De onde você vem e para onde você vai? É o que costumamos perguntar a quem chega de viagem. Talvez por isso, o título original da série “Origem”, que acabou de estrear no Brasil, seja “From” (traduzindo que dizer “De:”). Simplesmente porque a premissa é a que não existe mais um lugar “para” onde ir.
A sutileza não passa desse detalhe. Já nos primeiros minutos do drama criado por John Griffin, os horrores se mostram muito literais, grotescos. E fica pior nas cenas seguintes, quando entendemos que, além do terror sobrenatural, os personagens estão presos em uma cidade decadente da qual não têm como sair. Um looping angustiante como um pesadelo sem fim .
O cenário decadente, quase claustrofóbico, se resume a poucas casas deterioradas, um antigo motel caindo aos pedaços, uma lanchonete de beira de estrada e carros sucateados no meio do rua. Além disso, só um velho casarão na colina dá sinais de que o lugar um dia já abrigou moradores com uma vida normal. Cercando tudo, há uma enorme floresta de onde, todas as noites, saem criaturas sedentas de sangue.
Apesar da premissa sombria, a série já conquistou uma legião de fãs. Mas não por causa dos sustos, do sangue ou dos monstros. O principal atrativo é a forma inteligente com que os enigmas são construídos e o mistério que cresce a cada episódio. Quando achamos que uma pista nos levará a respostas, o que vemos são mais interrogações sobre acontecimentos bizarros.
Além disso, algumas pessoas presas no vilarejo também vivenciam estranhos Dèjá-vus, premonições e alucinações que só agravam a sensação angustiante de perder a liberdade e a sanidade ao mesmo tempo.
Herdeiros de “Lost”
O roteiro foi feito para um público que gosta de desvendar mistérios ambientados em um lugar inóspito, onde tudo foge ao óbvio. Já vimos esse fenômeno acontecer uma vez, entre 2004 e 2011, quando “Lost” inaugurou uma nova forma de testar a imaginação do espectador. O resultado foi um sucesso mundial e uma série aclamada por milhões de fãs, a despeito de seu final controverso.
A propósito, para quem não sabe, as duas séries, são do mesmo autor. Sim, John Griffin está de volta e disposto a gerar uma nova avalanche de teorias entre os que se dedicam a decifrar códigos, diálogos e detalhes exibidos nos episódios.
No Brasil, “Origem” estreou a primeira temporada, com dez episódios, há poucas semanas. Exibida exclusivamente pela Globoplay, já conseguiu a atenção de fãs (novos e os antigos que ainda sentem falta de “Lost”) e vem movimentando as redes sociais.
“From”
Na gringa, onde começou a ser exibida em 2022 com título de “From”, a série conseguiu unir críticos e público em elogios. Por lá, a segunda temporada já pode ser vista. Por aqui, os próximos episódios estreiam em 2024.
Para se ter uma ideia do sucesso, a produção, assinada pela produtora Epix (leia-se MGM), recebeu nota 7,6 de 10 no site IMDB, com pontos fortes em seu primeiro episódio repleto de mistério e nos episódios que precedem o encerramento da temporada. No Rotten Tomatoes, a série está muito bem avaliada com 96% de aprovação pela crítica e 88% pelo público.
Além da imaginação
Misturando na medida certa o terror e a ficção científica, a história se desenrola em uma cidadezinha que aprisiona qualquer um que chegue. O sinal - para quem cai na armadilha - é a visão de um árvore, caída na estrada. A parada forçada leva a um único atalho, que sempre termina no mesmo lugar, num looping que não tem explicação plausível. Seria um experimento? Uma fenda no espaço/tempo? Obra de extraterrestres? Ou estariam todos em coma ou mortos? Isso é um sonho ruim ou a trágica realidade?
Nesse lugar sem saída, cada dia só pode ser aproveitado ao ar livre, de forma produtiva, entre o nascer e o por do sol. À noite, logo que escurece, a morte bate à porta. Por isso, todo fim de tarde, ouve-se o toque de um sino, avisando de maneira quase fúnebre que é hora de se esconder.
Elenco afiado
A tarefa de tocar o sino cabe ao morador que sustenta a ordem e a lei em meio ao caos, o xerife Boyd Stevens (Harold Perrineau Jr.). O ator, que também fez “Lost”, entrega uma interpretação visceral. Ele é a própria imagem do homem atormentado por tudo que já viu, por sucessivos estados de luto, pela desesperança e pelo peso de sempre tomar as decisões mais difíceis. Em cena, o que vemos é um verdadeiro show de interpretação de Perrineau. É dele o protagonismo absoluto em “Origem”.
O restante do elenco foi escalado sob medida. A maioria já atuou em filmes do gênero (terror / sci-fi) e parecem à vontade com o roteiro e com a proposta de viver personagens à beira do abismo emocional.
Na prática, a trama coloca o medo (dos monstros) como um sentimento secundário diante da exaustão e do desespero que assombra os moradores. Mesmo aqueles que escolhem lidar com tarefas práticas para assegurar a sobrevivência do grupo, dando um aparente ar de normalidade à rotina, mais cedo ou mais tarde, se dão conta de que a salvação pode nunca acontecer. Até porque, as carnificinas não dão trégua.
Descoberta dramática
O espectador embarca nesse drama junto com a família Matthews - a mãe Tabitha (Catalina Sandino Moreno), o pai Jim (Eion Bailey), a filha adolescente Jessica (Hannah Cheramy) e o filho Ethan (Simon Webster). Não bastasse o momento delicado que vivem (o fim iminente do casamento), os quatro fazem a última viagem juntos quando se deparam com a estranha árvore caída na estrada. Agourados por um bando de corvos, eles começam a andar em círculo até que sofrem um acidente de trânsito, faltando poucas horas para anoitecer.
A partir daí, haja nervos. A tensão cresce numa escalada surpreendente. O socorro chega, mas a família nem imagina o risco que corre e como suas vidas mudarão radicalmente.
Não demora até que descubram os horrores que os aguardam e como é difícil viver cercado por incertezas. Primeiro: “por que nós?”. Depois, questões mais complexas: "quem são os monstros" (que se disfarçam de humanos, vestidos ao estilo dos anos 1960)? "De onde eles vêm"? "Como sair desse lugar"? "E por que, mesmo no meio do nada, há energia mas não há forma alguma de comunicação"? "O que é real"? E isso é apenas a ponta do fio interminável de mistérios que se interligam e conduzem a um labirinto cada vez maior, sem sinal de saída.
Simbologia e enigmas
Falando em sinais, eles estão por todo lugar. Nos amuletos usados para evitar que os monstros invadam as casas, nas inscrições em paredes, cavernas e principalmente nos desenhos feitos pelo mais estranho e mais antigo morador da cidade. Victor (Scott McCord), agora com seus 50 e tantos anos, foi tragado quando ainda era criança. Recluso e disfuncional, ele parece saber mais do que consegue dizer.
Deixar muitas questões no ar e garantir as reviravoltas chocantes, incluindo revelações em flasbacks, é o grande trunfo da série. Mas isso não é novidade para quem está acostumado a usar o mistério como matéria-prima. Não por acaso, os produtores executivos Jack Bender e Jeff Pinkner são os mesmos de “Lost”. Além deles, os Irmãos Russo (Anthony e Joseph V) também embarcaram no projeto.
O elenco de “Origem” não economiza em número de participantes. Indica, a julgar pela força dos personagens, que sempre haverá novos caminhos para explorar. Saber de onde vieram, como viviam e o que buscavam sempre pode render bons arcos secundários.
Casa Colônia
Donna (Elizabeth Saunders, de “Orphan Black” e “It: A Coisa”) é uma dessas personagens fortes. Durona e inflexível, ela é a outra liderança da trama. Vivendo no casarão, chamado de Casa Colônia, Donna comanda os moradores, digamos, com espírito mais liberal. Ou seja, aqueles que fumam erva, vivem em contato com a natureza, se permitem fazer festa e transar sem culpa. A casa acaba se tornando uma espécie de grande hostel, ocupado pela galera do "paz e amor".
Ainda assim, Donna tem regras e protocolos a ser seguidos. E que ninguém ouse desobedecê-los. Numa visão mais alargada, vemos a cidade de Boyd e a colônia da Donna como duas formas diferentes de organização social (e política, por que não?) originadas da necessidade de viver com o mínimo de civilidade em meio à falta de perspectivas.
De um lado, os mais conservadores se preocupam demais com o “amanhã”. Do outro, há os que preferem viver intensamente o “hoje”, porque o futuro pode não existir. Difícil não escolher um dos dois lados.
O lugar como um todo, conta com vários personagens interessantes. Recém-chegado, o desenvolvedor de software Jade (David Alpay) não se conforma de ter sido “amaldiçoado” justamente quando vendeu sua empresa e ficou rico.
Seus surtos rivalizam com o transe frequente da sensitiva Sara Myers (Avery Konrad), personagem que tem uma enigmática ligação com quem quer que esteja por trás dos fenômenos. Tem ainda Kenny Liu (Ricky He), o ajudante do xerife e a (quase) médica Kristi (Chloe Van Landschoot) responsável pela clínica improvisada na área. Por fim, não poderia faltar a pessoa de fé. Cabe ao padre Khatri (Shaun Majumder) acompanhar as ovelhas presas na armadilha.
Como em “Lost”, o lugar e os monstros compõem o tabuleiro como peças de xadrez. O importante, no entanto, são os jogadores e como eles traçam estratégias e escolhas. Afinal, na vida real, traumas, perdas e rupturas também podem mudar radicalmente o nosso caminho e levar a fronteiras pra lá de perigosas.