Aos 86 anos, o mestre pernambucano J.Borges, ao qual Ariano Suassuna se referiu como o melhor gravador popular do Nordeste, “não gosta nem quer quebrar cabeça com internet”. É o que diz o filho Pablo, via WhatsApp, após ser questionado sobre a mais recente polêmica no mundo da moda: afinal, a marca britânica Alexander McQueen se “apropriou” da xilogravura brasileira, e especificamente do trabalho desse nordestino em sua nova coleção ou não?
Apesar da resistência ao ambiente virtual, saber que seu nome estava sendo associado ao debate em questão, fez com que J.Borges solicitasse uma resposta pública. “Ele disse que a gente postasse alguma coisa referente a essa confusão. Já estamos trabalhando nisso”, conta Pablo, que ajuda a administrar a página @memorialjborges no Instagram, com mais de 18,7 mil seguidores.
Ao Diário do Nordeste, o filho adiantou com exclusividade a posição da família: “Eu dei uma olhada bem detalhada e vi que não tem nada dele. Ainda arrisco em dizer que é a mesma técnica da xilogravura, porém não é da gente”.
A coleção Pré-Fall 2021, assinada por Sarah Burton, é apresentada com economia de palavras no site da marca: “Um foco contínuo na silhueta. Cores saturadas, estampas de papéis cortados e híbridos. Um estudo do vestuário e do personagem: retratos”.
Igualmente no Instagram, o vestido mais criticado pelos consumidores brasileiros, que identificaram semelhanças entre a peça e as xilogravuras do Nordeste, não faz referência a essa suposta influência. A grife tampouco se pronunciou sobre o caso até agora.
Moda e referências
Para a estilista e professora universitária Renata Santiago, a coleção apresenta dicotomias e contrastes próprios da identidade da marca.
Alexander, o enfant terrible criador da marca, era um defensor ferrenho de suas origens escocesas e inglesas. Suas referências sempre beberam no passado europeu medieval apresentando formas híbridas que contrapõem o formal e o informal, a simplicidade e a opulência das formas e a união contrastante de tradições culturais”, contextualiza.
Renata não acredita que as estampas possam ser comparadas com as xilogravuras do Nordeste brasileiro ou que se esteja diante de um caso de apropriação cultural. “Muitos críticos fizeram, inclusive, referência das estampas com o trabalho de Matisse. Percebamos como a fronteira da leitura de inspiração na moda e na arte é tênue”, diz.
Ainda assim, a estilista entende que as técnicas da estamparia lembram a estética do cordel, mas também remontam às origens chinesas da xilogravura que nos levam ao século VI. “No ocidente, ela já se afirma durante a Idade Média, época sempre revisitada pela marca Alexander McQueen”, pontua.
E, neste sentido, Renata ressalta que a direção criativa da marca descreveu as estampas como Papercut (técnica artística de corte em papel) de símbolos utilizados amplamente na cultura britânica. “O pássaro, o coração e os demais elementos presentes na coleção já fazem parte do imaginário da marca há anos”, recupera.
Apropriação cultural
Não é de hoje que o universo da moda discute o conceito de apropriação cultural. Ano passado, inclusive, a grife italiana Prada foi acusada do mesmo ao postar uma das sandálias da coleção de verão em suas redes sociais.
Com acabamentos trançados de couro e palha, a peça recebeu inúmeras críticas pela semelhança com os calçados artesanais vendidos nas feiras nordestinas.
Em 2019, como lembra a estilista Renata Santiago, Wes Gordon, diretor criativo da marca Carolina Herrera, utilizou bordados e padrões de povos nativos do México sem transferência de royalties ou qualquer referência cultural às comunidades de Oaxaca e de Tenango de Doria, local de origem dos grafismos aplicados.
De acordo com o antropólogo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Kleyton Rattes, nem toda relação de troca precisa ser pensada em termos de apropriação, mas quando as relações entre esses grupos envolve a questão capitalista, por exemplo, elas passam a ter definições que se ligam a ideia de apropriação com uma noção de propriedade, ou seja de que há direitos e deveres, e direitos que são assegurados.
Essa ideia de posse precisa ser regulada de modo a garantir que os direitos à propriedade sejam explícitos e não alienados, tirados da posse ou de alguma forma expropriados”, diz.
Patrimônio da humanidade
Apesar de não acompanhar o histórico da grife Alexander McQueen, em uma primeira análise o antropólogo entende que a coleção lembra uma bricolagem de múltiplas referências.
Talvez, caiba sim a gente dizer de uma apropriação que expropria, mas não que esteja expropriando uma coisa específica, e sim uma coisa especificamente generalizada”, explica.
Na interpretação do pesquisador, a estampa mistura várias “referências” como se fossem coisas que estão ali “disponíveis para se inspirar, patrimônio da humanidade”. E, quanto a essa proposta, ele é crítico.
“É interessante perceber como essa ideia de inspiração é muito usada como maneira de fugir um pouco de certa responsabilidade ética, de pesquisa e de ser consequente com as trocas que estão sendo estabelecidas. Não cabe essa ideia de patrimônio da humanidade, ou de acesso livre, direito livre, porque são pessoas que estão comercializando de maneira muito direta estas obras. Então nessa troca, que é uma apropriação com regime de propriedade, há uma necessidade que é ética, como também de mercado, disso ser equacionado de maneira minimamente simétrica entre as partes envolvidas”, argumenta.
Seja na cadeira da sala de aula, no caso dos profissionais de moda em formação, ou no mercado, como quem produz e quem consome, o fato é que a discussão não acaba aqui.
Um ponto importante no conceito de apropriação cultural é promover a conscientização e não o apagamento cultural, além de promover um retorno financeiro à cultura que se faz referência. A Moda tem o poder único de aproximar culturas e gerar diálogos diversos quebrando estereótipos e polarizações, que tal buscarmos essa faceta do sistema?”.