Chilves é negro, semianalfabeto, crescido num lixão, catador de papel, vidro e lata. Sonha em promover a Revolução. Jéssica, cracuda e grávida aos 14, quer reencontrar a mãe. Zélia vive em um cemitério e deseja furar os olhos do assassino do filho. Glenda, collant de oncinha, almeja ser feliz como Glenda, e não como Weverton, nome de batismo.
Tão fragmentados quanto excluídos, esses personagens se embaralham na narrativa de “Menos que um”. O novo romance da escritora paulistana Patrícia Melo ganha lançamento em Fortaleza nesta sexta-feira (24), na Livraria Coração Selvagem, a partir das 19h. Haverá sessão de autógrafos e bate-papo com a cearense Socorro Acioli.
Ao Verso, Patrícia conta que a inspiração para a obra foi o panorama atual do país. Segundo ela – residente na Suíça – o Brasil vive um dos momentos mais trágicos, com desmonte de políticas públicas, alto índice de desemprego e uma enorme população sem segurança alimentar. “Foi este Brasil miserável, triste, racista, violento que me fez escrever o livro”.
Autora de títulos incontornáveis da ficção contemporânea – a exemplo de “Elogio da mentira” (1998), “Valsa Negra” (2003) e “Mulheres Empilhadas” (2019) – Melo desenvolve uma literatura realista. Logo, gosta de pesquisar os temas dos romances, embora sem perder a dimensão da fábula. O resultado desse processo é um tempero que nos revela nosso tempo.
“Quero que os leitores acreditem no que eu escrevo”. Não é difícil. Neste mais recente projeto, por exemplo, somos apresentados às batalhas cotidianas de uma miscelânea de tipos sociais. Gente que ocupa as ruas em busca de frestas de sobrevivência. São camelôs, flanelinhas, desempregados, bêbados, ladrões, cracudos e catadores. Eu e você. Empatia.
Um livro, assim, repleto de sonhos, tragédia e poesia. Pelo fato de a temática principal ser tão presente no cotidiano do público – em maior ou menor grau – a leitura deve proporcionar a ilusão de que a realidade entrou na história. “A gente é gente”, protesta um dos personagens em determinado momento da história. Quem nunca ouviu ou gritou igual?
“Acredito que o sonho não é apenas fuga da realidade. É também uma forma de resistência. Um modo de continuarmos agarrados à vida, apesar do sofrimento”, defende Patrícia.
Vidas matáveis
O título do romance, “Menos que um”, merece atenção particular. Representa o que o filósofo italiano Giorgio Agamben chama de vida nua. A vida cujo valor o Estado e a sociedade não reconhecem. São as “vidas matáveis”, a vida cuja morte não se chora. “É a face bárbara de uma pretensa civilização que transforma vidas em refugo humano”.
Talvez por isso, pela predisposição em investigar esses meandros, Patrícia siga abordando a questão da violência, a exemplo dos livros anteriores assinados por ela. A forma literária impressa nas páginas, contudo, é outra. Numa auto-análise, Melo tem experimentado mais ultimamente.
“A experiência de escrever um romance com tantos personagens foi um enorme desafio”, situa sobre a mais recente empreitada. “E criar com eles um caleidoscópio ficcional da miséria brasileira foi um desafio maior ainda. Alguns livros mudam a nossa forma de escrever. Este é o caso de ‘Menos que um’. Ele me transformou, como escritora”.
Não à toa, na ocasião da passagem por aqui, Patrícia também ofertará o curso “A literatura e o ofício da literatura”, no qual abordará, dentre outros assuntos, a violência como cenário. A ação é igualmente idealizada e realizada na Coração Selvagem, de forma presencial.
O programa inclui duas seções: A ficção urbana – a qual contemplará “Literatura brasileira ou contemporânea?”, “A violência como cenário e a pesquisa do cenário” e “Pesquisa, realidade e ficção. O ponto de equilíbrio”; e Plano de Obra, a partir de “Construção do enredo”, “Construção das personagens” e “A costura das personagens (personagens e planos narrativos)”. Tudo acontece das 15h às 18h, com inscrições limitadas via Sympla.
Vida sonhada
Por fim, Patrícia considera que a literatura é vida sonhada. Hipótese vivida. Mas o que ela pode? Colocar-nos nos sapatos do outro. “Pode gerar empatia, mudar nossa percepção do mundo, acabar com preconceitos. Gerar compaixão. Além de ser uma experiência estética sem igual. Ler é viver uma outra vida, diferente da nossa”.
Retornando ao enredo de “Menos que um”, situo para a escritora que a indiferença e a apatia também servem como mote de reflexão no livro. Na configuração em que o Brasil se encontra hoje, é possível acreditar que estamos no movimento de superar tudo isso? Ou a possibilidade ainda é remota?
Melo não titubeia: “Acho que o Brasil vive seu pior momento. Estamos saturados de violência. Temos no poder um discurso de violência. A violência hoje é também uma forma de identidade, de comunicação. Há muita miséria, fome, desemprego”, enumera.
E, como se pegando fôlego, abre espaço para a novidade: “Mas temos também as eleições neste ano. Isso me enche de esperança de que podemos mudar esta realidade. O Brasil pode ter outro destino. É como o Darcy Ribeiro dizia: ‘É tão nítido o que o Brasil pode ser, que nos dói o Brasil que é’. Espero que Lula vença as eleições e que possamos ter um outro Brasil”.
Serviço
Lançamento do livro “Menos que um”, de Patrícia Melo
Nesta sexta-feira (24), às 19h, na Livraria Coração Selvagem (Rua dos Tabajaras, 450 - Praia de Iracema). Antes, das 15h às 18h, de forma presencial, curso “A literatura e o ofício da literatura” (vagas limitadas, inscrições via Sympla). Mais informações, nas redes sociais da livraria.
Menos que um
Patrícia Melo
Leya
2022, 368 páginas
R$60