Gabriel O Pensador relança livro em Fortaleza

Cantor e escritor traz “Um Garoto Chamado Rorbeto”, obra foi vencedora do Prêmio Jabuti de melhor livro infantil em 2006

A trajetória do carioca Gabriel Contino reserva valioso apreço pelos labirintos da língua portuguesa. Munido de rimas e batidas do rap, foi rebatizado no início dos anos 1990 como Gabriel O Pensador. Quase três décadas depois de estourar com a canção “Tô Feliz (Matei o Presidente)”, contabilizar sete álbuns lançados e assinar uma sequência de sucessos radiofônicos, o artista prossegue como voz crítica aos dilemas brasileiros. Também fincou bandeira no território da literatura. E premiada.

É justamente por esta outra habilidade com as palavras que o músico retorna à capital cearense. No sábado (14), às 9h, no Cineteatro São Luiz, participa do projeto “Escola Parceira da Leitura”. Durante a passagem no evento que chega à 4ª edição, relança um de seus principais trabalhos, o livro “Um Garoto Chamado Rorbeto”. Reeditado pela Melhoramentos, a publicação retorna nas versões impressa, e-book e audiolivro. A obra foi vencedora do Prêmio Jabuti de melhor obra infantil no ano de 2006. 

O encontro reúne ações voltadas a instituições de ensino engajadas com o fomento e a formação leitora na comunidade. A premissa é envolver todos os protagonistas desse contexto, como alunos, professores e familiares. O autor falará sobre o sucesso literário no gênero infantil, a relevância da leitura na formação dos alunos e vai dividir um pouco do fascinante universo da obra. O Escola Parceira da Leitura já recebeu nomes como Ziraldo, Mauricio de Sousa, Manoel Filho e Ilan Brenman. A estimativa é reunir cerca de mil docentes. 

Além de “Um Garoto Chamado Rorbeto”, Pensador assinou o autobiográfico “Diário Noturno” (2001) e o também infantil, “Meu Pequeno Rubro-Negro” (2008). O premiado trabalho carrega muito da visão ácida tão presente nas canções do músico. Para desenvolver tal criação, o autor nos presenteia com a história de um garoto único. Porém, infelizmente, preso a uma difícil realidade social. 

Contando nos dedos

A obra nos conta a comovente história de Rorbeto, um menino diferente não só pelo nome. Com pouca idade aprendeu muitas coisas sozinho, inclusive a contar os amigos na ponta dos dedos. Temos o pai, a mãe, o cãozinho Filé e mais três amigos. Bem, essa soma parece um pouco estranha. É quando o personagem descobre que tem seis dedos em uma das mãos. A literatura pretendida pelo autor nos faz repensar e refletir: ser diferente não é ruim. Somos todos diferentes, e são essas diferenças que nos fazem especiais, cada um de seu jeito.

Pensador descreve o quanto esse argumento foi decisivo na elaboração da trama. “O tema principal é a aceitação das diferenças. A própria reação do Rorbeto quando ele descobre que tem uma condição física diferente das outras pessoas, serviu para um trabalho abrangente sobre bullying e preconceito. Conheci vítimas de bullying que se expuseram corajosamente em alguns encontros que tivemos. Famílias contaram suas histórias. Trata de respeito e carinho. Fala de amor e a relação da família é importante na história. O ambiente entre os moradores daquela vila. Um ponto decisivo é o momento da alfabetização, esse grande momento na vida escolar que é quando as crianças aprendem a escrever”, divide o autor.

Outro ponto central consta no nome da criança. Ele é Rorbeto. Você não leu errado. A equivocada grafia do nome tem explicação e, infelizmente, segue um roteiro semelhante ao de muitos brasileiros. Foi assim que o pai, analfabeto, pronunciou para o médico na hora do nascimento. O doutor, apressado, anotou. Sem saber ler o que estava escrito, aceitou. 

Entretanto, o “r” trocado de lugar é o menor dos problemas do pequeno. “A família do Rorbeto morava bem escondida, num lugar quase deserto, com chão de terra batida”, descreve Pensador. É família por demais necessitada. Moravam na beira de um rio. “Não tinha nem luz nem gás nas casas do povoado. O banho era de água fria e ninguém ficava esquentado”, rima e denuncia o escritor carioca. 

“Um garoto chamado Rorbeto” foi objeto de estudo na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP). Em 2011, a jornalista e pesquisadora Edna Alencar da Silva concluiu a tese de doutorado intitulada “O Rap Ecoa na Literatura Infantil”.

A autora destaca elementos como a junção entre as linguagens oral e escrita, bem como a hibridização de literatura e música. Tal aspecto é notório na proximidade do rap, arte musical já dominada pelo cantor e construtor da narrativa. “Rorbeto escrita em versos, com palavras destacadas em negrito, sugere uma entonação para o texto narrativo, ou seja, um ritmo específico, o do rap. Outra característica é a composição por meio de frases curtas e palavras de fácil compreensão, assim como nas letras das músicas compostas pelo autor - característica também comum no rap” afere a pesquisadora no estudo. 

O livro foi ilustrado por Daniel Bueno e recebeu o selo de obra Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 2006. Outra conquista da escrita imaginada por Pensador foi a adaptação para o teatro em 2008, com direção de Sura Berditchevsky. 

Recado 

A questão física de Rorbeto, o sexto dedo em uma das mãos, também é passível de interpretação nas pesquisas de Edna Alencar. “O sexto dedo remete ao objeto mágico, próprio dos contos maravilhosos, aquele elemento capaz de atribuir um poder especial a quem o possui. É o sexto dedo que confere a Rorbeto o atributo da heroicidade, ou melhor, dá a ele a possibilidade de transpor um obstáculo e transformar-se em um modelo a ser seguido, posto que, na perspectiva dos colegas, possui algo que lhe dá o poder de realizar a letra mais bonita da sala”, defende. 

A tese de Edna Alencar é fértil por, entre outras razões, iluminar o feito do rap de sair da periferia, chegar ao mundo acadêmico e levar o Prêmio Jabuti. Em contrapartida, atinge a façanha de aproximar um ritmo musical por vezes tão marginalizado da literatura voltada para as crianças.

Já o artigo “Do rap à literatura infantil premiada: ‘Um Garoto Chamado Rorbeto’, de Gabriel O Pensador” (2007), de Nathalia Costa Esteves e Alice Áurea Penteado Martha, desvenda o quanto a simplicidade do enredo e a relação entre tempo e espaço são importantes em textos destinados ao jovem leitor brasileiro. 

A narração em 3ª pessoa, segue a vida de Rorbeto desde o nascimento. A escolha é decisiva à concepção das desventuras testemunhadas pela criança. Uma característica marcante do texto é a decisão do autor em não conduzir a leitura, inserindo assim pontos de vista de um adulto. Uma construção generosa e cuidadosa de como dialogar com o outro.“Pelo contrário, mostra-se bastante neutro e emancipador, ou seja, ele não limita a interpretação do jovem leitor, mas lhe dá espaço para entender o texto como quiser, como seus conhecimentos e sentimentos permitirem”, assumem as pesquisadoras.

Serviço

Lançamento do livro e sessão de autógrafos com Gabriel O Pensador 

Sexta-feira (13), às 19h, na Livraria Leitura do Shopping RioMar (Rua Des. Lauro Nogueira, 1500, Papicu). Será distribuída uma senha por livro “Um Garoto Chamado Rorbeto”, a partir das 17h (total 70 senhas)

Um Garoto Chamado Rorbeto
Gabriel O Pensador
Melhoramentos
2020, 56 páginas
R$ 60,00

Entrevista

Verso: Qual o tema principal de "Um garoto chamado Rorbeto"?

Gabriel O Pensador: É a aceitação das diferenças. A própria reação do Rorbeto quando ele descobre que tem uma condição física diferente das outras pessoas. Serviu para um trabalho abrangente sobre bullying e preconceito. Conheci vítimas de bullying que se expuseram corajosamente em alguns encontros que tivemos, famílias contaram suas histórias. Trata de respeito e carinho. Fala de amor e a relação da família é importante na história. O ambiente entre os moradores daquela vila. Um ponto decisivo é o momento da alfabetização, esse grande momento na vida escolar que é quando as crianças aprendem a escrever.

O papel da professora. Mas, basicamente, é uma obra que fala da aceitação das diferenças. Serve para uma conversa mais ampla entre os adultos e as crianças que leem o livro. Sejam professores ou pais. Tive a sorte de conhecer crianças que tinham a mesma questão física do Rorbeto, que tinham um dedo a mais nas mãos. E uma delas foi numa comunidade do Rio Grande do Sul, em Canoas. Fui visitar junto com uma ONG chamada Canta Brasil, que faz um trabalho com música e dança. Fui de surpresa na escola, eles não sabiam. Reuni todas as crianças numa sala e contei a história.

Tinha uma menina que tinha um dedo a mais em uma das mãos.  Ela veio durante o final da história. Veio orgulhosa mostrar que tinha seis dedos, toda sorridente. Um dos professores da ONG ficou emocionado por que aquilo era um problema para ela. Tinha vergonha e se comportou de maneira oposta depois de ouvir a história.

V: Como tua trajetória musical adentrou o universo do livro? Apontam que hip-hop e a denúncia sociais marcam o texto. Como a linguagem (ou realidade da periferia) se faz presente na publicação? 

GP: O hip hop tem isso, aprendi com as letras de rap a denúncia social, a crítica, o papo reto, mas com poesia. Isso está em mim e naturalmente reconhecível num livro meu 'rimável'. Agora, acho que ele tem muito mais a ver com o repente do que o hip hop. A estrutura da poesia que está no livro, a temática também. é mais brasileira do que estrangeira. Tem outras influências. É uma mistura. Vem do caldeirão das minhas referências que estão na minha alma, na minha maneira de fazer poesias. Vejo mais como um cordel, um repente. 

V: O fato do protagonista ter uma letra fora do lugar já é o fio condutor que explica uma vida marginalizada?

GP: Interessante pensar nisso. As ideias vieram muito espontaneamente. O livro nasceu dessa brincadeira do Rorbeto ter um nome escrito errado. Que foi pronunciado pelo pai que não sabia escrever. Conheço pessoa que tem nomes diferentes, com situações parecidas. Conheci por conta de autógrafos, gente com quem conversei. Mais do que simbolizar, ou marcar uma marginalização, demarca uma pureza e inocência daquela família. Essa marginalização, pode ser estar à margem de um mundo de interesse, falsidade, arrogância, de falsas amizades.

Tem a simplicidade das pessoas, da pureza, é uma inocência que não quer dizer burrice. É uma sabedoria de quem vive nessa batalha, condição de solidariedade, de ajudar um ao outro, uma relação com a natureza que é possível quando se vive no campo, num vilarejo, numa vila de pescadores, que eu tenho oportunidade de visitar a trabalho, quando vou surfar. Observo isso.

V: livro ganhou o selo "Altamente Recomendável - AR-2006", da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Ganhou o Prêmio Jabuti de 2006, como melhor produção infantil. Qual a responsabilidade de quem fala com esse público?

GP: Esse é um peso que nunca me atrapalhou ou assustou, falar para crianças ou jovens.No meu primeiro disco tive essa boa surpresa, as crianças ouvindo também. Eu tinha 19 anos, me sentido os mais adulto possível, falando de dilemas comportamentais e sociais, e eu querendo saber se as crianças estavam entendeo as letras. Recebia cartas, antes do email, instagram. Recebia cartas de crianças falando sobre racismo, pobreza, desigualdade.

V: Hoje, o Rorbeto estaria 15 anos de idade. Qual Brasil seria a casa desse adolescente nos dias atuais?

GP: Interessante pensar no Rorbeto já crescido. Por tudo que ele passou, aquele medo, por ser diferente e depois como seus amigos e ele próprio puderam lidar com isso, de uma maneira natural. Entendo que aquela diferença não significa nada, Ele poderia ser um defensor da igualdade e respeito

Um jovem que usasse seu exemplo como referência para lutar contra o preconceito. No livro falo do Rorbeto mais velho, ensinando seu pai a escrever. Uma cena única no futuro e eu mostro que ele continua sendo muito amoroso e compreensível.