Ninguém imaginava o que acontecia ali dentro, mas havia suspeita. Fazia barulho. Ruído de mesa arrastada, piso varrido, panela fervendo. Máquinas a topo vapor. Dali a pouco, as portas seriam abertas e a casa estaria arrumada, pronta para receber gente. Então saberiam: nascia O Chopp do Bixiga.
Dezembro de 1999 o bar iniciou. Instalou-se ali, na Rua Dragão do Mar, 108. Rapidinho virou point, recanto da molecada e da velha guarda. A fachada com arquitetura clássica emoldurava espírito jovem. Tinha bebida inédita no pedaço, cardápio convidativo. Parecia fácil ser feliz no Bixiga. Parecia e era.
Com quase 25 anos de atividade, o estabelecimento anunciou o término para o próximo dia 30 de abril. As mesmas portas que um dia se abriram agora precisarão encerrar.
Focar apenas nisso, porém, apaga história comprida, dona de muitos causos, curiosidades e, por que não, belezas. “Tem muita coisa envolvida”, introduz o proprietário, Raphael Monte.
Junto aos irmãos, Leonardo e Diogo, ele é o herdeiro do negócio fundado pelos pais e um casal de amigos. Ciro Flamarion e Gisele Ardente uniram-se a Maurício Invernizzi e Albertina Sousa para dar novo gás à noite alencarina por meio de um lugar que traduzisse os anseios do quarteto.
Um deles era matar a saudade dos bares de São Paulo – cidade onde viveram durante longo tempo –, sobretudo aqueles do bairro Bixiga. Não deu outra.
“Viram que Fortaleza ainda não tinha nada disso, e decidiram fazer um bar com essa pegada. Em 1999, abriram o Chopp do Bixiga. Pegaram um empréstimo com minha avó e aproveitaram o prédio antes ocupado por um amigo deles, DJ Edson Vinil. O Edson tinha uma espécie de boate lá, mas não vingava… Foi como tudo começou”.
A estreia anunciava novidade que se tornaria o carro-chefe do empreendimento: o chopp de vinho. Pioneira no Brasil – e, Raphael desconfia, até no mundo – a bebida foi criação de Ciro Flamarion e Maurício Invernizzi, dois apaixonados e conhecedores do segmento.
Ciro, particularmente, não gostava de beber vinho quente, logo teve a ideia de fazer um numa choppeira, gelado. A empreitada deu tão certo que virou querida por todo mundo.
O vinho servido com espuma de chopp, teor alcoólico de 10 a 11%, fez a festa de incontáveis. Nos primeiros anos do Bixiga, a caneca era vendida a R$0,50. Um chama.
“Com R$3, você tomava quase dois litros e meio; com R$5, ia pro hospital”, brinca o dono, todo saudoso. “Virou tradição no local. O Dragão fervilhava naquela época”.
Todo mundo é de casa
Tendo crescido nas dependências do bar – foi um dos primeiros funcionários do pai – Raphael Monte também atrela o sucesso do projeto ao atendimento diferenciado. Recorda da mãe dizendo: “Toda pessoa tem que ser tratada como convidada da própria casa”.
A política de aconchego perdurou sempre, mesmo após o falecimento dos fundadores, em 2016. Foi quando os filhos assumiram o comando junto ao já sócio, Maurício Invernizzi.
“A gente nunca encarou cliente como cliente. Às vezes, tinha problema na conta de um cara e preferíamos que ele nem pagasse, pra não sair chateado”. Lógica estendida aos funcionários.
A maioria é de longa data, alguns até do comecinho do estabelecimento. Muitos iniciaram jornada no mercado de trabalho por meio do Bixiga. São parceiros, irmãos. Raphael até hoje chama alguns de “tio”, “tia”, “dona”.
Soma-se a isso o fato de o lar acolher toda e qualquer diversidade – sem levantar bandeira alguma e todas ao mesmo tempo – e a importância do recanto só aumenta. O Chopp do Bixiga virou especialista em colecionar pequenos grandes feitos.
Raphael calcula: foram mais de 40 pedidos de casamento realizados no aconchego. Gente que iniciou namoro, terminou paquera, chorou por dor de cotovelo ao som de “Evidências”.
“Lembro de quando só dava a garotada, no início. O Bixiga às vezes era palco até de briga. Era o único bar de Fortaleza que tinha seis seguranças. Hoje a gente só tem um, após ter maior contato com as pessoas, refinar esse público… São tantas memórias”.
A herança toca os próprios afetos do proprietário. Fã da banda Vulcane, sucesso nos anos 2000, Raphael recorda os caras tocando no andar de cima do bar e ele lá, sentado na mesa com eles.
Outras figuras ilustres passaram pela casa. Marília Mendonça e Galvão Bueno estão entre elas. A cantora elegeu o chopp de vinho do Bixiga como o melhor do Brasil.
Mas o que mais brilha o olhar do dono é o quanto o estabelecimento projetou carreiras outrora iniciantes. O grupo Conduta Positiva e os cantores Márcio Silva (este desde o comecinho do bar) e Nando Rosa são exemplos.
“Se você chegasse com energia negativa, a gente jogava energia positiva em você. Sempre acreditamos muito nisso. Até pros nossos músicos tinha essa questão da troca: eles nos ajudaram a chegar onde chegamos, e vice-versa”.
Despedida, mas honra
Agora é hora da despedida. Não é fácil manter uma empresa no Brasil, destaca Raphael, sobretudo com a pandemia de Covid-19 – grande responsável por “rachar o Bixiga ao meio”.
Foi nesse período que o bar precisou fazer ajustes e tomar decisões. A principal: prover cestas básicas para os funcionários e os próprios sócios diante da escassez de trabalho e atividades ao longo do isolamento.
“Além disso, como não sabíamos durante quanto tempo ficaríamos fechados, orientamos todos os funcionários a pegar o que tivesse de comida. Tinha gente levando camarão, coxinha, refrigerante, feijoada congelada, carne para sanduíche… Aquilo ia estragar, então seria mais importante que eles levassem para a família”.
Resultado: quando o estabelecimento reabriu, não havia uma garrafa d’água no estoque. Era preciso começar do zero de novo, e isso foi bastante difícil – principalmente devido aos agravantes.
De acordo com o dono, o entorno do Dragão do Mar está praticamente abandonado, o que aumentou a insegurança e afastou a clientela. Não à toa, ele cobra ação e atenção do poder público.
Outro motivo foi o fechamento do estacionamento do bar, a área no entorno foi reservada para pedestres. “Essa bola de neve mostrou que era impossível continuar. Então, é melhor fecharmos enquanto conseguimos solucionar o problema. O encerramento não está sendo apenas para 20 funcionários, mas para 10 mil pessoas que estão vindo falar comigo", mensura.
"Anunciá-lo foi uma das coisas mais difíceis que fiz na vida – não mais apenas que a morte dos meus pais. E o Bixiga sempre teve muito a cara deles, então, para mim, foi uma sensação de dar adeus aos dois. É uma história que nunca será esquecida. Daqui a muitos anos, vão lembrar da gente”.
Os últimos passos darão conta de reforçar essa premissa. A programação final do bar envolve o tradicional forró das antigas, muitos reencontros e chopp de vinho aos montes. O derradeiro dia, por sua vez, promoverá a maior festa da casa, iniciando às 17h e sem hora para acabar.
É quando ocuparão as mesas e cadeiras vermelhas sabendo que em breve não estarão lá. Observarão a fachada do casarão, o letreiro em fonte clássica, e darão adeus com a vista. Decerto se emocionarão. Essa paisagem de detalhes está lá desde o começo, mudou quase nada. Natural que recordem de tudo como se fosse a primeira vez.
Em Raphael, lateja uma palavra: legado. “Tocamos o coração de muita gente. Todo mundo aprendeu muita coisa com o Bixiga. Isso, para mim, é mega importante. Tivemos muitos problemas? Sim. Mas nossa energia é incomparável”.
Serviço
O Chopp do Bixiga
Rua Dragão do Mar, 108, Centro. Encerramento das atividades no dia 30 de abril. Mais informações pelas redes sociais do bar