Museu do Ceará: qual o futuro daquele que é o mais antigo do Estado e segue fechado há 4 anos

Secretaria da Cultura pretende anunciar licitação das obras de restauro do equipamento entre o final deste ano e início do próximo; tempo estimado de execução é de oito meses

Ninguém olha para o prédio na esquina da General Bezerril com a São Paulo. Quando acontece, é sempre espanto ou dúvida. Falam das paredes pichadas e do clima de abandono. Questionam se já foi igreja e até shopping. Poucos acertam, com razão, ser o Museu do Ceará. A sede da primeira instituição museológica oficial do Estado atualmente não faz jus à relevância da casa. É espaço arruinado no Centro de Fortaleza.

De portas fechadas desde 2019 – quando a Secretaria da Cultura do Ceará anunciou reformas sob duas frentes, uma emergencial e outra complexa – o equipamento segue agonizando. Inexiste sinal de obras, muito menos placa anunciando trabalhos. Encontramos apenas um vigia na entrada lateral do edifício, recado simples e direto. “Não tem nada acontecendo, estão aguardando o parecer do Estado”.

À frente da Secult-CE, Luisa Cela explica a questão. Afinal, o que está acontecendo no lugar e como a situação pode ser revertida? Segundo a secretária, ainda na gestão passada foi apresentado ao até então governador, Camilo Santana, um plano de ampliação e modernização da Rede Pública de Espaços e Equipamentos Culturais, incluindo o restauro do Museu do Ceará – o projeto já está aprovado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Porém, devido a tantas contingências, financeiras e sanitárias, não foi possível avançar com a agenda.

“Infelizmente, nos últimos quatro anos, tivemos muitos desafios. Foram diversas naturezas de crise e, no caso da política pública para a cultura, um processo de desestruturação das estratégias de financiamento. Além disso, a pandemia inviabilizou muitos dos nossos planos”, introduz a gestora.

Não à toa, quando assumiu o leme da pasta neste ano, Cela colocou como prioridade a reabertura do imóvel. “É uma das instituições museais mais importantes de nosso Estado. Guarda um acervo que conta nossa história enquanto território, povo e instituições. Perdemos muito com um espaço como esse fechado há tanto tempo, então estamos com um processo junto à Superintendência de Obras Públicas (SOP) de atualização do orçamento, feito em 2021, e elaboração do Termo de Referência, necessários para o procedimento de licitação da obra”.

No diálogo com o governador, Elmano de Freitas, e com alguns órgãos, a exemplo do Ministério Público, a Secult já possui algumas prerrogativas. A pasta pretende, entre o final deste ano e início do próximo, anunciar a licitação das obras de restauro do museu. O tempo estimado de execução, a partir do início dos trabalhos, é de oito meses. 

O financiamento previsto, por sua vez, é de aproximadamente R$4 milhões. A perspectiva futura é execução de restauro do prédio, modernização da infraestrutura e atualização do projeto expográfico. 

“Estamos celebrando agora um termo de parceria com uma instituição para realizar programações com o Museu do Ceará e com o Arquivo Público. São ações que vão acontecer, obviamente, fora da sede do museu, mas a partir do acervo dele – uma forma também de a gente diminuir o prejuízo da situação atual do prédio”.

Onde está o acervo e o que está sendo feito com ele

Enquanto os próximos passos aguardam, no fim do ano passado esse mesmo acervo foi transferido para o prédio do Anexo Bode Ioiô, na Rua Major Facundo, 584 – ambiente onde também funciona a parte administrativa do museu. 

Conforme a Secult, neste momento a equipe técnica se dedica a cuidar, redimensionar e reorganizar as peças, bem como identificar itens que exigem intervenções no sentido de restauro. São quase 13 mil artefatos no total.

A transferência das obras para o Anexo objetivou garantir melhores condições de guarda e preservação do mesmo. Com igual intuito, também em 2022, foram executadas ações emergenciais de manutenção das cobertas e da parte elétrica. 

A reabertura do equipamento, contudo, acontecerá após restauro completo do prédio, algo que compreende, inclusive, um dos pontos mais destacados de fragilidade das condições da casa: a precária situação das paredes externas, tomadas por pixos, janelas quebradas e portas comprometidas.

“É uma coisa que nos entristece, por isso ressalto que, desde o primeiro momento que cheguei na Secretaria, chamei as equipes e disse que tivéssemos uma atenção prioritária aos processos de solicitação e licitação voltados ao Museu do Ceará”, enfatiza Luísa Cela.

Ela sublinha que, enquanto os materiais ainda não estão disponíveis para visualização do grande público, há um desejo de reabrir, ao menos para pesquisadores, o acesso ao acervo durante o tempo de restauro. 

De igual forma, aguarda, ansiosa, peças feito o Bode Ioiô – uma das mais famosas do equipamento – voltar a ser prestigiado pela população. Além dele, são moedas, medalhas, quadros, móveis, peças arqueológicas, artefatos, bandeiras e armas, bem como exemplares de numismática, iconografia, indumentária, história natural, paleontologia, etnografia, arqueologia, entre outras, tudo distribuído em três coleções que contam a história do Ceará: Paleontologia, Arqueologia/Antropologia Indígena e Mobiliário

Há também peças de “arte popular” e uma coleção de cordéis publicados entre 1940 e 2000 (950 exemplares). Em um recorte específico, alguns objetos se referem também ao que conhecemos como fatos históricos, a exemplo de escravidão, movimento abolicionista e movimentos literários, feito a famosa Padaria Espiritual.

Por que outros e não o museu?

Questionada sobre por que o Museu do Ceará não foi contemplado no recente boom de inauguração e reabertura de equipamentos culturais mantidos pela Secretaria da Cultura – em uma conta rápida, incluem-se, entre outros, Museu da Imagem e do Som, Biblioteca Pública do Estado e Complexo Estação das Artes – Luísa Cela retoma um ponto já colocado aqui: “Na  verdade, não conseguimos dar conta de toda uma agenda”, diz.

“Fizemos dois projetos de restauro – do Museu do Ceará e do Theatro José de Alencar, este em funcionamento, mas já demandando intervenções – e, então, tivemos a pandemia. Ela inverteu nossas prioridades, o planejamento de gestão sofreu muitas mudanças. Não conseguimos dar andamento a todos os processos licitatórios, de aquisição, para realizar, além do que já foi feito, o andamento do processo do Museu do Ceará”.

De todo modo, segundo a secretaria, apesar do fechamento ao público, o Museu firmou parcerias para realização de palestras, cursos e exposições, promoveu eventos on-line e continuou com o trabalho interno de salvaguarda do acervo. 

Agora, com a estrada voltando a ser aberta, há muito o que fazer além do mencionado. A educação patrimonial é parte essencial. Parte da população, sobretudo jovens, nunca visitou ou sequer ouviu falar do equipamento, abrindo margem para o distanciamento e a apatia com relação à história do próprio Estado. 

Para a Secult, “o Museu do Ceará pode subverter o sentido original da formação de museus históricos e se constituir como agente estimulador da transformação social a partir do campo cultural em seus espaços de memória e história através de educação museal fundamentada na pedagogia freireana”.

Sendo assim, a pasta se compromete, por meio da requalificação do Palacete Senador Alencar – onde está o Museu – propiciar as condições necessárias para que gestão e equipe técnica da instituição possam reconceituar a casa explorando o potencial que ela oferece, em parceria com a sociedade civil. “Estou muito animada com o cenário que se apresenta e com a possibilidade de, muito em breve, darmos novas notícias à população”, adianta Luisa.

Entraves antigos

Não é de hoje que o Museu do Ceará protagoniza entraves relacionados à própria estrutura. Em pesquisa realizada pelo Centro de Documentação do Sistema Verdes Mares (Cedoc), diversos foram os instantes nos quais a instituição esteve no centro de problemáticas semelhantes às vivenciadas na atualidade.

Em 3 de fevereiro de 1983, reportagem do Diário do Nordeste apresentou como título “50 anos do Museu Histórico e Antropológico do Ceará - A trajetória nada feliz de um guardião da memória cearense”. Nela, destacava-se a falta de espaço do equipamento para comportar as mais de três mil peças sob sua posse. A questão se deu em virtude da inadequação da sede onde a casa funcionava – à época, na rua Barão de Studart, 410.

Dez anos depois, em 1993, a matéria “Peças do Museu não teriam relação com o Estado” salienta que o prédio estava precisando de pintura interna e externa, sistema de iluminação adequada e necessitava combater infiltrações. Além disso, embora tendo nome e endereço fixo para figurar nas referências turísticas da cidade, ele não “existia”, conforme o texto.

“O que não impede de contar com 11 funcionários, a maior parte com idade acima de 55 anos e sem qualificação. ‘Falta historiador, pesquisador’, diz Margarita Hernandez, contratada no período para cuidar do projeto de inauguração do Museu”, traz a publicação.

Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará, Romeu Duarte situa a magnitude estrutural e conceitual do Museu do Ceará, a começar pelo território que ele ocupa: está localizado no prédio da antiga Assembleia Provincial, projetada pelo arquiteto pernambucano Adolfo Herbster, autor de uma série de planos para Fortaleza no século XIX. A construção foi iniciada em 1856, sendo terminada em 1871. 

Antes de se tornar o que hoje é, abrigou a Faculdade de Direito e a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, bem como, por curto tempo, a Academia Cearense de Letras. Desde 1990, o edifício é ocupado pelo Museu do Ceará, tombado pelo Iphan em 1973. Nele foram discutidos e aprovados atos importantes, tais como os que embasaram a Abolição da Escravidão na Província do Ceará, em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. 

“Portanto, constitui-se em um marco histórico e artístico, dialogando com a Praça dos Leões, a Igreja do Rosário, o Palácio da Luz, o Hotel Brasil e o Palácio do Comércio, entre outros bens imóveis existentes à sua volta, tombados ou não. Ali se configura um interessante conjunto arquitetônico urbano construído em tempos diferentes, parte do corredor histórico-cultural do Centro de Fortaleza”.

Detalhes preciosos, futuro à espera

A arquitetura do edifício do Museu é outro realce: pode ser considerada de aspecto neoclássico tardio – linguagem empregada na construção de prédios públicos no Ceará à época, tal como a antiga Casa de Detenção de Fortaleza.

Entre as características, estão austeridade de linhas e emprego da simetria na composição de fachadas, marcadas por aberturas encimadas com tímpanos em arco pleno. O acesso é demarcado por um pórtico com colunas em mármore de Carrara e coroado por um frontão.

Tantos detalhes fazem o professor Romeu Duarte lamentar profundamente a atual realidade do equipamento. “Fechado há quatro anos, implora por obras de conservação e restauro, além da substituição e atualização das instalações. Enquanto isso não acontece, vemos que outros equipamentos culturais do Estado, tais como o Museu da Imagem e do Som e a Estação das Artes, foram recuperados e encontram-se em pleno funcionamento”, enumera.

“No governo Cid Gomes, face às novidades da imersão expositiva dos museus, fomos procurados para projetar a expansão do Museu do Ceará, que consistia na anexação e transformação de alguns espaços vizinhos ao equipamento cultural. Assim, seu acervo, ampliado, poderia ser melhor acondicionado, exposto e tratado, bem como servir de base a mostras virtuais, tal como ocorre nos museus contemporâneos – nos quais os acervos físicos e virtuais equiparam-se em importância e prestígio. Infelizmente, a ideia não vingou”.

A Secult afirma que este é um momento para refletir e problematizar a história e a memória sobre o museu mais longevo do Ceará. De acordo com ela, apesar dos percalços, o espaço planeja o futuro realizando uma maior aproximação com a sociedade por meio da proposta “Museu do Ceará - rumo aos 100 anos: histórias e memórias das lutas dos povos cearenses”, quando da reinauguração do Palacete Senador Alencar, após a obra de restauro da edificação.

“O Museu será reconceituado em diálogo com as reivindicações que permeiam os debates públicos e sociais da atualidade, dando continuidade e ampliando o rompimento com uma narrativa histórica tradicional e elitista sobre o Ceará e convida todas, todos e todes cearenses a participarem desse processo através da constituição de quatro memoriais relativos às lutas pelos direitos humanos de grupos sociais comumente invisibilizados na constituição do processo histórico: povos originários/indígenas, população negra, campesina e LGBT+”.

Até lá, o prédio irrompe ao sol, transeuntes continuam passando, e um papel deteriorado colado à parede grita: “A quem interessa o esquecimento do Centro?”.