Faz 45 anos que o álbum “Alucinação” vestiu a pele do tempo e entrou para a História. Um dos maiores clássicos do cancioneiro nacional, o disco de Belchior (1946-2017) conquistou uma legião de admiradores e até hoje ressoa por entre acalorados corações. A concretude do que exclama em alta voz reside no presente com ar superior, consolidado por versos como “Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar”, “O passado é uma roupa que não nos serve mais” e “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Fôlego. Presença.
Em sintonia com essa atmosfera, uma iniciativa conterrânea do rapaz latino-americano surge como possibilidade de estender ainda mais o raio de alcance do panorama. A proposta do Sarau Alucinação é reunir poetas e artistas cearenses em outros Estados, no intuito de difundir e promover um intercâmbio com personalidades dessas demais praças. A primeira edição do evento acontece neste sábado (25), no Rio de Janeiro.
Participam dessa estreia da ação 10 nomes: o escritor, crítico de cinema e engenheiro Caio Girão; o poeta e físico Francisco Bento Lustosa; as escritoras e poetas Geísa Salgueiro e Íris Cavalcante; a cantora e compositora Lucinha Menezes; o poeta, roteirista e ator Mano Melo; o músico, violonista e compositor Marcelo Melo; o escritor, diplomata, letrista, compositor e poeta Márcio Catunda; a poeta, advogada, psicanalista e compositora Alana Girão; e a produtora cultural, poeta e curadora literária Marta Pinheiro.
Estas duas últimas foram as idealizadoras da empreitada. Ao Verso, Marta conta que tudo surgiu a partir de Alana Girão, que estava com passagens compradas para o Rio de Janeiro e pensou em realizar um evento por lá – antes disso, inclusive, já havia feito contato com alguns artistas cearenses residentes na capital fluminense. “Nos encontramos em um evento que eu estava produzindo e ela me convidou para vir ao Rio fazer parte do projeto. A partir daí, pensamos nome, conceito, ações e tudo foi ganhando forma”, situa.
A escolha do título do sarau nasceu exatamente em alusão ao segundo álbum do cantor e compositor sobralense. Uma forma de homenageá-lo por ter levado a poesia e a música do Ceará aos quatro cantos do mundo. “Alana pensava na edição Rio, e eu sugeri que essa fosse apenas a primeira de outras edições, fazendo com que o projeto se transformasse em um sarau interestadual”, explica a poeta.
Dito e feito: a próxima parada do evento é Fortaleza, em outubro – mês do aniversário de Belchior. Também haverá uma edição em Sobral, cidade-natal do emblemático artista. Não há nada que impeça a repetição dos participantes desta primeira vez nas próximas realizações, mas a organização pretende inserir novas figuras ao projeto. “Estávamos todos vacinados e sedentos por arte, poesia e pela possibilidade desse reencontro feliz, o que acabou se tornando uma força motriz. Os bons ventos pareciam soprar a nosso favor”, festeja Pinheiro.
Tantas conexões
As linguagens principais do sarau serão música, poesia e um pouco de teatro. Os poemas terão tema livre – alguns, vale ressaltar, são inéditos e foram criados especialmente para a ocasião. No repertório musical, estão Belchior, Pessoal do Ceará e trabalhos autorais, além de composições de poetas e músicos cariocas.
O ponto de culminância do encontro será a publicação de um livro de poesias, a ser escrito por cinco participantes do evento: Alana Girão, Íris Cavalcante, Márcio Catunda, Marta Pinheiro e Mano Melo. De acordo com Marta, esse é um movimento natural, uma vez que, quando muitos artistas se reúnem, é certo nascer uma obra ou minimamente uma parceria, cumprindo o objetivo do projeto.
“Temos plena consciência de que a pandemia ainda não acabou e, por esse motivo escolhemos, um local aberto e arejado para a ação acontecer. Também orientamos que cada participante utilize máscara durante o momento, de modo a diminuir as chances de contágio pela Covid-19. Saliento que todos os integrantes foram vacinados”.
A produtora cultural é fã de Belchior desde muito jovem. Ela produziu os eventos do Projeto Belchior Sete Zero com o também produtor Rogers Tabosa, a convite do escritor Ricardo Kelmer – idealizador da empreitada em questão. Participaram dessa ação aproximadamente 30 artistas, entre escritores, músicos, dramaturgos e produtores. “Foi um mês de festa. O projeto contava com apresentações musicais, um monólogo e houve o lançamento de um livro com textos sobre as músicas do Bel”, recorda.
À época, a estreia da iniciativa aconteceu no palco principal do Theatro José de Alencar, com direito a casa cheia. Em seguida, os participantes circularam em quase todos os equipamentos culturais do Ceará, difundindo o vigor de uma poética eterna. “Posso afirmar com veemência que o rapaz latino americano nos convidou, sim, a outros olhares sobre a vida e o mundo, tanto pelas letras das músicas como pela vida que decidiu levar. Um gênio!”.
Estreito contato
Semelhante reverência pode ser encontrada na fala e no semblante de Lucinha Menezes. A cantora e compositora afirma que Belchior sempre esteve presente em sua carreira, agindo como sinônimo de presença e novidade. “Conheço-o desde menina. Ainda adolescente, cantei pela primeira vez em público uma canção dele. Foi no Festival da Música Cearense, em 1968. Ah, o tempo…”, suspira a artista.
Naquele dia, Lucinha interpretou “Espacial”, o que garantiu a ela o quinto lugar no evento. “Ele nem cantava em público. Fazia medicina com meu irmão. O meu primeiro disco, um vinil feito em 1991, foi todo feito por ele junto comigo. Lado A, as músicas dele; lado B, as do Fagner. Tenho muita história para contar sobre o Belchior”, sublinha.
Outro fato interessante do enlace entre os dois é que a música “Paralelas” foi composta pelo mestre em um logradouro da Avenida Bezerra de Menezes, quando saía da casa da mãe de Lucinha em direção à dele. “Pela manhã, no outro dia, ele ligou lá pra casa e cantou a canção no telefone. Veja que privilégio o meu: ouvi pela primeira vez essa pérola da MPB”.
Por isso mesmo, a artista – com sete discos gravados, já tendo estabelecido conexões com figuras do calibre de Chico Buarque e Adriana Calcanhotto – comemora a realização do Sarau Alucinação. Para ela, é bastante importante a reunião de amigos a fim de celebrar a arte de nosso chão. No evento, ela vai cantar algumas criações do próprio repertório.
“A produção artística no nosso Ceará atualmente é muito boa. Mesmo morando aqui no Rio de Janeiro há 19 anos, estou atenta ao que acontece aí. Adoro fazer shows na nossa terra. Nossa música é muito rica. Quanto ao Sarau, achei uma maravilha! Estou muito honrada por ter sido convidada. Muito bom esse caminho espalhando nossa arte para outras terras”.
Caminhos da sensibilidade
O escritor, diplomata, letrista, compositor e poeta Márcio Catunda igualmente enxerga com satisfação a concretização da empreitada. Na visão dele, a poesia é a linguagem de nosso mais alto sentimento. “Os seres humanos só podem ser redimidos pela sensibilidade. Belchior, nosso menestrel, é um ícone da poesia e da sensibilidade. Representa a religação da poesia com a música, como existiu nas origens. O Verbo se fez Vida e da vida nasceu a palavra, a melodia e o ritmo que a afirmam, ou o silêncio e o som nos quais ela se firma”.
Ele situa que o País e o mundo estão “desesperados”, sempre sedentos de cultura. Uma ação aos moldes da que vai se realizar, com poesia e música, é uma epifania, “um sacrifício aos numes dos nomes das coisas e dos seres”. “Vamos celebrar a magnitude desse Magnificat”, vibra.
Neste sábado, Catunda apresentará seus poemas mais recentes. As criações significam o resgate do momento atual, constituindo uma tentativa de registrar a intensidade de todo o conhecimento acumulado até então. As incursões são fruto do que o artista vem estudando há algum tempo; temas do que se costuma chamar de espiritualidade. “Acredito inclusive que esse assunto do ‘religar’ o indivíduo com o cosmos inclui toda a busca do autoconhecimento, inerente à condição humana”.
Referenciando o Ceará como um solo que bem desempenha a missão de carregar o facho da verdade e da beleza que grandes nomes nos legaram – a exemplo de José de Alencar (1829-1877), Rachel de Queiroz (1910-2003), José Albano (1882-1923) e José Alcides Pinto (1923-2008) – o poeta destaca que o sarau é uma prática ritualística da maior importância, tendo em vista que os artistas itinerantes têm o privilégio de levar a outros espaços a ampla mensagem da arte, que não deve nem pode se restringir a fronteiras de qualquer natureza.
“Acreditamos que o sarau nos proporcionará momentos de confraternização e comunhão de sentimentos e expressões. Certamente, a realização de um espetáculo de bom nível deixa uma repercussão dinâmica na memória das pessoas. Creio, inclusive, que o momento atual requer exatamente esse tipo de atitude. A reaproximação das pessoas com uma nova consciência da responsabilidade por si e pelo outro e a certeza de que necessitamos sempre de ocasiões em que possamos interagir e compartilhar bons sentimentos”.
Serviço
Sarau Alucinação
Neste sábado (25), às 18h, no Restaurante Gratini (Av. Borges de Medeiros, 1424, Shopping Lagoon, Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro)