Aos 32 anos, Dalgo Silva pode bater no peito e dizer que realizou travessia bonita: da Região Metropolitana de Fortaleza para o Olimpo da Literatura Brasileira. Natural de Tabatinga, distrito do município de Maranguape, ele foi finalista na categoria “Escritor Estreante - Poesia” no Prêmio Jabuti 2024, o maior da seara editorial do País.
Segundo o poeta, receber a notícia de que estava na final resume-se a uma cena. “Cheguei pra minha mãe e disse: ‘Mãe, nosso livro tá na final do Jabuti’. Ela: ‘O que é isso?’. Eu: ‘Os poemas que falam sobre os gatinhos da mãe e sobre o idioleto que a senhora inventou pra falar com eles estão sendo lidos por gente doutora em Literatura do Sudeste”, conta ao Verso.
O destaque a esse diálogo deve-se porque o livro que o levou à conquista – “Meu amor é político”, publicado pela Cepe Editora – é uma ode à Língua Portuguesa aprendida pelo cearense com a própria mãe. Não à toa, ele considera ser o Português a língua materna, mas não por ser a língua de berço: foi aquela que as mães da mãe dele forjaram durante séculos.
“Isso é sofisticação da linguagem. Falar ‘vrido’, ‘pra mode’ e ‘ispilicute’ é entrar em um circuito de sofisticação da língua, da mesma língua que usaram para estrangular a língua dos indígenas e dos que vieram de África. Fazer poesia brasileira, nordestina, cearense, é estrangular a língua de volta. Como diria Manoel de Barros, é delirar o verbo português”.
Dentre tantos outros temas e possibilidades, “Meu amor é político” é sobre isso. A obra apresenta uma antologia do cotidiano de Dalgo e daqueles de quem o poeta encontra – desde o quintal da casa da mãe, das cachoeiras de Maranguape e das memórias de infância, até Fortaleza, com os desafios e possibilidades que uma Capital apresenta.
No ato da escrita, munido de tais inspirações, o maranguapense fez uma espécie de inventário desses “desenhos poéticos” e enviou para o VII Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Ganhou na categoria Poesia. Na sequência, veio o Jabuti.
“Esse livro é um compêndio de olhares para problemas sociais, como homofobia, conflitos de classe, violência, desigualdades, racismo e misoginia. Não é um tratado sobre essas questões, porém. Grandes poetas, como a Adélia Prado, ensinaram-me a olhar com cuidado, sensibilidade e ferocidade para uma coisa que todo mundo tem: cotidiano”.
Como tudo começou
Psicólogo por formação, Dalgo iniciou na poesia assim: observando. Ele se interessa em fazer versos sobre o que aparentemente “não presta”, tal qual algumas das maiores inspirações, a exemplo do já citado Manoel de Barros e de Ferreira Gullar.
“Se, para Gullar, o preço do feijão não cabia no poema – e compreendo que aí ele tá fazendo uma crítica – no meu texto reivindico colocar o preço da passagem de ônibus. Aqui é o pessoal sendo político”, sustenta.
A própria intimidade e o modo de ele amar também são questões que o colocam em comunhão com outros, algo alimentado desde a infância. Recorda de se debruçar sobre poemas nos livros didáticos de Língua Portuguesa e achar engraçado um texto com musicalidade e formato específicos – aparentemente feitos para não serem compreendidos.
“Eu brincava com aquilo. Fingia compreender. Brincava com o poema, lendo-o como se tivesse a chave capaz de desvendar seu mistério. Anos depois, comecei a usar o poema para ‘fingir’ que desvendaria os mistérios do mundo. Foi quando comecei a escrever. Mas eu continuava brincando”.
E segue até hoje – sucedendo a escrita de tantos artigos de livros e científicos, monografia e dissertação de mestrado. Não à toa, quando perguntam o porquê de ele ter escolhido a poesia para tocar no mistério, ele responde que não a elegeu de pronto. Tentou escrever mini-novelas, contos e crônicas. Mas foram os poemas que perduraram. “Não acho que seja fácil escrever poesia. Um texto com verso nem sempre é um poema”, analisa.
“Acho que o poema vem de uma sofisticação da linguagem. E quando falo em sofisticação, não estou falando em eruditismo. Sofisticado para mim é conseguir fazer coexistir a palavra que grandes literatos usaram com as palavras que bolam no cotidiano. As palavras que pegam ônibus, filas, pagam contas, também partem de uma sofisticação da linguagem. Até mesmo porque os grandes literatos não eram e nem são deuses, eles também precisaram e precisam da palavra que a Dona Maria usa para vender café e tapioca na banquinha da rua”.
A chave sobre ser poeta, por sua vez, só virou de verdade quando encontrou outras pessoas, e elas diziam a si mesmas: “Sou poeta”. O efeito no íntimo foi gigantesco. “Ali entendi que poeta não era mais apenas o do livro didático, o inacessível. Poeta era o jovem que eu encontrava nas extensões universitárias, nos saraus que se espraiam pelas periferias da cidade de Fortaleza. O e a poeta viraram meus amigos”.
O que mudou com o Jabuti
Dalgo não sabe mencionar o que mudou após estar na final do Prêmio Jabuti. Mas com certeza o grandioso passo está lhe ajudando a ser lido, um dos principais objetivos da vida. “Se quero ser lido, acabo criando a necessidade de escrever mais”, situa.
Na honraria, ele dividiu a categoria com Arnaldo Júlio Barbosa, Matheus Rodrigues Gonçalves, Leo Nunes e Bianca Monteiro Garcia – esta vencedora do prêmio com a obra “Breve ato de descascar laranjas”, da Macabéa Edições e 7 Letras.
“Ter ido para a final do Jabuti com escritores que admiro tanto me lembra que vale muito a pena. A pena de quem escreve vale muito. É com ela que invento mundos e aponto outros que não quero viver. Não consigo dimensionar nem a alegria de ter estado lá, de ter representado a minha cidade, que aparece no meu livro, de ter representado o meu Estado, que amo tanto. Meu livro tem nacionalidade, é do meu país Ceará. É de Brasil com S”.
Também é dos becos, dos quintais, das cachoeiras e das praias. Tem manga, caju, murici, menino e menina correndo para lá e para cá soltando raia. Por outro lado, não esconde as desigualdades que os assolam. É poesia das margens, feita a partir daí – e, quando fala de margem, Dalgo fala de território, sexualidade e classe. Logo, entram em desfile versos periféricos, de pessoas LGBTQIA+ e da classe trabalhadora, pobre.
“Quero que minha personagem do poema que abre o livro, Víada, entre na casa de todo mundo. Se Madame Bovary entra na minha casa, porque Víada não poderia entrar em palacetes e salões luxuosos? Quero fazer que nem o nosso saudoso Patativa do Assaré: continuar cantando daqui, gorjeando dores e amores como a jandaia. Cantando daqui, mas também sendo lido de lá”.
No que depender dele, a estrada continuará, infinda. Dalgo finalizou há alguns dias um segundo livro, ainda sem previsão para publicação – depende de editora para ganhar praças. E seguirá escrevendo. Numa rápida autoavaliação, acredita que amadureceu bastante nesta segunda obra, mas quer ver o que o público achará.
“Acredito que ‘Meu amor é político’ tenha ido para a final do Jabuti porque, assim como outros textos cearenses, ele consegue trabalhar muito bem o dispositivo linguagem. Os cearenses são artífices da palavra. Belchior não deixa eu mentir. É um livro que não foi feito para celebrar um lirismo que não pretende melhorar a vida. Por isso que, nele, o amor é político. Quero um amor que torne a vida melhor, em comunhão com a coletividade”.