No papel, o nome oficial é Praça General Tibúrcio. Os cearenses, no entanto, deram outro batismo. É carinhosamente conhecida por Praça dos Leões. O nome é referência às três esculturas, dois leões e um tigre que adornam o lugar. Duas delas são obras do francês Henri Alfred Jacquemart (1828-1896).
A história é viva na região. No entorno, situa-se a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a Academia Cearense de Letras e o Museu do Ceará. No chão ainda é possível perceber avistar os trilhos do antigo bonde. Cravado na esquina da Rua General Bezerril e Travessa Morada Nova, o Bar Cultural Lions resiste há 22 anos, no ponto onde já funcionou o Fortaleza Bar, entre as décadas de 1930 e 1990.
No edifício de três andares também funcionam a sede da Prodisc e o Jegue.s Bar. Assim, o trio consolida uma agenda cultural significativa naquele pedaço da Capital. A música é o principal termômetro dos eventos ali realizados. Como um farol, as luzes do prédio iluminam a esvaziada noite do Centrão de Fortaleza.
O colorido, a atmosfera coletiva e a energia do evento contrastam com a penumbra que cerca o Museu do Ceará. Um dos mais importantes espaços de saber no Estado se aproxima dos 90 anos com as portas fechadas. Da entrada do Palacete Senador Alencar, sede do Museu, dois seguranças observam o movimento.
São 19h. Durante o caminho até o local é possível notar que as poucas almas circulando pela região se reuniam nos “espetinhos”. São trabalhadores locais petiscando ou tomando a saideira antes da volta ao lar. Chegando na Praça dos Leões, o vaivém de cadeiras e mesas segue intenso. É quinta-feira e a Lions prepara a concorrida noite de forró.
Cultura salva
O comércio é mantido pelos paraibanos Dona Fátima, Eufrásio e o filho David. Em meio à pandemia da Covid-19, por pouco fecha as portas. Com muita luta da equipe do bar e até apoio dos fãs, o negócio continuou de pé. Hoje, com a reabertura dos eventos com público, solidifica o histórico de trazer arte em meio à realidade noturna do Centro.
“Seria um sonho que outras Praças e lugares também fossem ocupados com música, cultura”, conta Gérson Barbosa. Há 12 anos na Lions, trabalhou da cozinha ao atendimento. Mas a conversa é sobre sua atividade como promotor de eventos do bar. Os proprietários estavam viajando. Uma rara oportunidade de descanso para o casal, diga-se.
Emocionado, Gersón detalha que a Lions quase encerra suas atividades. A alternativa foi investir no ramo cultural e eventos que a casa já realizava, antes mesmo da pandemia. Na primeira festa pós-retomada compareceram 19 pessoas (seis acompanhavam os músicos). Foi difícil, mas a arte foi gradualmente renovando a procura pelo espaço.
"Eu sabia que tinha potencial. Não era momento de fechar, que ainda poderia dar muitas alegrias para Dona Fátima e Seu Eufrásio, para nós que trabalhamos com eles e para quem vem curtir essa praça. Se fechasse isso aqui, onde essa turma todinha iria?", questiona o produtor.
Do bate cabelo ao arrasta pé
A programação atende de quinta-feira a domingo. O cover simbólico de três reais (o menor preço da cidade, enfatiza a Casa) é revertido para músicos, DJs e outros artistas que apresentam sua arte no local. O cardápio é rico. Tem pop, pagodão baiano, reggaeton e bate cabelo. Tem disco, boogie e funk. O som black também é especialidade nas noites do Bar. O samba aos domingos conclui a agenda semanal.
Eventos como "Tigresas Carecas", "everything is poc 2", "Samba do Mar", "Pop-se", "Bailão", "Pop-Indie-BR", "emoriô - a festa", "Toca 1 pras gays!" e "Forró do Pingoró" são algumas das atividades que agitam o lugar. A Lions se autodenomina como bar democrático e território para todos os estilos e pessoas. "Aqui não há espaço para preconceito. Todos são bem vindos, abraçados, desde que todos se respeitem. Podem vir. A casa está aberta", completa Gérson Barbosa.
O equipamento de som começa a ser montado. A atração da noite será comandada pelo Trio Forrozim. Reisinho (triângulo). Jean Santiago (zabumba) e Danielzinho da Sanfona desfiam clássicos. Tem Marinês, Gonzagão, Trio Nordestino, versões de músicas da MPB e até algumas do “forró das antigas”.
A pé. De bicicleta, moto táxi ou serviços de aplicativo, o povo lentamente vai ocupando o chão da Praça. Mais de 10 ambulantes encostam suas banquinhas ao redor das mesas. Além de bebidas, as opções gastronômicas incluem vatapá, churrasco, dogão e sanduba no pão árabe.
Tal qual uma caravana, estes vendedores circulam por vários eventos da cidade oferecendo seus produtos e serviços. “Ontem estava vendendo lá no jogo do Castelão”, garante um dos comerciantes que preferiu não se identificar.
Centro carente
Nesse processo de retomada da Lions, o Trio Forrozim é um parceiro central. No início, o temor era se o público compraria a ideia de um show no Centrão. O músico Jean Santiago explica que o grupo foi formado durante a pandemia e o objetivo foi trazer alegria diante do atual cenário. "Sei que tem público jovem e mais velho que abraça o forró tradicional. Tem uma galera que gosta, mas estão faltando locais para realizar os shows. Hoje, com o sucesso da quinta, outros espaços passaram a dar mais atenção", aponta.
Alguns minutos depois, o profissional assume o posto com os colegas de forró. O palco é no chão e um toldo protege das chuvas de abril. São 21h e as mesas já estão todas ocupadas. Douglas é um dos garçons que atendem na Lions. A relação com os ambulantes é tranquila, aponta. Outro assunto destacado foi a volta por cima do bar.
"A procura está muito boa. Vem gente de fora e celebridades se divertir aqui", garante. Nesse momento, ele saca o celular do bolso para mostrar um dos frequentadores. Segundo o funcionário trata-se de Silvero Pereira. "Veio aqui, até cantou", detalha. Uma mão se estende da mesa e lá vai Douglas prontamente efetivar o pedido.
O DJ Estácio Facó já participou de eventos na Lions e segue levando seu som atualmente para a casa Jegue.s. Para ele, é notório a chegada de toda uma nova turma que manda ver nas discotecagens. No entanto, avalia, o Centro perdeu espaços de convivência e realização de eventos.
Não fosse a turma que comanda os negócios na Praça dos Leões, a situação seria ainda mais grave. "Tínhamos o saudoso Cine Betão, os eventos dos Filmes Malditos (realizado no Cine Majestick). Agora realmente, só a Lions ou alguma festa do pessoal do Cinetreatro São Luiz, enumera.
Montando no Tigre
Para Gérson Barbosa, a cultura foi extremamente importante à manutenção do bar. Outro processo fundamental é o trabalho realizado em conjunto com os artistas. "Temos uma agenda semanal e todo mês deixamos um sábado ou sexta-feira para um projeto novo, para uma experiência nova, entende?. Como nos autodenominamos enquanto espaço democrático, temos que ter espaço para uma coisa nova. Aí vai do público comprar a ideia ou não, mas o espaço está aberto”, finaliza.
O som do forró ecoa. Inúmeros pares se fazem presentes e dançam com fervor. A fumaça dos espetinhos abraça o céu. A Praça dos Leões segue como oportunidade para toda uma juventude e boêmios de diferentes gerações. A rotina da quita-feira segue o percurso da alegria. De longe, avisto alguém solitário sentado do lado da estátua de Rachel de Queiroz.
"Ei, mah. Movimento aqui tá bom. Tu vai ver. Mais tarde vão tudo beber e depois montar nesse Leão", se diverte o flanelinha Ivan. Em verdade, o profissional das ruas apontou para o tigre esculpido por Henri Alfred Jacquemart. Independente do felino, à noite,"todos os gatos são pardos", nos conta a máxima popular.