Não caía uma gota d’água no céu de Várzea Alegre quando Chiquinho Menezes chegou ao mundo, há quase 90 anos, mas, na noite da última quinta-feira (27), chovia torrencialmente no momento em que ele partiu. As nuvens do sertão são assim, danadas para contar histórias, e essa começou em 4 de julho de 1932, pelas mãos de uma parteira, em um quartinho escuro da zona rural cearense, a mais de 435 km de Fortaleza.
Francisco Alexandre de Menezes foi o nome de registro do menino que floresceu no sítio Roçado de Dentro, em plena seca. Não demorou muito para ele acompanhar o pai no curral nem para extrair barulho de lata, pedra e caixa de fósforo. Cedo se encontrou na agricultura e na música, duas “escolas” nas quais pode-se dizer que tinha pós-graduação.
Chiquinho, como ficou mesmo conhecido, era autodidata e tocava de um tudo: fole de 8 baixos, gaita de boca, percussão… Aos 20, integrou a Orquestra Vale do Machado, considerada a primeira orquestra varzealegrense, foi da Banda de Música da cidade, e aos 30 anos, em fevereiro de 1963, estava entre os dezenove agricultores que largaram a enxada e pegaram nos instrumentos da banda cabaçal da comunidade para inventar um carnaval.
Os homens saíram do campo em direção ao centro da cidade, atentos às reações dos espectadores urbanos, e com o rosto pintado de carvão e goma, jeito que encontraram para se esconder de uma possível rejeição. Mas a recepção foi das melhores e receberam até convite para voltar no dia seguinte. Estava lançada ali a semente da Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro (Esurd), que em 2023 completará 60 anos.
Reverenciado ao longo das últimas décadas como um dos fundadores da agremiação, Chiquinho era também guardião da memória daqueles primeiros dias. Na casa em que viveu a maior parte do tempo, ainda hoje estão os instrumentos artesanais do desfile inicial daqueles jovens agricultores.
“Quando a gente guarda uma coisa, é porque quer bem. A gente tem que guardar as coisas pra, daqui a muitos anos, mostrar aos outros e contar as histórias”, disse à jornalista Beatriz Jucá, em entrevista para o livro-reportagem “Unidos no Roçado: vidas entrelaçadas em saudade e samba” (2011).
Despedidas
Sentado na calçada de casa, na zona rural ou na urbana - onde passou os últimos oito anos morando, após sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC) -, eram essas lembranças musicais que ele mais gostava de reavivar, “porque elas ainda servem”. Apesar da mobilidade comprometida, seguia lúcido, até que em dezembro de 2021, outras funções começaram a falhar.
Parou de conversar e, há oito dias, sofreu uma trombose venosa profunda na perna que o levou à internação imediata no Hospital São Raimundo, em Várzea Alegre. Por volta das 22h30 do dia 27 de janeiro, a filha mais velha, Clara Menezes, 63, soube da passagem. “Papai saiu do sofrimento”, ela contou ao telefone, após o velório e o sepultamento realizados no Cemitério Jardim da Paz, na manhã desta sexta-feira (28).
Além de Clarinha, como é mais conhecida na região, Chiquinho deixou outros seis filhos - Paulo, Raimunda, Antão, Ana Maria, Maria Socorro e Onésimo - , dez netos e três bisnetos. Foi casado com Josefa Bezerra Queiroz, que partiu bem antes, assim como três filhos que não atravessaram a primeira infância.
“Ele deve ser lembrado como era: uma pessoa para ajudar, ouvir, para fazer pelo outro e também aquela alegria que ele tinha, de se divertir, desenvolver aquela cultura. Um analfabeto, mas muito culto. E na música, era um mestre!”.
O neto mais velho, Heriberto Menezes de Morais, 35, recorda do avô como um homem de muito caráter, que deixou sua contribuição cultural para o Estado.
“Foi membro da Banda de Música do município, onde tocou trompete, fundador da Esurd, uma pessoa que sempre admirou cultura, penitentes, reisado. Era um agricultor apaixonado pela cultura, sempre levou felicidade pras pessoas que o cercavam”.
Homenagens
Heriberto segue alguns passos do patriarca. Com ele, chegou a desfilar na Escola de Samba, e há 19 anos está na Banda de Música de Várzea Alegre, tocando saxofone, e atualmente como presidente. Professor, conseguiu passar para o papel algumas composições que Chiquinho guardava apenas na memória, pois era desses que sabia tocar só de ouvido.
“Nos últimos anos, ele solfejou pra gente duas valsas e os arranjos de 4 ou 5 dobrados. Uma das valsas, está no repertório da banda. Como ele não sabia o nome original, nem o autor, só dizia que não era dele, apelidaram carinhosamente como ‘Valsa do Vô Chico’. As outras não chegaram a ser batizadas”, registrou Heriberto.
Da diretoria da Esurd, a sobrinha Marta Meneses, 35, já sente a falta que Chiquinho fará, especialmente na celebração dos 60 anos da agremiação, que se aproxima para ser celebrada com festa, se a pandemia de Covid-19 deixar.
“A gente sempre lembra do incentivo dele, da força que ele tinha, porque ele era um dos que mais puxava praquilo não morrer. Ele sempre foi um incentivador, de acompanhar a gente. Eu lembro que nos 50 anos da Escola, ele foi um dos que mais contou a história. Ele falava: ‘essa história já foi tão contada, mas mesmo assim queria deixá-la viva’. E sempre deixou viva, o que fica pra gente é isso”.
A esta matéria-homenagem, a jornalista Beatriz Jucá contou que Seu Chiquinho Menezes fazia poesia pela boca. “Cada entrevista com ele era de uma riqueza enorme. Falava muito que tinha cabeça boa de não pensar no que está por vir”. Deixou, portanto, mais essa lição eternizada por meio de algumas escritas, e, como ele mesmo disse certa vez, “escrevendo não se apaga mais”.