez que, quando a gente chega pra um cara e diz que é bi, cai no lance do fetiche. Isso existe muito – principalmente com relação às mulheres”.
Há também, na visão dela, uma cobrança para que bissexuais “tomem partido” – optando se os relacionamentos se darão apenas com homens ou com mulheres – e até mesmo uma porcentagem relativa ao número de parceiros do sexo masculino ou feminino.
“Já me disseram, ‘você é bi se fica 50% com homem e 50% com mulher’. E não é bem assim que funciona. Se eu fico com mais meninas, isso não me torna lésbica; se eu fico com mais meninos, isso não me torna hétero”.
A fluidez
A fala também ressoa na realidade de Priscilla Costa, 33. Psicóloga, terapeuta de adultos e casais, ela observa que, considerando a própria experiência, normalmente as pessoas bissexuais são vistas com muita desconfiança na comunidade LGBTQIA+, talvez mais do que pelos heterossexuais.
Existe um temor bastante forte de traição – que se acontecer com alguém do sexo oposto, parece que é pior. A ideia de “ser trocada por um homem” aterroriza muitas mulheres, segundo ela.
“Não ouço esse tipo de relato por parte de homens gays. Já aconteceu algumas vezes de alguma menina perder o interesse em mim depois que eu disse ser bi. Também já ouvi que têm nojo de pensar que a pessoa que já ficou com um homem. A discriminação que lembro de ter sofrido foi nesse contexto de paquera e um pouco no contexto da militância LGBTQIA+. É como se já tivessem nichos muito fortes de homens gays e mulheres lésbicas, e bissexuais, cujas pautas dialogam em alguns aspectos e em outros não”, avalia.
Feito Isabela Romão, Priscilla Costa igualmente se descobriu bissexual na adolescência/início da fase adulta. Aos 16 anos, começou a namorar homens; aos 19, namorou a primeira e única mulher – tendo vivido com esta um relacionamento de sete anos. Após isso, se relacionou somente com homens novamente, tendo ficado esporadicamente com algumas mulheres.
No posto de psicóloga, ela considera que a bissexualidade é mal interpretada primeiro pelo aspecto da fluidez. As pessoas geralmente se sentem mais seguras – logo, mais confortáveis – diante daquilo que é mais previsível. “Se eu sei que sempre verei aquela pessoa com alguém do sexo oposto ou alguém do mesmo sexo, é algo que posso esperar dela. Muitas pessoas relatam estranhamento e desconforto com a ideia de a pessoa ‘um dia estar com um homem e no outro com uma mulher’”, ilustra.
Outro elemento que contribui para essa incompreensão é a forte construção social que liga orientação sexual – para onde se direcionam nossos afetos e atração – ao corpo. Por meio dessa lógica, pessoas “normais” só se interessam por determinados tipos de corpos: ou o masculino ou o feminino, nunca os dois. Numa perspectiva mais conservadora ainda, a única orientação sexual valida é aquela direcionada para o sexo oposto (heterossexualidade), validando como “demais” a sexualidade e a afetividade de pessoas bissexuais.
Um terceiro ponto é que, em uma sociedade fortemente monogâmica como a nossa, a bissexualidade é invisibilizada pois normalmente se vê a pessoa com um parceiro por vez, seja de mesmo sexo ou de sexo oposto. Assim, a suposição imediata é de que a pessoa seja heterossexual e/ou homossexual.
“Acredito que o principal efeito desse panorama no comportamento dos indivíduos que se reconhecem assim seja a angústia e a vergonha da própria sexualidade. Brincadeiras autodepreciativas, assumir alguns parceiros e outros não, conforme o sexo for mais conveniente dependendo do grupo – e sim, acontece, por exemplo, de uma menina já considerada lésbica, por ter tido muitos relacionamentos com mulheres, ter vergonha de estar gostando de um homem e considerando inimaginável apresentá-lo ao seu grupo de amigas”.
Isso leva a um esvaziamento da própria identidade, pois, mesmo que uma pessoa passe muito tempo com outra, ou se case e passe o restante da vida com um mesmo alguém, isso não faz com que ela deixe de ser bissexual. É autodeterminado: a pessoa que fala de si.
União e fortalecimento
Em termos de políticas públicas, Priscilla Costa analisa que o investimento e o fortalecimento nos centros de referência LGBTQIA+, tanto em esfera municipal quando estadual, é fundamental na defesa especializada de direitos da população bissexual. Nesse painel de ações, surge igualmente como necessidade campanhas nas escolas de todos os níveis – com linguagem e programa adequados à faixa etária – para que, assim, a tolerância e a atitude de respeito sejam cultivados desde a base.
“Qualificação das forças de segurança e dos profissionais da saúde para minimização das situações de violência institucional, bem como a prestação do atendimento adequado e respeitoso à população LGBTQIA+, também são extremamente importantes. Eventos como a parada do orgulho em favor dessa comunidade e ações como o Festival For Rainbow igualmente ajudam a difundir as lutas e a cultura da diversidade sexual”, defende.
Em 2015, o Governo Federal criou a Comissão Interministerial de Enfrentamento à Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Ciev-LGBT). A portaria criou uma comissão com a finalidade de prevenir, enfrentar e reduzir as diversas formas de violência praticadas contra essa população, além de permitir o conhecimento de dados sobre características, estatísticas e o perfil dos crimes, contribuindo para a construção de medidas que visem à orientação, adoção de providências e criação de políticas públicas.
Para Paula Brandão, a medida é essencial diante de todos os atravessamentos já aqui mencionados. “As pessoas bissexuais não andam por aí dizendo que são bi, o que significa ser mais difícil também uma maior visibilidade. Acontece de ela(e) se reconhecer assim diante do seu desejo por uma pessoa. É impressionante como são, ainda hoje, alvo de especulações e suspeições, como se a liberdade de escolha fosse uma agressão – e é para uma sociedade cisheteropatriarcal”, situa.
Por sua vez, Priscilla Costa sublinha: “É realmente aceitar que afeto e desejo podem, sim, estar atrelados a outros aspectos que não sejam o corpo e, principalmente, que não sejam as genitais de uma pessoa. E que isso vai ser algo secundário em um relacionamento, para determinados indivíduos. O interesse vai acontecer pela inteligência, pela sensibilidade, por quaisquer outros atributos, e não há nada de estranho ou bizarro nisso. E não é necessário ficar ‘tentando’ imaginar nada. Basta respeitar”.
Isabela Romão, nesse coro de lutas, arremata: “Para mim, o que é mais importante sublinhar é que, sim, a bissexualidade existe e não, não é fase, não é indecisão e muito menos confusão. É uma identidade e deve ser respeitada. Acredito que falta debate. É necessário botar o assunto nas rodas, nos filmes, nas séries, nas músicas. Representantes da comunidade bi na política. Acho que, assim, mais pessoas bissexuais vão tendo coragem de sair do armário”.