Belchior, Fagner, Ednardo e Fausto Nilo eram jovens de 20 e poucos anos - Augusto Pontes já ia na casa dos 30 -, compondo canções em apartamentos do Rio de Janeiro e de São Paulo, quando “Fim do Mundo”, “Baião de Dois Vinte e Dois”, "Alazão", “Adivinha'', “Outras Constelações”, “Bip... Bip...” e “Posto em Sossego” vieram ao mundo.
Até hoje sem gravação, as sete letras, recém encontradas pelo pesquisador Renato Vieira nos arquivos da Ditadura Militar, resgatam os primeiros passos musicais desses cearenses que, anos mais tarde, assinariam outras parcerias de sucesso no mercado nacional.
“Nesse tempo, eu estava praticamente começando a fazer letra de música. Eles já tinham mais experiência do que eu. Esse é o período de preparação pra coisa profissional, é o início, mas não sei se essas músicas foram pra censura com objetivo de gravar”, introduz Fausto, que assina “Baião de Dois Vinte e Dois”, com Belchior, e “Alazão”, com Fagner fechando o trio.
À época professor na Universidade de Brasília, o arquiteto e compositor visitava os colegas com frequência no Rio de Janeiro, e recorda de alguns improvisos.
“Eu, Fagner e Belchior fizemos algumas músicas ao vivo, os três cantando e anotando. Entre elas, uma foi gravada pelo Fagner no disco 'Orós' (1977). ‘Romanza’ também é dessa etapa, mas foi pra frente”, afirma Fausto Nilo.
De “Alazão”, ele pouco tem lembranças. E Fagner, consultado mais cedo, disse ainda estar se informando sobre o teor dos achados, não voltando a comentar até o fechamento desta matéria.
“Baião de Dois Vinte e Dois”, porém, tem outra história. Até hoje, Fausto ainda arrisca a melodia do refrão. “Gioconda, Gioconda me acuda…”, insiste com a memória pelo telefone, explicando que o nome da mulher é uma referência a imigrantes italianos que tomavam conta dos cafezais paulistas.
“Nesse período, a gente tinha umas ideias de misturar coisa popular com preocupações intelectuais. Aquela letra do 'Baião de Dois Vinte e Dois' é uma espécie de brincadeira com a Semana de 22 de São Paulo. A gente tinha noção do que houve na Padaria Espiritual, uma coisa de vanguarda, aí a gente ironizava com a Semana de 22”, pontua Fausto.
Na visão do compositor, tais canções inéditas foram “meio esquecidas”, o que explicaria o fato de não terem sido gravadas mesmo com a autorização da Divisão de Censura de Diversões Públicas.
"Esquecemos, veio tanta coisa depois… Comparado com o que desenvolvemos mais tarde, essas canções ainda são meio ingênuas em relação ao âmbito das expressões populares. Eu acho que elas correspondem a um período quase primitivo do desenvolvimento do trabalho da gente”, analisa Fausto.
Bip... Bip… em novo disco de Ednardo
Mas nem tudo ficou para trás. O José Eduardo (sic) Soares Costa Sousa que aparece assinando a composição “Bip...Bip…” com Belchior, é, na verdade, Ednardo, e ele já está com esta canção quase finalizada para lançar ainda em 2021, adiantando o disco de inéditas que prepara desde 2018.
“Já estão gravados voz, teclados, guitarra, mas em processo de complementação de instrumentos. De setembro para outubro talvez esteja pronta. Essa coisa de pandemia, tudo atrasa. Estou sem poder me reunir nos estúdios, aí cada um manda uma parte, é mais trabalhoso. Mas nesse final de ano estaremos com isso pronto. Inicialmente, lançarei duas músicas, e uma delas é essa parceria com Bel”, garante o cearense.
Ednardo lembra alguns detalhes importantes desse trabalho. O primeiro é que ele e o parceiro subiram em 1972 no palco do Maracanãzinho, no VII Festival Internacional da Canção, para interpretá-lo.
“A Rede Globo gravou, foi a primeira transmissão a cores da TV do Brasil, mas com o incêndio na década de 70, perderam-se as fitas e esse registro, que tava lindo, maravilhoso. A música quem fez fui eu, ele fez a letra. Como a gente foi pego de última hora para ir ao Rio de Janeiro interpretar no Maracanãzinho, ele tava pouco a vontade pra cantar toda, aí eu cantei uns trechos, ele outros, e o Cláudio Ornellas cantou junto com a gente, nós três no palco”, descreve Ednardo.
A canção foi apresentada nas eliminatórias do festival, mas não chegou a figurar entre as finalistas.
Driblando a “tesoura da repressão”
Outra curiosidade partilhada por Ednardo é que o título original da música era outro. “Passamos um tempo vivendo na mesma casa em São Paulo, foi quando fiz 'Bip...Bip…'. 'Eletricor' era o nome original dessa música e depois mudamos para 'Bip...Bip…', que era um sinal emitido pelo primeiro satélite artificial que o homem colocou no espaço, o Sputnik”, descreve.
“A censura andou cismando um pouquinho, porque uma parte da letra falava: ‘Leste - Sul - sorte - Nordeste - Morte ao vivo e ao natural’. Aí eles questionaram: ‘Quer dizer que o Pessoal do Ceará, do Nordeste tá tudo morrendo?’. Aí eu falei: 'De fome, de seca, de miséria tá, né?'. Mas aí eles cismaram, a gente mudou o título e passou na censura”, conta Ednardo.
De acordo com o cearense, um dos motivos para o “esquecimento” dessas canções ao longo das últimas cinco décadas foi a grande quantidade de músicas que vieram depois.
“Quando iniciamos as gravações, tínhamos uma quantidade absurda de músicas prontas. Ao mesmo tempo, um disco naquele tempo tinha espaço muito limitado, 10 a 12 faixas em cada, e a gente gravava um anualmente. Tinha que arranjar um jeito de caber aquelas músicas que estávamos fazendo e, quando ia se escolher, tinha que filtrar de 40, 50. Forçosamente algumas ficavam de fora, embora tão legais quanto”, reconhece.
Ele não nega, porém, que essa também fosse uma estratégia para burlar a censura federal. “A tesoura da repressão não era fácil. Uma música inocente como ‘Terral’ foi proibida porque tinha aquela frase ‘na praia fazendo amor’ e o censor achava que não podia fazer amor na praia”, recorda o compositor sobre uma de suas canções posteriormente liberada e que hoje figura entre as mais conhecidas da discografia.
Manuscritos de Belchior
O piauiense Jorge Mello, parceiro de longa data de Belchior, e com o qual o cearense fez sociedade na gravadora Paraíso Discos (1980-1995), também aposta que a não gravação destas canções inéditas tenha a ver com o filtro mencionado por Ednardo.
Ele mesmo guarda em seu acervo, num sítio localizado em São Paulo, outras quatro composições de Belchior manuscritas daquele período, de 1968.
São elas “Cateretê”, de 16 de junho; “O bailinho da ironia”, de 20 de agosto; “Espacial”, de 27 de agosto (única delas gravada por Belchior, no disco “Era uma vez o homem e seu tempo”, de 1979); e “Pobre rima, pobrezinha”, assinada um pouco antes, em 19 de março, por um “Bel Chior” de 21 anos e numerada como a letra número 28 de sua autoria.
Os manuscritos lhes foram entregues pelo irmão, Emanuel Carvalho, que era colega de Medicina de Belchior, ganhou as letras de presente, e foi o responsável por apresentar os parceiros musicais. Mas após a morte do cantor, em 2017, Jorge entregou os documentos aos filhos dele, permanecendo apenas com as cópias autenticadas.
“Aí você me pergunta, o que que terá acontecido? Por que ele não gravou? Eu acho que é uma estratégia de trabalho, e deu certo. Isso eu considero uma coisa puramente corriqueira. Esteticamente, ele achou outro caminho. Ele se desligou, digamos assim, do interesse por essas obras mais regionalizadas ou com assuntos mais ligados à origem, à terra ou à primeira safra dele, e não foram aproveitados, né?”, opina.
“Este repertório foi ficando e está comigo guardado em gavetas, em pastas e eu tenho todas, são canções lindas, textos interessantíssimos”, finaliza Jorge, certo de que ainda há muito a se descobrir sobre o eterno rapaz latino americano.