“Antes de ser a ‘terra de ninguém’, o Ceará está mais próximo da Canaã onde por longos anos submergiram raízes cristãs-novas fincadas em seu território”. Esta sentença, presente na introdução do livro “Cristãos-novos, seus descendentes e Inquisição no Ceará”, sintetiza bem o teor buscado pelo jornalista e historiador Nilton Melo Almeida a respeito do tema no qual se debruçou durante anos, a fim de desnudar uma temática tão importante quanto oculta.
A investigação sobre a presença dos cristãos-novos de origem judaica e de seus descendentes na formação do Ceará Grande – com ênfase no século XVIII e, portanto, conectado com a Inquisição Portuguesa, instituição que cobria o território brasileiro – nasceu a partir de uma curiosa percepção. Foi o sobralense Euclides Ferreira Gomes que primeiro chamou a atenção de Nilton Almeida no que toca à própria genealogia do pesquisador.
Uma vez sendo oriundo, por parte materna, de famílias de Amontada e do Acaraú, o estudioso se viu atravessado pelo fato de que “tinha tudo de cristão-novo”. A partir daí, entre uma vastidão de leituras e incursões, Almeida sedimentou um acurado olhar não apenas sobre a própria história, mas acerca da narrativa de todo um povo, na fronteira entre Ceará e Portugal. Indivíduos sujeitos a uma diáspora com vistas a presentificar no Brasil – encarado, no século XVIII, como uma terra de refúgio e de oportunidades – uma maneira de continuar fiel a seus costumes e tradições.
Além das características ligadas à singularidade do fenômeno cristão-novo, o tema também atraiu o historiador pelas vertentes da resistência cultural do grupo; o contexto da intolerância em Portugal; as estratégias de sobrevivência; os impactos da presença cristã-nova no Brasil e as repercussões da Inquisição na colônia. “Uma aventura fantástica sobre os que lutam pela liberdade de escolher”, resume Almeida.
Nesse sentido, “Cristãos-novos, seus descendentes e Inquisição no Ceará” não apenas reúne um robusto panorama de informações sobre o assunto como o interliga a rastros mapeados em pleno século XXI, “por descendentes mais distantes em busca de reconhecimento, da conversão, do retorno ao judaísmo”.
A obra é lançada nesta quinta-feira, às 16h, mediante a divulgação de vídeo no YouTube e nas redes sociais de Nilton Melo Almeida (Facebook e Instagram). Resultado da tese defendida em 2016 na Universidade Nova de Lisboa, com atualizações, o trabalho chega ao público por ocasião dos 200 anos do fim da Inquisição portuguesa, ocorrido em março de 1821. E o faz de forma pioneira, inaugurando, de modo sistematizado, os estudos sobre os cristãos-novos em território alencarino.
Diversificado acervo
Para isso, Almeida se vale de extremo rigor e de uma tessitura narrativa tão atenta quanto acessível ao percorrer o extenso painel de nomes, dados, fisionomias e geografias.
Dividido em sete capítulos – contemplando desde os detalhes de uma historiografia em ascensão, passando por minúcias sobre a pureza de sangue até a contemporaneidade do estudo – o livro instiga desde a capa.
Assinada por Eduardo Freire, responsável pelo design gráfico do trabalho, ela faz alusão ao sambenito, uma vestimenta de linho com faixas de pano vermelho postas em aspa, usada de modo forçado por aqueles condenados pela Inquisição como forma de penitência e difamação pública.
No miolo do livro, uma interessante estética de manuscritos borrados marca a transição entre os capítulos, ao passo que um diversificado acervo de imagens, documentos, mapas, referências, além de uma árvore genealógica com mais de 200 nomes, convocam o leitor a imergir profundamente na pesquisa.
Todo o estudo foi orientado por Ana Isabel Buescu, doutora em História e professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; e coorientada pela professora Anita Novinsky (in memoriam), responsável por alargar os horizontes de Almeida no que toca à historiografia relativa ao antissemistismo e ao racismo, nos quais reside, entre outras questões, o problema dos cristãos-novos.
Resquícios da Inquisição?
“Os estudos inquisitoriais tiveram grande avanço nas três últimas décadas, coincidindo com o fim dos regimes autoritários em Portugal e Espanha. E este livro traduz apenas uma contribuição. Fato é que cada vez mais se lançam olhares sobre uma das mais longevas instituições. Mas é complexo afirmar que, depois de 200 anos, vivemos, de alguma forma, resquícios da estrutura da Inquisição em nossos tempos”, aponta Nilton Melo Almeida.
“O que parece razoável dizer é que elementos fundamentais – intolerância, preconceito, racismo, não aceitação do outro, por exemplo – que formaram o caráter e a essência da Inquisição, ressurgem em ondas conservadoras, nacionalistas e associadas, em geral, a projetos da direita ou de estados autoritários, fascistas. Associar à Inquisição exigiria esforço de reflexão bem mais largo e cuidadoso”, completa.
Para além das genealogias escritas, a historiografia do Ceará rasteja em relação ao tema, deixando os cristãos-novos invisíveis em suas tramas, o que consolida a importância do trabalho. Isso para não falar de nossos parcos conhecimentos, conforme sublinha o autor, em relação às influências, reminiscências das práticas culturais cristãs-novas.
Em entrevista exclusiva ao Verso, o jornalista e historiador aprofunda as particularidades do livro e reflete sobre questões intrínsecas ao ontem e ao hoje. Confira:
Verso: Como e desde quando você iniciou a pesquisa que resultou no livro? Por que o interesse em desbravar a temática dos cristãos-novos no Ceará? De que modo sua história pessoal está ligada ao trabalho?
Nilton Melo Almeida: Minha curiosidade surgiu quando o sobralense Euclides Ferreira Gomes chamou-me atenção para o fato de que eu, por ser oriundo por parte materna de famílias de Amontada e do Acaraú, tinha tudo de cristão-novo. A partir daquele momento, li “Cristãos-novos na Bahia: a Inquisição”, obra incontornável da professora Anita Novinsky (falecida no dia da entrevista, concedida no último dia 20 de julho). Mergulhei na historiografia sobre a temática e resolvi investigar o tema no Ceará levando em conta que já havia estudos para os casos da Bahia, de Pernambuco, da Paraíba. De princípio, até considerei que eu poderia ser um descendente. Mas isso tornou-se irrelevante diante da abrangência da questão cristã-nova.
V: No decorrer da apuração dos dados, o que foi surpresa e o que se constituiu como confirmação do que você já sabia ou do que já vinha pesquisando sobre o assunto?
NMA: Desvendar o elo cristão-novo de Diogo Henrique de Siqueira, que viveu na ribeira do Acaraú, em Sobral, nas primeiras décadas do século XIX, foi uma surpresa gratificante. E curiosa, porque os genealogistas e historiadores que a ele se referiram em seus estudos, a exemplo de padre Sadoc, desconheciam esse fato. Seu quinto avô, Francisco de Sequeira, por ter judaizado, foi queimado vivo no Terreiro do Paço, em 1656, e sua quinta avó, Beatriz da Paz, degredada pelo período de sete anos para o Brasil, para onde trouxe a filha Isabel da Paz, ainda de colo. Na colônia, passando pelo Rio de Janeiro e pela Bahia, a família reconstruiu a vida, mas voltou a judaizar e continuou sendo perseguida, numa saga que passa pela Vila de Abrantes, teve o ápice em Lisboa e terminou por espalhar ramos da família na Europa e nos EUA. Somente seus pais e avós não tiveram complicações com a Inquisição. Por isso, é peculiar que Diogo Henrique tenha vindo para o Ceará, possivelmente numa viagem planejada, e aqui tenha casado com uma parenta cujo grau de parentesco ainda não está claro.
V: Quais lugares do Ceará foram mais visitados por você nesse percurso de busca por informações? De que forma esses locais se inscrevem na fisionomia da pesquisa?
NMA: Nomeadamente a Ibiapaba, a “Genebra dos Sertões” de que nos fala padre Antônio Vieira em sua “Relação de Ibiapaba” e talvez o primeiro aldeamento do Ceará, um núcleo populacional possivelmente vivendo em liberdade, à margem das regras da Coroa. Foi um lugar essencial, tanto por conta da referência do missionário como também pela existência da Serra dos Judeus, localizada nas proximidades de Viçosa do Ceará, e dos muitos topônimos bíblicos – a exemplo de Monte Sion, já em Parambu. A premissa era descobrir quem deu esses nomes a esses lugares. Sobral foi outra rota obrigatória, na perspectiva do padre João Mendes Lira, um núcleo de “numerosas famílias com antecedentes judaicos”. Encontrar Diogo Henrique de Siqueira nas terras de Forquilha reforça a hipótese, mas ainda há muito a ser esclarecido, particularmente porque não existem documentos ou vestígios que levem à conclusão de que havia uma comunidade cristã-nova organizada, formada por judaizantes, diferentemente das comunidades da Paraíba e do Rio de Janeiro, desmanteladas pela Inquisição nas primeiras décadas do século XVIII.
V: E quanto aos desbravamentos em Portugal? Como se deu o mapeamento de dados no território além-mar e o casamento com os dados investigados aqui?
NMA: Os arquivos da Inquisição portuguesa, instituição que cobria o território do Brasil, contém mais de 40 mil documentos, constituindo um manancial extraordinário de pesquisa. Na Torre do Tombo, encontram-se os processos dos portugueses, incluídos os nascidos no Brasil colônia, presos pela Inquisição. Para se chegar a um cristão-novo denunciado, processado ou condenado pelo Santo Ofício, é preciso tempo para folhear os processos, os cadernos do promotor ou as habilitações de familiares, por exemplo, o que hoje é possível fazer, em parte da documentação, pela internet. Adotei um método de cruzar os nomes dos nossos primeiros colonizadores com os nomes dos cristãos-novos processados pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, que já têm seus processos digitalizados, o que facilita a consulta, assim como com a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino.
V: Na apresentação da obra, a estudiosa Ana Isabel Buescu situa que é precisamente "o rasto, os traços e as memórias da condição de cristão-novo no Ceará do século XVIII que Nilton Melo Almeida procura reconstituir, procurando ainda levar a sua pesquisa até aos dias de hoje". O que você priorizou na organização do estudo de forma a contemplar esse contexto tão denso de informações? Quais foram os desafios?
NMA: A grande prioridade e o maior desafio foram encontrar os cristãos-novos na documentação de nossos arquivos. Essa tarefa foi extremamente difícil porque, em 1768, o Marquês de Pombal mandou destruir as fintas, rateios por meio dos quais os cristãos-novos pediam perdão ou outros privilégios. Depois, em 1773, dom José extinguiu a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos. E antes disso, os cristãos-novos aqui chegados não vinham com “carimbos” que atestassem essa condição jurídica que atraía ódios e preconceitos. Como o Ceará Grande só tardiamente entrou nos interesses dos colonizadores, nas duas últimas décadas do século XVII e nas primeiras da centúria seguinte, pode-se concluir que para cá vieram seus descendentes, em busca de sesmarias, de terras para criar gado e já integrados à cultura cristã católica. O que sobressai no esforço de identificação desses sujeitos é a genealogia, por meio da qual, com muita investigação e, às vezes, um pouco de sorte, é possível chegar aos elos entre descendentes de cristãos-novos e seus ascendentes, notadamente os processados pela Inquisição, um caminho documentalmente seguro, mas cheio de armadilhas. Por exemplo, os homônimos. Outra possibilidade são as reminiscências culturais, que podem ou não revelar vínculos perdidos.
V: O livro abraça uma ótica multidisciplinar ao priorizar desde os testemunhos da cultura material até a história oral, traçando “um fio da identidade possível com os trajetos de seus ancestrais, fugidos ou apanhados nas malhas da Inquisição”. Para você, enquanto pesquisador, qual foi a importância de transitar entre essas diferentes paisagens conceituais? Como isso se refletiu no resultado final do estudo?
NMA: Os documentos, por si, são insuficientes para dar conta de tão complexa história, recheada de pressões, de silêncios, apagamentos, tramas, dissimulações, medos. Desse ponto de vista, tirar das sombras trajetórias de descendentes de cristãos-novos exige cruzamento meticuloso de todas as fontes possíveis. Só cheguei a Diogo Henrique de Siqueira e sua ascendência por meio da história oral. Uma entrevista realizada com um descendente dele, num trabalho de construção de confiança, abriu-me caminho para muitos processos da Inquisição portuguesa, sob guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Interessante que, para chegar a esse entrevistado, percorri cemitérios e mergulhei em fontes epigráficas. Trata-se, realmente, de exercício investigativo transdisciplinar, o que gera robustez à pesquisa e amplia o escopo argumentativo.
V: Na introdução do livro, você sublinha que, a partir do estabelecimento da Inquisição portuguesa, o Santo Ofício sedimenta a noção de que existem dois tipos de cidadãos – os puros e os impuros de sangue –, fragilizando ainda mais as regras de convivência entre grupos com hábitos culturais diversos. Nesse sentido, uma vez que, no Brasil e no mundo contemporâneo, continuamos a presenciar tantos atos de intolerância, de que forma o livro pretende tecer reflexões?
NMA: Instituição complexa, a Inquisição portuguesa tornou-se exemplo categórico de intolerância, de preconceito racial, de antissemitismo, de cerceamento da liberdade de crer, de ir e vir. Os judeus batizados à força, os que já viviam há séculos em Portugal, e posteriormente os cristãos-novos, eram cidadãos do Reino. Tão portugueses quanto os cristãos-velhos. Sujeitos às leis do Reino. Mas as disputas entre grupos sociais, os interesses econômicos em jogo, o ódio disseminado nas camadas baixas da população, a ideia de uma nação cristã católica sólida, ao contrário dos reinos contaminados pela Reforma, e uma boa dose de fanatismo tiraram-lhes tudo. A construção da imagem do inimigo herege destruiu as possibilidades de convivência, de harmonia entre os diferentes. A lição de Espinosa de que as questões da fé não eram da responsabilidade da República estava longe de ser seguida em territórios demarcados pela cruz. Se há uma reflexão crucial a se pensar é sobre a capacidade de, em nossos tempos, não repetirmos essas violências, tomem elas novas dinâmicas, novas roupagens, novos discursos. Afinal, os revisionistas e negacionistas estão à solta.
V: Quais foram as principais conclusões alcançadas pela pesquisa? O que elas sinalizam do ponto de vista da formação do nosso povo, do nosso território?
NMA: Pelo menos até o momento, não foram encontrados documentos de nascidos ou residentes no Ceará processados ou condenados pela Inquisição portuguesa, por judaísmo, tomando como recorte o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. Há registros, sim, de denunciados nos Cadernos do Promotor. Tampouco podemos citar exemplos de judaizantes em nosso território, uma categoria distinta do cristão-novo, que poderia judaizar ou não. É certa a presença de descendentes de notórios cristãos-novos, mesmo que em gerações distantes, daí porque a importância do caso de Diogo Henrique de Siqueira, que teve apenas os pais e avós livres da ação inquisitorial. Alguns desses descendentes, poucos, já cristãos há muitas gerações também, resolveram converter-se à religião de seus ancestrais, enquanto a maioria contenta-se com o reconhecimento de que descendem com objetivo de alcançar a naturalização portuguesa pela via sefardita, instituto legal português de 2016.
V: Por fim, há um aspecto levantado no trabalho relacionado à abertura do estudo para novas investigações. De sua parte, já há alguma prerrogativa quanto a essa continuidade? Que outros ângulos da mesma temática poderiam ganhar novos mergulhos?
NMA: Trata-se de campo, relativamente ao Ceará, ainda em aberto. Minha hipótese é de que muitos cristãos-novos, sobretudo processados pela Inquisição, faltam ter seus descendentes identificados na formação do Ceará. Abraão Senior, Diogo Fernandes e Brancas Dias, Belchior da Rosa e Antonia Soares, Francisco de Sequeira e Beatriz da Paz e Leonor Ribeiro, aos quais denomino como matrizes, são apenas alguns exemplos que vieram à tona em estudos já publicados. Há um universo amplo a ser desvendado seguindo as correntes migratórias da Bahia e de Pernambuco para o Ceará. Ademais, outros pesquisadores, como Ana Paula Cavalcante, por exemplo, tentam aprofundar as influências judaico-cristãs-novas da Península Ibérica em nossas terras.
Serviço
Lançamento do livro “Cristãos-novos, seus descendentes e Inquisição no Ceará”, do jornalista e historiador Nilton Melo Almeida
Nesta quinta-feira (22), às 16h, a partir da divulgação de um vídeo sobre o trabalho no YouTube e nas redes sociais do autor (Facebook e Instagram). Após o momento, a obra estará disponível para compra na livraria Arte & Ciência (Av. Treze de Maio, 2400, Benfica) e por meio de contato direto com o historiador, pelo e-mail niltonmalmeida@uol.com.br
Cristãos-novos, seus descendentes e Inquisição no Ceará
Nilton Melo Almeida
Expressão Gráfica e Editora
2021, 384 páginas
R$ 85