Patrimônio conhecido de Fortaleza, o Cineteatro São Luiz acolhe em si outro espaço de salvaguarda da memória audiovisual cearense. No 5º andar do prédio anexo ao equipamento, desponta para o público da Cidade a Sala Seu Vavá, batizada em homenagem a Raimundo Carneiro de Araújo (1930-2022).
Proprietário do Cine Nazaré, último cinema de bairro de Fortaleza, no Otávio Bonfim, ele é considerado nome “incontornável” do parque exibidor da cidade. Incorporada ao circuito público de cinema do Governo do Estado, a Sala Seu Vavá deve abrir oficialmente em agosto, mas já recebe programação especial para “se apresentar” à plateia a partir desta quinta-feira (30). Em visita, o Verso destaca planos e vocações do espaço.
Sala de memória e afeto
“É uma sala construída em torno da memória e do afeto”, atesta Duarte Dias, curador e programador de cinema do São Luiz. A afirmação vem tanto por conta do envolvimento da família de seu Vavá no projeto, quanto pela relação histórica dele com o, hoje, cineteatro.
Tela, poltronas, projetores históricos e películas de filmes antigos foram doados pelas filhas do homenageado. Os assentos, inclusive, são originais do São Luiz. Em uma das reformas do equipamento, seu Vavá adquiriu parte das poltronas que seriam trocadas.
“Quer dizer, elas estão voltando para casa e, ao mesmo tempo, trazendo a memória ligada a ele”, define Duarte.
Como foi o caso com os móveis, ele montou o Cine Nazaré — que assumiu entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1970 — “através de doações e compras” de itens de outros exibidores, como explica Duarte.
“O cinema dele, de certa forma, constitui um memorial desse circuito, porque ele ia montando equipamentos de outros cinemas, então acabava funcionando como uma espécie de museu vivo, atuante”, caracteriza.
A aproximação de seu Vavá com o Cine São Luiz é ainda anterior e vem dos anos 1950. “Na época, o papai ainda não era proprietário de nenhum cinema. Ele trabalhava para o Cine Familiar (ligado a padres franciscanos e que também funcionava no Otávio Bonfim) e a relação com o São Luiz era porque ele ia pegar as películas lá”, lembra Inalba Araújo, filha do homenageado.
Acervos
Entre as películas doadas ao Cine São Luiz, há mais de 100 rolos de filmes de 8, 16 e 35 mm. Segundo Duarte, está sendo estudada uma parceria com o Museu da Imagem e do Som do Ceará para avaliação, identificação, catalogação e eventual recuperação das obras. Uma vez restaurados, os filmes devem compor uma futura mostra na sala principal do São Luiz.
Além do acervo ligado ao Cine Nazaré, o equipamento também recebeu outro acervo histórico e robusto, este ligado ao cinéfilo, crítico e engenheiro civil Enondino Bessa. Dezenas de livros sobre cinema, DVDs, blu-rays e CDs foram doados pela viúva, Evan Bessa, à Academia Cearense de Cinema.
A instituição, então, repassou o rico acervo para a guarda do São Luiz. “Nós estamos catalogando e a ideia é que esses livros e filmes possam ser disponibilizados à comunidade para consulta e eventuais sessões, já que a gente também quer construir ao longo do segundo semestre um processo que abrigue cineclubes (na Sala Seu Vavá)”, adianta Duarte.
Programação
Ainda em janeiro de 2024, a Sala Seu Vavá ganhou uma solenidade especial de abertura para as famílias do proprietário do Cine Nazaré e de seu Enondino Bessa. De lá para cá, o espaço recebeu programações pontuais e menores, por exemplo, em parceria com a ACC.
“Durante esse processo de pequenas exibições, a gente estava correndo paralelamente com a solicitação de registro (da sala) na Ancine (Agência Nacional de Cinema), porque ela precisava reunir determinadas condições técnicas para ser reconhecida como capaz de entrar no circuito nacional de cinema”, explica Duarte.
O processo foi concluído em maio e, desde o dia 13, a Sala Seu Vavá entrou oficialmente para o circuito público de cinema do Ceará, somando-se à sala principal do Cineteatro São Luiz e às duas salas do Cinema do Dragão. Com isso, ela poderá acolher exibições comerciais.
A partir desta quinta-feira (30) e seguindo até o sábado (1º de junho), o espaço irá acolher uma mostra de filmes do espanhol Pedro Almodóvar. A experiência, define Duarte, é para “dar conhecimento ao grande público” sobre o local de exibição.
“Daí a gente vai fazer uma parada em junho e julho e fazer alguns pequenos ajustes para recepcionar o público de uma maneira ainda mais interessante quando do início das atividades”, segue. A data prevista para essa ação plena da Sala Seu Vavá é agosto deste ano.
Como Duarte reconhece, “em uma sala de 45 lugares a programação tende a ser diferente de uma de 1050”. “A ideia é que a gente abra o espaço para filmes do circuito brasileiro e, particularmente, cearense, para que a gente possa radicalizar mais ainda essa proposta”, adianta o curador.
"Pensando em termos de Brasil, o número de salas de cinema não é suficiente, ideal para o tamanho da população. Cada sala de cinema que chegue, em qualquer que seja o lugar, é preciosa no sentido de você poder oferecer à produção brasileira mais uma possibilidade de encontro com o público”, celebra.
História eternizada e dinamizada
Além da história presente nos acervos e nos itens da própria Sala Seu Vavá, o Cineteatro São Luiz estuda construir, na antessala do espaço, “uma espécie de memorial” do audiovisual cearense.
“O São Luiz é o último cinema de rua de todo um ciclo muito importante do cinema cearense em termos de exibição, que se concentrava aqui na (rua) Major Facundo”, ressalta Duarte.
O curador avança: “A gente está muito empenhado em fazer um espaço que contribua para o circuito exibidor, mas também para a preservação dessa memória que passa pelo seu Vavá, pelo Severiano (Ribeiro, empresário fundador da rede de cinemas homônima e do Cine São Luiz) e por esses outros cinemas que existiram aqui”.
“Aqui é uma sala que as pessoas vão poder usufruir de cinema, mas ao mesmo tempo ter contato com esse histórico do cinema no Ceará, preservado por essa pessoa tão apaixonada pela sétima arte que é o seu Vavá”
“Foi a coisa que ele mais amou na vida, sabe? Ele amou a sétima arte. Desde que eu me entendo, o papai foi focado em filme, cinema, nas artes”, partilha dona Inalba, que lista “sensibilidade”, “dons artísticos”, “visão crítica”, “não ao preconceito” e “gosto pelas artes” como importantes legados simbólicos recebidos enquanto filha de seu Vavá.
“A importância desse legado é para um contexto geral: agora a gente tem faculdade de cinema, de audiovisual, de teatro, tanta coisa. Não é só para a gente”, aprofunda a herdeira, ressaltando a doação do acervo do Cine Nazaré como um “momento histórico”.
“Fico muito feliz se puder ajudar, contribuir de uma forma pequena, modesta. Isso é estar dando um pouco do que ele tanto amou. Ele, embora não esteja vivo, foi quem mais ganhou: é a eternização dele através do cinema”, considera Inalba.
Duarte reforça o caráter dinâmico e atual dessa história. “A gente tem a oportunidade de revê-la, resgatar personalidades e acontecimentos, ver o que está sendo feito e projetar o que pode ser feito em termos de preservação desse legado e desse momento de produção muito forte”, reflete.
“Efemérides são importantes pelo que podem dialogar com o mundo contemporâneo e pelo que isso pode suscitar. Todo o movimento que a gente vem fazendo aqui no São Luiz — e a Sala Seu Vavá também está inserida nisso — é buscando, de alguma maneira, fortalecer a consciência em torno da memória e da importância da nossa história”, finaliza.
Seu Vavá em São Paulo
Além da homenagem no Cineteatro São Luiz, seu Vavá também está sendo lembrado na exposição "Uma Rua Chamada Cinema", do fotógrafo Sergio Poroger. O projeto do artista reúne fotos de salas e trabalhadores de cinemas de rua de todo o mundo, incluindo o tradicional Cine Nazaré e seu proprietário.
A mostra compõe o projeto "Maio Fotografia", do Museu da Imagem e do Som de São Paulo. No total, são 36 obras assinadas pelo fotógrafo e também jornalista. A pesquisa de Sergio começou ainda em 2017, nos Estados Unidos. Além de seu Vavá, o próprio Cineteatro São Luiz também foi registrado pelo paulistano.