Filho mais velho de uma modesta família do interior baiano, José Walter Pires estudou em Salvador desde o Ginásio, como eram chamados os últimos anos do Ensino Fundamental. Morava num casarão de pensionato com cerca de 30 rapazes, todos também oriundos de municípios distantes da Capital. Em certo período, o espaço também passou a acolher aquele que faria a alegria de todos pela presença iluminada e indisfarçável irreverência. Era Moraes Moreira.
“Ele me deu muito trabalho com Luís Galvão (um dos integrantes do Novos Baianos) por conta da desarrumação do quarto. Luís sorria esfarofado (daí o apelido de Farofa) e Moraes me chamava de ‘especial’, para delírio da galera”, recorda José, irmão de Moraes. O sociólogo, advogado, professor e escritor foi o responsável por ter acolhido Moreira em Salvador, levando-o a conhecer os espaços universitários e culturais da cidade.
Ali se iniciava uma bonita e inesquecível trajetória de entrega às artes, sobretudo à música e literatura, além de um sem número de reconhecimentos pela singular qualidade impressa em cada trabalho do baiano.
Minúcias desse processo de surgimento e glória da carreira do cantor e compositor – falecido no último dia 13, em decorrência de um infarto enquanto dormia, no Rio de Janeiro – são recuperados na biografia “Moraes Moreira - De cantor para cantador”, escrita por José Walter Pires e o cordelista e jornalista potiguar Crispiniano Neto. A obra tem previsão de ser publicada neste ano.
A responsabilidade de trazer o livro à tona ficou com uma casa editorial cearense. A Imeph assume o projeto, da mesma maneira que esteve à frente de outra publicação de Moraes, o cordel “A história dos Novos Baianos”, lançado em 2018.
A editora também publicará outros dois livros, estes de autoria do artista: "A Lenda do Pégasus", infantil, de co-autoria de Jorge Mautner e ilustrado por Silvana Menezes, artista de Minas Gerais; e outro, ainda sem título, com poemas selecionados pelo cantor.
As obras não têm previsão de lançamento, pois dependem de uma conversa com a família de Moraes para serem concretizadas. Idealizadora da Imeph, Lucinda Marques, contudo, já adianta: "Poder publicar a biografia de Moraes em vida já era uma honra; agora, é uma missão".
Pormenores
José Walter Pires recorda dos primeiros passos para a concepção da biografia. Ele conta que, em 2018, após a Bienal do Livro de São Paulo, quando foi lançado o cordel “A história dos Novos Baianos”, Lucinda Marques propôs a Crispiniano Neto a tarefa de fazer um levantamento de informações e consequente início da escrita do material.
“Em dado momento, Crispiniano começou a me enviar perguntas e, além de respondê-las, mandei outros documentos do meu arquivo sobre Moraes”, afirma José. “Entendo que a minha presença na escrita biográfica poderá emprestar mais fidelidade ao texto com as informações desejadas. Na verdade, conheço detalhes da vida dele que a mídia desconhece, não só do lado profissional, como familiar. Isso pode atrair os leitores, sobretudo na Bahia, onde sou muito conhecido. O desafio é exatamente o de compor uma obra fidedigna e interessante em todos os sentidos”.
Nascimento, infância, os estudos iniciais em Ituaçu, cidade-natal de Moreira, além da mudança para Salvador e os fortuitos encontros artísticos do músico, são retomados no livro. O cordelista e jornalista Crispiniano Neto detalha: “Sem dúvidas, os dois momentos mais ricos da sua vida dizem respeito à formação dos Novos Baianos e parceria com Armandinho, Dodô e Osmar, dando voz ao Trio Elétrico. Mas o papel do nosso livro é mostrar que Moraes foi grande em todos os momentos da vida de artista e ser humano ímpar”.
Convivência
O irmão do cantor confirma a distinção de Moreira, explicando ainda que o artista vivenciou três fases: infância e parte da adolescência no interior da Bahia, ao lado da família; depois, em Salvador, onde começou a dar os primeiros passos na carreira; e quando, por fim, arrogou-se para o Rio de Janeiro, a fim de tentar a brilhante vida profissional.
“O resto, todos sabem: vem o ‘Novos Baianos’, que foi o grupo de melhor qualidade musical até hoje no Brasil, e os desdobramentos dele”.
José lembra de um Moraes bastante peralta quando criança e engraçado na juventude, período em que iniciou o desenvolvimento dos dotes musicais – primeiro com a sanfona e depois com o violão.
“Na última vez que ele me ligou, na Sexta-feira Santa (10), conversamos por quase uma hora sobre muitas coisas. Me perguntou exatamente sobre a infância, como começou a tocar violão. Estava bem, em isolamento, e não tinha histórico de cardiopatia. Tinha muitos planos e vontade de viver por muitos anos”, conta.
Não à toa, afirma “não ter morrido por pouco” quando soube do falecimento de Moraes Moreira. “Foi meu filho que chegou perto de mim e me disse a notícia ruim. Levantei-me de estupefato. Liguei para minha irmã e dela só ouvi o choro convulsivo”, recorda.
“O legado dele é imenso, vasto, verdadeiro, original. De uma versatilidade impressionante ao navegar, com competência musical e literária, por todos os estilos, a ponto de merecer em vida e depois da morte as mais bonitas homenagens. Terei muito mais a fazer. Tinha projetos. Deixa muitas canções novas, inéditas. Tinha agenda cheia e, no meu último aniversário, mandou parabéns e a certeza de que comemoraríamos muitos outros. Meu irmão era meu irmão, mensageiro da alegria, como todos o conheceram”.
Crispiniano Neto também menciona que, para a obra, procurou se portar como um pesquisador, diferentemente de como procedeu em biografias que fez em cordel, como a de Joaquim Nabuco, Barão do Rio Branco, Alexandre de Gusmão, Rui Barbosa, Delmiro Gouveia e outros. E, no posto de cordelista, deixa claro que Moraes Moreira foi um aprendiz super-rápido nessa linguagem que por último se dedicou.
“Isso em função de ele já ser um grande poeta quando começou. Sua poesia nas letras das canções é de inspiração modernista, mas o compromisso com o conhecimento das nossas raízes culturais, como o fez com os ritmos, o levou a se dedicar à Literatura de Cordel”, explica.
“O último trabalho dele em cordel foi sobre o coronavírus, como quase todos os poetas deste gênero textual, que costumam cantar o que chamamos de “acontecidos”, que é o veio nunca perdido do ‘jornalismo em versos’”.
Bom humor
Amiga de Moraes, Lucinda Marques igualmente ajuda a endossar o panorama de olhares sobre o artista. Longe dos palcos, ela conta que Moraes era uma pessoa simples, brincalhona, amigo e um grande poeta, respirava poesia.
"Recebi a notícia da morte dele com muita tristeza. Na hora, fiquei em choque porque a última vez em que ele esteve em Fortaleza foi em outubro do ano passado, na oportunidade de um show num shopping. Combinamos que ele viria passar uns dias conosco para fecharmos a biografia. Além dos livros, tínhamos vários projetos. Ele amava o Ceará e falava em passar uns tempos aqui, participando de apresentações e eventos".
Para a idealizadora da Imeph, dentre tantos atributos do baiano, a ousadia e inteligência de mesclar gêneros musicais foi um dos maiores trunfos. Soube dosar a tradição do forró, frevo, samba e a baianidade. O verdadeiro axé com o rock e a modernidade.
“Após a sua morte, acredito que a curiosidade acerca de Moraes vai aumentar, visto que seu sucesso já vem de muitas gerações e a tendência é continuar", situa. “Ele permanecerá sempre vivo entre nós, pois deixa sua essência nos mais de 40 discos, 400 músicas, inúmeros carnavais e poemas de cordéis que adorava declamar nos shows, entre as canções”.
Da parte de José Walter Pires, ainda não se sabe nada a respeito de produções inéditas de Moraes Moreira além das que já estavam em andamento. “Familiares cuidarão de tudo no tempo certo”, diz. Até lá, fica nele a incógnita sobre o que esperar do alcance da biografia do irmão. “Não sei. O nosso mercado literário anda cambaleante. Poucos leem. Vamos torcer para ser best-seller”.